14/07/2010 - Cultura
Tensão na sinfonia
DLetícia Pimenta, na Veja Rio
Com seu apreço pelo rigor e pela excelência, o maestro Robert Minczuk implantou uma pesada rotina de trabalho na mais importante orquestra carioca. Além de melhorar a qualidade do conjunto, ele despertou a fúria dos músicos, com quem vive em permanente estado de guerra
Um simples convite para o Festival Internacional de Inverno de Campos do Jordão, o maior evento de música clássica da América Latina, provocou recentemente um motim na Orquestra Sinfônica Brasileira (OSB). Inconformados com as condições da apresentação, marcada para sexta 9, os músicos exigiam seu cancelamento. Estavam tão contrariados que enviaram uma carta ao conselho curador da instituição, formalizando o pedido e reclamando acintosamente da hospedagem na cidade de São José dos Campos, a 90 quilômetros do concerto. No texto da correspondência, a insatisfação se concentrava nos deslocamentos que seriam feitos e em como os trajetos deixariam todos exaustos. Nas entrelinhas, havia algo mais. A decisão de registrar a queixa foi um importante capítulo na queda de braço travada entre os instrumentistas e o paulista Roberto Minczuk, que há cinco anos comanda o processo de reestruturação do conjunto. Cansados do seu estilo linha-dura, de sua filosofia militar, das horas e horas de ensaios, os artistas tentaram uma manobra para constranger e enfraquecer o regente a poucos dias do término de seu contrato, que se encerra no fim do mês. Em vão. Encantado com seu desempenho, o conselho manteve o espetáculo na cidade paulista, em um claro respaldo à posição do maestro. E mais: já decidiu que vai renovar seu compromisso até 2015. Mas a tensão entre o dono da batuta e seus subordinados não deve diminuir por causa desse episódio. Ao contrário. Vai permanecer aguda até que um dos lados resolva ceder, um cenário improvável no momento. “Vou transformar esta orquestra em referência internacional até a Olimpíada”, planeja Minczuk, 43 anos. “Não pretendo desistir antes disso.”
Injetar ânimo novo em uma estrutura decadente, minada pelo comodismo, é provavelmente um dos desafios mais complexos em termos de liderança, seja em uma sinfônica, seja em uma empresa, seja em uma redação de revista. A resistência às mudanças é natural, uma reação instintiva por parte de quem se acostumou a viver em uma zona de conforto. O roteiro dessa ópera é conhecido. Um belo dia, alguém novo, em geral com um histórico completamente diferente do daqueles que ali estavam, chega e diz que tudo o que era feito antes precisa ser transformado. Os objetivos agora são outros. Os critérios de avaliação também. Quem antes estava por cima passa a ter de provar novamente o seu valor, e, nessa trajetória, alguns são mandados embora. Por tudo isso, é compreensível que o organismo afetado procure rejeitar, com todas as suas forças, esse “invasor”. Encarado como um forasteiro, Minczuk encarna esse papel à perfeição. Desde que assumiu a orquestra, em agosto de 2005, já enfrentou sucessivas rebeliões e demonstrações explícitas de desapreço. É acusado de instaurar um regime marcial, com uma rotina de longos ensaios e um altíssimo grau de exigência técnica. Dependendo do ponto de vista, poderia ser até admirado por tais características. Os músicos, no entanto, não estão nada felizes com o ritmo adotado. Eles reclamam da redução nas folgas e de tendinite. Dizem que ele é ríspido no trato e pouco sensível aos desejos do conjunto. Resumo da ópera: um déspota sem coração. “Ele é inacessível, mal escuta o que temos a dizer”, ataca um instrumentista que pediu para não ser identificado.
Clima pesado: os instrumentistas ficaram revoltados com ensaios antes dos jogos do Brasil
De fato, o regente não se incomoda em ser odiado. Imbuído da necessidade de mudança, uma de suas primeiras medidas foi demitir, logo de cara, 15% dos 91 componentes da OSB. Motivo: não eram suficientemente bons para permanecer em seu time. Na busca pela excelência, não sai do seu planejamento nem mesmo em situações extraordinárias, como a Copa do Mundo. Na sexta-feira 2, dia do jogo em que o Brasil foi eliminado pela Holanda, exigiu que todos participassem de um ensaio matinal entre 8 e 10 horas. A partida começava às 11. “São atitudes assim que nos deixam chateados. Ele é grosseiro, não abre exceções e trata mal todo mundo”, diz outro músico descontente. Firme nos seus propósitos, o maestro vê certo exagero nas críticas, mas admite que pauta suas ações pelo rigor. “Muitos reclamam que sou rígido. Mas sem pulso firme um barco como esse desanda. A posição de liderança nunca é fácil”, reconhece Minczuk. E fica particularmente mais complicada em uma estrutura na qual os instrumentistas sempre tiveram um grande poder de influência. Em movimentos muito semelhantes ao que o paulista enfrenta agora, eles conseguiram destituir Roberto Tibiriçá em 1998 e Yeruham Scharovsky em 2004. Em ambas as oportunidades, os antecessores não aguentaram a pressão que vinha de baixo. No caso atual, a contenda será bem mais difícil. “O que conta são os resultados. E isso ele tem apresentado”, diz o economista Eleazar de Carvalho Filho, diretor do conselho da OSB.
