quinta-feira, maio 13, 2010

O direito de julgar

O direito de julgar
Roberto Romano
Na semana passada, em artigos publicados no Correio Popular e no jornal O Estado de São Paulo, discuti problemas como a censura, a crise no direito de expressão, os autoritarismos vários. É preciso indicar um traço da civilização que não tem sólidas bases em nossa terra: o direito ao livre juízo. Ao discutir a mentira, algo essencial no poder tirânico que recebeu o nome enganoso de Raison d´État, um dos maiores defensores do direito moderno, Grotius, assim escreve: “Da mentira, na medida em que é proibida por sua própria natureza (...) nenhuma outra explicação pode ser dada a não ser esta: ela viola um direito permanente da pessoa a quem o discurso ou sinais são dirigidos (...). O direito em questão não é geral ou derivado, mas específico a essa forma de permuta e nascido com ela. Não é outro que a liberdade de juízo que os seres humanos reconhecem, por uma espécie de acordo tácito, deverem uns aos outros em suas relações verbais" (De jure belli ac pacis, 3.1.11, citado por André Gombay,Descartes, São Paulo, Artmed Ed., 2009, página 111).
Quando jornais são proibidos de informar os leitores sobre um assunto coletivo, no qual se determina o roubo cometido contra o erário do Estado por dirigentes políticos ou pessoas privadas, nega-se à cidadania o direito de livre julgamento. Para bem ajuizar, indivíduos e grupos devem, obrigatoriamente, conhecer os fatos na sua maior profundidade e extensão. Ao censurar um órgão da imprensa, proibindo-lhe executar o seu munus, tribunais não apenas permitem que a sombra do sigilo obnubile o que, por definição, é público (o atentado contra os impostos pagos pelos contribuintes e que deveriam servir ao Bem Comum na saúde, educação, segurança, ciência e técnica, lazer, etc) como também violentam uma prerrogativa anímica sem a qual não existiria Estado democrático legítimo. Neste último, o povo soberano, superior aos poderes constituídos, tem direito de inspeção, julgamento e decisão contra os eleitos e os que aplicam a justiça em seu nome. Mas no Brasil, a soberania popular existe apenas na letra, a sua realidade não foi conquistada. Os abusos, a impunidade, a falta de respeito das autoridades (autoridade vem de ser autorizado, e se fôssemos uma república onde o povo seria soberano, autorizado por ele) diante do “cidadão comum”, provam o quanto não somos um Estado democrático (democrático vem da palavra grega demos, ou seja, povo).
Ao impor censura aos jornais, alguns juízes cometem (e peso muito bem as palavras) um pequeno golpe de Estado contra a soberania popular. Como em todos os golpes, os cidadãos são considerados menores que deveriam ser tutelados, seja pelas fardas, seja pelas togas, seja pelos partidos autoritários e totalitários. Ou, como ocorre na Venezuela, pelo fardado travestido de presidente.
Cito a Fundação Rei Balduino: “Se imprensa e justiça são os dois pilares da democracia, elas mantêm há muitos anos relações tensas, às vezes violentas. (...) Na Justiça é em especial a falta de transparência, de humanidade, de eficácia o que mais se objeta contra ela, sobretudo pela mídia. (...) A mídia invoca a liberdade de expressão, o direito à informação e o segredo das fontes, nos limites fixados pelas regras deontológicas e do direito, a Justiça lhe recorda muitas vezes, sobretudo no campo civil, que ela deve respeitar a vida privada, o direito de defesa, o segredo judiciário, a presunção de inocência. A partir daí, o destino dos jornalistas que operam no setor tem sido levar em conta toda uma série de sensibilidades específicas. Sensibilidade, pois, dos acusados, postos a nu diante do público. E sensibilidade dos policiais e juízes, ciumentos da eficácia de seu trabalho e também de sua autoridade. Mas também sensibilidade do público que possui direito a ser informado corrretamente.” (Presse e Justice, un Guide pour journalistes, http://www.presse-justice.be/home.php). É possível, com muita prudência, atenuar as tensões mencionadas. Mas sempre preservando as prerrogativas dos cidadãos: o direito de julgar. E sem livre imprensa, tal direito desaparece.

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