A (contra) ameaça nuclear
LEONAM DOS SANTOS GUIMARÃES
Uma análise serena do caso do Irã indica que o governo do país pretende cumprir as promessas de uso pacífico do enriquecimento de urânio
A NÃO PROLIFERAÇÃO insiste no erro de considerar que as armas nucleares são desenvolvidas com intuito de ameaçar. A história mostra que a busca pela sua posse é dissuasória, muito mais resposta a uma ameaça percebida do que preparação para uma agressão.
A carta Einstein-Szilard foi o catalisador do Projeto Manhattan, que desenvolveu as primeiras armas nucleares. Ela afirmava ao presidente Roosevelt que a arma nuclear era viável e o incentivava a dar início a um programa para desenvolvê-la.
Sua justificativa era o perigo da Alemanha nazista ser a primeira a desenvolvê-la, e a certeza de que ela a usaria assim que a tivesse. A gênese dessas armas se encontra, então, na resposta a uma ameaça percebida.
A análise dos casos de proliferação subsequentes, Rússia, Grã-Bretanha, China, França, Israel, Índia, Paquistão e África do Sul, mostra que isso ocorreu em resposta a uma ameaça percebida pelos respectivos governos.
O abandono das armas por África do Sul, Ucrânia, Cazaquistão e Belarus ocorreram porque esses países não tinham percepção de ameaça que justificasse sua posse.
Na Coreia do Norte, a proliferação se origina na queda do Muro de Berlim, em 1989, e a quase certeza de que o "muro" do paralelo 38 cairia em seguida.
O regime busca sua perpetuação tentando extorquir ajuda e reconhecimento. A "dinastia Kim" sabe que a hipótese de uso de suas armas, de eficácia duvidosa, representaria o fim do regime, o que ela não quer.
A teocracia iraniana sempre se sentiu ameaçada pelos EUA, que apoiavam o governo deposto pela "revolução verde". As relações entre o Irã e os EUA nunca se normalizaram.
A ocupação da embaixada dos EUA em Teerã e o resgate de reféns no governo Carter até hoje requerem desagravo. À ameaça americana somou-se a ameaça iraquiana.
Durante e após a guerra entre os dois países, Saddam buscava a arma nuclear. A segunda Guerra do Golfo, em 2003, mostrou que o Iraque não tinha armas nucleares, graças aos controles da AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica) após a primeira Guerra do Golfo. A ocupação do Iraque levou as tropas americanas à fronteira oeste do Irã, quando elas já se encontravam na fronteira leste, após a ocupação do Afeganistão, depois do ataque terrorista do 11 de Setembro. Isso amplificou em muito a ameaça percebida. A resposta foi o desenvolvimento do enriquecimento de urânio.
Ao contrário da Coreia do Norte, o Irã sempre afirmou seus fins pacíficos. Sua maior autoridade religiosa declarou que a arma nuclear contraria os preceitos do islã, desqualificando as pregações pela "bomba islâmica" dos anos 70.
Uma análise serena do caso indica que o governo iraniano pretende cumprir as promessas de uso pacífico.
O Irã busca a capacitação na produção do material que poderia ser produzido para fabricação de uma arma. É muito pouco provável que realmente venha a produzi-lo, já que isso certamente implicaria na queda do regime islâmico, dada a justa reação internacional que sobreviria.
A AIEA propôs ao Irã a troca de seu urânio enriquecido a 3,5%, para usinas nucleares, por combustível para o reator de produção de radioisótopos de uso médico, enriquecido a 20%. O enriquecimento seria feito na Rússia, e o combustível, fabricado na França.
Note-se que o Brasil é o único país não dotado de armas nucleares que já produziu, sob controle da AIEA, urânio a 20%. Esse urânio foi usado para fabricação do combustível do reator IEA-R1, de São Paulo, similar ao reator de Teerã.
O Irã rejeitou a proposta, por não confiar na intermediação de duas potências dotadas de armas nucleares, e anunciou o início do enriquecimento a 20% em suas instalações.
Face à intransigência do Irã, a comunidade internacional, liderada pelos EUA, segue no momento a receita usual de aumentar o nível de ameaça, brandindo sanções severas.
Essa postura sofre a influência do objetivo maior de descontinuar o apoio material e financeiro que o Irã fornece às facções palestinas, que têm impedido a paz no Oriente Médio.
Esse aumento no nível de ameaça, se corretamente dosado, pode levar o Irã a retornar às negociações sobre a proposta da AIEA.
Se for acima da dose, incluindo ações militares "cirúrgicas", estimularia o governo iraniano a descumprir as promessas que vem fazendo.
A não proliferação nuclear deve ser buscada pela negociação da redução do nível da ameaça percebida pelo país proliferante, e não por atos de força que possam levar à morte milhares de pessoas.
LEONAM DOS SANTOS GUIMARÃES é membro do Grupo Permanente de Assessoria em Energia Nuclear do Diretor-Geral da AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica).
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