Fonte: IHU
quinta-feira, julho 15, 2010
A pedofilia é um delírio da autonomia
A pedofilia é um delírio da autonomia
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"A autonomia, tomada como uma espécie de exacerbação exagerada do valor do individualismo e de uma certa recusa da subordinação do indivíduo à lei, tem a perversão como uma posição do sujeito na qual ele se põe a margem desta submissão à lei. Neste sentido acredito que sim, que a pedofilia é um delírio da autonomia". A explicação é Benilton Bezerra, doutor em saúde coletiva. Ele concedeu, por telefone, entrevista à IHU On-Line, sobre a manifestação da pedofilia no sujeito contemporâneo. "Atualmente, vemos uma sociedade que se torna mais porosa, onde os indivíduos buscam realizar qualquer tipo de fantasia em busca de seu gozo", afirmou.
Benilton Bezerra Junior é graduado em Direito e em Medicina, mestre em Medicina Social e doutor em Saúde Coletiva, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Atualmente, é membro do Instituto Franco Basaglia e atua como docente adjunto do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, e pesquisador do PEPAS (Programa de Estudos e Pesquisas sobre Ação e Sujeito) da UERJ. Dentro suas obras, destacamos: Pragmatismos, pragmáticas e produção de subjetividades. (Rio de Janeiro: Garamond, 2008).
Ele é autor do artigo "Retraimento da autonomia e patologia da ação: a distimia como sintoma social", publicado no livro Inácio Neutzling (org.), O Futuro da Autonomia: Uma Sociedade de Indivíduos?, São Leopoldo - Rio de Janeiro: Editora Unisinos - Editora PUC-Rio, 2009.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – A pedofilia é um delírio de autonomia? Por quê? Benilton Bezerra - Acredito que essa expressão se refere ao fato de que na sociedade atual a autonomia ganhou um sentido de generalização absoluta, como quase uma espécie de imperativo, ao qual todos devem estar referidos. Há uma idealização da autonomia como uma independência total em relação às regras, valores, tradição, uma espécie de tráfico do sujeito que teria o poder de adentrar na constituição do indivíduo como uma figura política, porque isso vincula a valores e ações coletivas. Mas a autonomia, tomada como uma espécie de exacerbação exagerada do valor do individualismo e de certa recusa da subordinação do indivíduo à lei, tem a perversão como uma posição do sujeito na qual ele se põe a margem desta submissão à lei. Neste sentido acredito que sim, que a pedofilia é um delírio da autonomia.
IHU On-Line – De que forma a pedofilia se conecta com as grandes neuroses que acometem o sujeito contemporâneo? Benilton Bezerra - Eu não sei se poderíamos conectar a pedofilia em si como um fenômeno subjetivo às outras grandes neuroses contemporâneas. Por exemplo, você pensa na depressão e seus sintomas na nossa época, são modos de subjetivação, formas de viver o sofrimento, de organizar a experiência subjetiva, que testemunha um pouco a nossa cena social contemporânea. Neste sentido podemos dizer que a depressão é uma neurose contemporânea, mas ilustrativa de quais são os nossos desafios e os nossos fracassos. Assim como a histeria foi no final do século XIX, início do século XX. A depressão, hoje em dia, é o fracasso da autonomia. Se a perversão seria uma espécie de autonomia elevada ao delírio, a depressão seria como um sintoma generalizado testemunha do fracasso da autonomia. A partir dessa ideia, não tenho certeza se hoje em dia nós temos um aumento tão flagrante de casos de pedofilia assim como os casos de depressão, por exemplo. Talvez haja maior visibilidade em relação a pedofilia do que se tinha antes, o que se tornou uma questão fundamental para nós. Até porque talvez a pedofilia seja um dos últimos limites que reconhecemos como inultrapassáveis.A pedofilia ainda é alguma coisa que a consciência moral atual rejeita. Isso faz com que a nossa sensibilidade e visibilidade sejam maiores, agregado ao fato de que recentemente isso ganhou notoriedade pela denúncia de casos em grandes instituições, como o caso da Igreja.
