Folha de São Paulo. Caderno Mais - 15/06/2008
EM "O QUEBRA-CABEÇA DA SEXUALIDADE", O ESPANHOL JOSÉ ANTONIO MARINA RETRATA A UTOPIA DA FELICIDADE NAS RELAÇÕES AMOROSAS
MIRIAN GOLDENBERG ESPECIAL PARA A FOLHA
É possível uma sexualidade feliz? Essa pergunta provocou o filósofo espanhol José Antonio Marina a escrever o livro "O Quebra-Cabeça da Sexualidade". Um dos intelectuais mais famosos e lidos na Espanha, Marina escreveu mais de 25 livros desde 1992, quando iniciou sua carreira de pesquisador independente. "O Quebra-Cabeça da Sexualidade" é seu primeiro publicado no Brasil, apesar de não ser o mais vendido de sua lista de sucessos editoriais. Nele, é possível encontrar preocupações e idéias já presentes em livros anteriores, como a questão da ética como meio mais inteligente de viver e de fazer escolhas amorosas e sexuais.
Saber prático
Para Marina, a ética é um saber prático sobre a felicidade. É a inteligência colocada a serviço dos afetos, dos interesses e das esperanças. A ética inventa projetos de vida e indica os deveres necessários para realizá-los. À ética pertence tudo o que é imprescindível para a felicidade e para a dignidade do próprio indivíduo e dos outros.
O autor é irônico e, ao mesmo tempo, sério em suas reflexões. Logo no início, constata a verdade de nossos tempos: a família está em crise, o casamento está em crise, o amor está em crise.
E provoca: "Espero que algum dia a crise entre em crise".
Para Marina, a vida a dois e a vida familiar produzem alegrias e satisfações, mas, também, muita dor, sofrimento e violência. Com a atual ausência de modelos, as relações sexuais e amorosas têm que ser reinventadas individualmente, o que, na teoria, é maravilhoso, mas, na prática, é fonte de conflitos e enormes dificuldades.
O amor tornou-se mais do que nunca necessário para a felicidade e, ao mesmo tempo, quase impossível de ser realizado. Ele analisa a tensão insuperável da atualidade.
Somos impulsionados por duas grandes motivações: o desejo de bem-estar (que é conservador, utilitário, calculista) e a expansão de nossas possibilidades vitais (que é arriscada, incômoda, instável, inovadora). No amor e no sexo queremos nos sentir, paradoxalmente, tranqüilos e exaltados, seguros e intensos, ternos e apressados, fiéis e livres, imanentes e transcendentes.
Pró-liberação
"O Quebra-Cabeça da Sexualidade" é um manifesto em favor da liberação sexual. Para Marina, o que mais se parece com a sexualidade criadora e feliz é uma conversa.
É impossível o diálogo lingüístico, amoroso e sexual para aqueles que só sabem e gostam do monólogo. A verdadeira conversa tem um ar de liberdade compartilhada. Não é possível impor o seu rumo ou obrigar o outro a participar dela sem desejo.
Não é um debate ou uma discussão, uma competição entre dois indivíduos que acreditam serem os donos da verdade ou os proprietários do ser amado.
Ela é imprevisível, cheia de surpresas e descaminhos.
O mesmo acontece com a conversa erótica. O monólogo sexual, para Marina, é como uma masturbação solitária que exclui o outro amante. As conversas eróticas são estimulantes, podem ser intermináveis e dependem do respeito e do cuidado com que se ouve e se presta atenção ao interlocutor.
É a capacidade não só de compreender o que o outro diz, mas de se deixar afetar pelo outro, em todos os níveis. A partir da idéia de uma conversa erótica, Marina desenvolve outras questões que considera básicas para uma sexualidade feliz: o cuidado com o outro, a dignidade da convivência e uma ética própria ao casal.
A vida amorosa, para ele, não é fruto da casualidade nem pode existir com o descaso. O amor tem que cumprir suas tarefas para ser feliz. O amor tem uma ética própria.
O filósofo diz que não deveriam existir monólogos amorosos, mas que é muito raro encontrar um bom interlocutor.
Uma boa conversa
Apesar de tão rara (ou, quem sabe, exatamente porque é rara), a conversa amorosa é um modelo desejado em quase todas as culturas existentes, e a sua ausência é vivida como um enorme fracasso individual e coletivo.
Marina acredita que nos enganamos ao dizer que o grande valor de nossos tempos é a liberdade. Para ele, o grande valor é a autonomia, ou seja, a capacidade de escolher nosso projeto de vida e realizá-lo.
Em uma relação amorosa, certamente, perde-se em parte a liberdade individual, mas, por outro lado, pode-se conquistar a autonomia, aumentar as possibilidades vitais e criativas de cada um dos amantes, despertar poderes adormecidos ou embrionários e construir um novo modo de vida.
Em tempos de banalização das relações amorosas, de extrema superficialização das pessoas, da ditadura do orgasmo obrigatório, de indivíduos infantis, chatos, preguiçosos, covardes e fracassados no amor e no sexo, o filósofo propõe a valorização profunda e terna da intimidade, a reciprocidade equilibrada entre os amantes, o cuidado, a admiração, a valorização e o respeito pelo outro, o exercício da capacidade de se deixar afetar e de afetar o ser amado.
Ele acredita que, mais do que necessário, é urgente desenvolver a capacidade de amar com ética. Só assim responderia positivamente à sua pergunta inicial: sim, é possível uma sexualidade feliz!
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