Vou lhe contar meu caso. Passei da servidão a reitor de universidade não por graça, mas por obra. Acreditei na educação não para o sucesso de uma raça, mas para ascensão das pessoas e desenvolvimento de uma nação.
Discordo do senador, pois creio em raças, e ele diz que não existem. A seu favor, ele tem a tecnologia, que avançou e descobriu que a diferença genética entre negros e brancos é nula. Um setor em que parece não ter havido avanços é o da ideologia, que continua ofuscando até mentes brilhantes. Na virada do século 19 para o 20, eu era tido como conciliador, por querer a emancipação dos negros por meio da educação. O mesmo debate chega ao século 21, com os mesmos argumentos, os mesmos equívocos. Se Cazemiro e Baquaqua, citados em sua carta, deixaram descendentes, não se surpreenda se houver louros de olhos azuis. O Brasil é muito diferente dos Estados Unidos em que vivi. Um país miscigenado como esse não merece ser tratado como bicolor. A tese do senador é que as cotas, motivo das discussões acerca de frases ditas por ele ou inventadas para ele, devem ser temporárias e, sendo sociais, são também raciais, pois servem a todas as raças. Por que a cota racial tem de ser só para uma cor? Um negro rico tem mais direito a cota que um branco pobre? Ou o Brasil quer institucionalizar em 2010 o racismo dos EUA de 1910? Aí há racismo, mas incomparável com o daqui. O ciclo nocivo que faz um país precisar de reserva em universidades públicas começa no ensino fundamental ruim, quando aí deveria estar o início da construção do mérito. No médio, uns pais se sacrificam e põem os filhos em colégios particulares, outros já são tão sacrificados que a renda da família é menor que a mensalidade. Daí a competição ser desigual. Por isso o senador quer prazo de 12 anos para que o aluno que entrar hoje na escola em tempo integral termine o ensino médio em condição de disputar vaga com o do colégio privado. Em nenhum lugar, com nenhuma palavra, o senador negou o horror da escravidão ou as monstruosidades dos senhores e das leis com os cativos. Não ajuda em nada as ações afirmativas entortar suas palavras, interpretá-las para colar no senador a pecha de que é racista, vitaminar militantes para hostilizá-lo. Se valesse aí a nossa regra aqui, a de que basta uma gota de sangue para ser negro, o senador seria um dos nossos, pois é filho de mulata. Mas não é essa a discussão que interessa. O tema tem de ser a qualidade da educação, a situação de cada prédio e do transporte escolar, o valor nutricional da merenda, além de salário, preparo e condições de trabalho dos professores. Desviar o assunto das cotas para buscar o iniciador do tráfico de pessoas é uma forma de esquecer que o Brasil continua atrasado em educação, talvez com média insuficiente para entrar na instituição que dirigi, o Instituto Normal e Industrial Tuskegee, no Alabama. Outro dia eu encontrei o Gilberto Freyre e lhe disse não entender o fato de ter sido proscrito. Fazia tempo que eu queria perguntar-lhe por que os racialistas repelem tão correto e talentoso pesquisador. Ele deu a entender que queriam que "Casa Grande & Senzala" fosse um panfleto grande, e não um grande livro.
Gaspari, a escravidão foi brasileira, assim como é brasileira uma certa dificuldade de entender que quem mais grita por cota é quem menos defende o mérito. É possível vencer com esforço, estudo e oportunidade. Eu que o diga. Com todo respeito, Washington.
DEMÓSTENES TORRES, 49, procurador de Justiça, é senador da República pelo DEM-GO.
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