Atualmente, vemos uma sociedade que se torna mais porosa, onde os indivíduos buscam realizar qualquer tipo de fantasia em busca de seu gozo. Ao contrário de uma sociedade de cem anos atrás que era regida pela idéia da contenção, senão da repressão dos impulsos sexuais. Hoje, nossa sociedade, de maneira geral, suscita o gozo, pede o gozo. Todos nós somos impelidos à procura do gozo, que é visto como uma realização da própria idiossincrasia. Como diz o Alain Ehrenberg, sociólogo francês, vivemos numa sociedade da autonomia assistida, somos todos convidados a ser autônomos e, por isso, sermos vencedores, realizadores. Devemos, segundo ele, buscar sempre alcançar os objetivos que nos interessam e aquilo que representaria nossa felicidade, mas, evidentemente, estamos sempre nos sentindo aquém da realização deste mandato social. Por vias transversas, você pode encontrar tanto na pedofilia como na depressão, elos que ligam essas posições subjetivas da cultura atual. Com a ressalva que não resta dúvida que existe um aumento muito grande de depressões, dos fenômenos compulsivos e aditivos, mas tenho dúvidas em relação ao fato do aumento dos casos de pedofilia, embora sua visibilidade sim, tenha crescido.
IHU On-Line – O que a pedofilia expressa sobre a sexualidade desse sujeito? Benilton Bezerra - Há, na nossa cultura, um estímulo a uma espécie de autonomia sem limite do sujeito, o que faz com que ele se exclua mais facilmente de regras socialmente sancionadas de organização das práticas que possam realizar seus desejos e suas fantasias sexuais. Neste sentido, talvez a pedofilia possa ter expressão na cultura e na subjetividade atual. Não sei se podemos fazer essa relação tão próxima entre a figura do pedófilo e a figura do sujeito contemporâneo, a não ser por este traço mais genérico, ou seja, vendo a pedofilia numa posição subjetiva na qual o sujeito se furta das definições da lei. E nós vivemos em uma sociedade onde justamente a ideia de lei, de autoridade, se encontra em um processo muito grande de erosão.
IHU On-Line – Em termos psicanalíticos, mas também históricos, como podemos compreender a interdição dessa prática sexual como aceitável socialmente? Benilton Bezerra - Uma das coisas que acontece hoje é a constituição de uma figura homogênea do pedófilo e da pedofilia que, na verdade, é um pouco ilusória. São dois termos que abrangem muitas possibilidades e muitas diferenças. Essas diferrenças se expressam, por exemplo, entre um caso de pedofilia como o do austríaco que encarcerou sua filha e seus netos no porão e situações que encontramos em clínicas e que são menos dramáticas, menos agressivas e muito menos contundentes. Conheço pedófilos que são, de fato, perversos, pois não possuem nenhum conflito com o que fazem. Outros que praticam atos pedófilos, mas que vivem dilacerados por causa disso.
Do ponto de vista histórico, só podemos falar de pedofilia a partir desse momento que estamos vivendo. Nosso tempo entende a pedofilia como um abuso em relação à figura de uma criança que é inocente e que não tem conhecimento sobre o que está sendo feito, que se deixa levar pela confiança que ela naturalmente tem pelo adulto. Isto tudo só faz sentido a partir do momento em que a infância foi construída como um momento da vida onde essa inocência, esse desconhecimento sobre o sexo, foi constituído. A infância passou a ser concebida dessa maneira a partir do século XIX.
As crianças, durante a Idade Média e antes do Renascimento, eram entendidas como adultos em miniatura, então o olhar sobre a infância era muito diferente. Por isso, as práticas dos adultos em relação às crianças eram bastante diferentes. O fato é que hoje entendemos a criança como um ser frágil, dependente do adulto, que precisa ser acolhida, precisa ser cuidada, precisa confiar cegamente nos adultos para se constituir como um sujeito capaz de viver a vida com prazer, alegria, sem se sentir violentada. Do ponto de vista histórico, não há como se imaginar vivendo em mundos e culturas diferentes. Na nossa cultura, a criança não é um adulto, ela tem direitos de sujeito, mas não tem obrigações de sujeito. A criança tem que ser protegida e, neste sentido, não há como defender o conceito de uma igualdade de condições entre o adulto e uma criança. Nós vivemos numa sociedade que, por valorizar o indivíduo e a autonomia, exige que todo “contrato” entre dois sujeitos implique a preservação das condições de equidade entre eles. No entanto, isso não existe numa relação entre um adulto e uma criança.
Do ponto de vista psicanalítico, ocorre algo semelhante, afinal o sujeito da psicanálise se constitui a partir da modernidade. Assim, o que está em jogo nesta relação entre adulto e criança são as obrigações do adulto de proteger, cuidar e criar condições para que o desenvolvimento psíquico do menor se dê da melhor forma possível. Esse tipo de responsabilidade do adulto é atropelado quando ele se permite dar vazão aos seus impulsos sem considerar a diferença de posição entre ele e a criança. Para a psicanálise, qualquer prática sexual é possível, é aceitável, desde que ela seja realizada por dois adultos livres, responsáveis, racionais, que tenham consentimento e que saibam o que estão fazendo.Não que a criança não tenha sexualidade, ou que não possa inclusive se excitar e sentir prazer com a prática pedófila, afinal a criança é um ser sexuado, mas a sexualidade dela é organizada em torno da linguagem da ternura, enquanto que a do adulto é organizada em torno da paixão. A confusão entre essas duas línguas é que torna confusa e violenta, ao longo do tempo, para a criança a entrada em uma cena pedófila.
IHU On-Line – O que há de consciente nesse desejo proibido? Benilton Bezerra – A maneira como se ordena o desejo do sujeito é dependente da vontade, do desejo e da decisão consciente de qualquer um. Ninguém é pedófilo porque resolveu ser. Há uma dimensão de tragédia pessoal do pedófilo, sobretudo daquele que reconhece o sofrimento que impõe à criança. Nem todo o pedófilo é frio, calculista e sem culpa, existem muitos que vivem um drama justamente por conta da luta que tem que manter o tempo todo entre o impulso que não escolhe, mas que está presente, e sua consciência. Se pensarmos nas dimensões da importância da consciência em relação ao universo dos pedófilos, teríamos que fazer uma distinção entre os vários tipos: em uma ponta estariam aqueles que sabem o que estão fazendo e não sentem culpa; na outra ponta do espectro aquele que é dilacerado por ter consciência e perceber o quanto o impulso que nele é espontâneo conflita com valores, regras, morais, ideais, que conscientemente adota para si. Há um filme muito interessante que fala exatamente desta figura que acabei de mencionar, que se chama “O lenhador”.
IHU On-Line – Quais são os impactos psicológicos de uma criança vítima de abuso sexual? Benilton Bezerra – No momento do ato, a criança não tem clareza do que está acontecendo e pode ficar confusa, mas é só quando a questão se torna pública, apenas quando ela se vê capaz de enxergar com o olhar compartilhado qual era o sentido daquela experiência que viveu que, então, o impacto se manifesta. Pela construção de certos mecanismos de defesa, às vezes muito fortes, ela pode se identificar com o próprio agressor e, portanto, repetir este gesto depois. Isso é muito comum em pedófilos.
Algumas crianças passam a aceitar uma posição masoquista que as impedem de usufruir de maneira mais livre a sua própria sexualidade. Existem crianças fazem uma espécie de cisão como forma de separar aquela experiência traumática da sua trajetória pessoal, e isso tanto pode torná-la mais agressiva ou desprovida da agressividade natural e, então, torná-la apática, desmotivada, incapaz de enfrentar desafios.
Um grande impacto é a dificuldade de confiar no outro, como criança que confia nos adultos e como ser humano que tem o outro como fonte de carinho, de proteção, de satisfação, de alegria. E sabemos que isso é fundamental na vida de qualquer pessoa para que ela possa usufruir da vida da melhor maneira possível.
IHU On-Line – Existe um limite na pedofilia entre amor e violência? Benilton Bezerra – Estamos tomando pedofilia, neste caso, como sendo uma palavra cuja raiz etimológica indica exatamente isso: “amor à infância”. Essa ideia original, hoje, desapareceu. É muito complexo traçar o limite entre o que é o carinho, o toque afetuoso de um adulto, dos pais, irmãos mais velhos em relação à criança e o que é o “carinho” feito com o objetivo de satisfazer um impulso sexual do adulto.
Existem culturas que são mais receptivas a uma troca de carinhos físicos, como a brasileira. E ainda há diferenças entre algumas regiões aqui no Brasil, por exemplo, no Rio de Janeiro, mais do que no Rio Grande do Sul, onde as pessoas se tocam mais, se beijam quando são apresentadas umas as outras. Isso é impensável em países como o Japão, por exemplo.
Do ponto de vista cultural, há uma enorme variedade em relação a isso, onde se traça a fronteira do que consideramos uma demonstração de amor e o que é um abuso violento. Do ponto de vista psicológico é muito mais fácil de definir, porque isso implica você conhecer a posição subjetiva que o sujeito está ocupando naquele momento.
Fonte: IHU
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