Em sua chegada, Minczuk encontrou uma sinfonia em escombros. Com salários atrasados, os músicos suspendiam o trabalho e as paralisações eram frequentes. O jovem regente e diretor artístico, então com 38 anos, deu início a um novo ciclo na instituição, que recuperou o prestígio e as finanças. Uma de suas primeiras medidas foi trazer o paulista Ricardo Levisky, ex-diretor de marketing da Osesp, para adotar no Rio as mesmas estratégias aplicadas em São Paulo. Deu certo. A OSB contava com seis empresas mantenedoras. Hoje são 33, entre elas a mineradora Vale, o grupo britânico Orient Express e as Organizações Globo. Devido aos patrocínios e ao número de apresentações, que saltou de 59 para 85 ao ano, a receita cresceu de 6,4 milhões para 35 milhões de reais. E os instrumentistas, que tanto reclamam, viram a remuneração média aumentar de 2 200 para 6 000 reais. É óbvio que, diante de tais circunstâncias, o padrão mudou — em todos os sentidos. Do ponto de vista artístico, o conjunto carioca tem incorporado ao repertório peças cada vez mais complexas. É o caso da faraônica 3ª Sinfonia do austríaco Gustav Mahler (1860-1911), a maior de todas já compostas, com uma hora e quarenta minutos de duração. A obra foi escolhida a dedo para ser mostrada em Campos do Jordão. Ao todo, Minczuk escalou mais de 100 componentes para o concerto, um coro adulto e o recém-criado coro infantil da OSB, composto de quarenta crianças. “Precisamos de desafios”, prega o maestro, que tem salário estimado em cerca de 100 000 reais mensais. FOTO: Avaliação de candidatos: a exigência cresceu, mas o piso salarial triplicou nos últimos anos
Sede da Filarmônica de Berlim: conflitos entre músicos e regentes
são comuns em outros países
No mundo da música clássica, a figura do regente todo-poderoso, acima do bem e do mal, é recorrente. O primeiro a encarnar seu papel, com status estelar, foi o italiano Arturo Toscanini (1867-1957), comandante de orquestras como a do Metropolitan Opera e a Filarmônica de Nova York. Famoso por seu perfeccionismo e por sua excepcional atenção aos detalhes, ele debutou no posto durante uma turnê no Rio de Janeiro, aos 19 anos, em 1886. Na ocasião, era violoncelista de uma companhia que encenaria a ópera Aída, de Giuseppe Verdi (1813-1901), no antigo Teatro Lírico, no centro da cidade. Em meio aos ensaios, uma crise envolvendo instrumentistas e cantores levou o maestro a abandonar o cargo (qualquer semelhança não é mera coincidência). Toscanini o substituiu por conhecer a obra em detalhes. Ele não usou nem mesmo a partitura para reger, um hábito que marcaria toda a sua carreira. Irascível, tirano no estilo de liderança, costumava chamar seus subordinados de cães. Outro condutor famoso pelo rigor com que tratava — e destratava — a equipe era o austríaco Herbert von Karajan (1908-1989), figura central da Filarmônica de Berlim por 34 anos, até sua morte. Considerado o maior do século XX, ele exigia ser tratado por “Herr Dirigent”. Nos rompantes de fúria, dizia que ia queimar os artistas vivos (veja o quadro abaixo). Toscanini e Karajan levaram ao paroxismo uma posição que começou a se consolidar em meados do século XIX, na passagem do barroco e do clássico para o romântico e o pós-romântico, quando as formações aumentaram drasticamente de tamanho. Sem a figura centralizadora, sem uma rígida hierarquia de posições e funções, seria praticamente impossível manter coeso e em alta performance um conjunto que chega a uma centena de componentes. “É uma relação sempre conturbada, não importam a orquestra ou o país”, minimiza David Zylbersztajn, membro do conselho curador da OSB. “Aqui não seria diferente.”
Muito do modus faciendi de Minczuk vem de sua biografia. Filho de um sargento da polícia militar, descendente de russos, o maestro aprendeu a tocar trompa aos 6 anos obrigado pelo pai, um apaixonado pelo tema. Nesse tempo, não podia sequer jogar futebol, para não perder o foco no instrumento. Aos 12 anos, de forma espetacular, conseguiu um lugar na OSB e, logo depois, ganhou uma bolsa de estudos na prestigiada Juilliard School, em Nova York. Nessa época, começou a reger na igreja que frequentava em Nova Jersey. Em 1987, desembarcou em Leipzig, Alemanha, onde ingressou na orquestra Gewandhaus, então comandada por Kurt Masur. O alemão o transformou em pupilo e foi um dos grandes incentivadores para que aceitasse o convite carioca em 2005. Antes disso, Minczuk já havia regido cerca de oitenta conjuntos internacionais, entre eles a Filarmônica de Londres e a de Israel, e três das “Big Five”, as cinco grandes americanas (esteve à frente da Filarmônica de Nova York, da Sinfônica de Filadélfia e da Sinfônica de Cleveland, faltando apenas Boston e Chicago para completar o ciclo). Ao longo de sua trajetória, sempre trabalhou de forma intensa. “Muitos me chamaram de maluco. Eu poderia morar em qualquer país, mas o desafio falou mais alto”, afirma o paulista, com a falta de modéstia típica dos bem-sucedidos. Pois seu objetivo agora, como ele mesmo disse, é transformar a OSB em referência internacional até a Olimpíada de 2016. Com isso, ganharão a cidade e os próprios músicos. Mas eles precisam compreender que se trata de um caminho sem atalhos. Afinal, toda excelência tem um preço.
Batutas polêmicas
Cinco maestros famosos pelo temperamento irascível e por arrumar encrencas nas orquestras pelas quais passaram
Arturo Toscanini (1867-1957)
Perfeccionista ao extremo, o maestro italiano é tido como o precursor dos regentes tiranos. Costumava chamar seus subordinados de cães. Uma das lendas a seu respeito diz que ele teria cometido um ritual de crueldade nos tempos de conservatório. Com a ajuda de colegas, ele matou, cozinhou e comeu o gato de um professor que odiava |
Herbert von Karajan (1908-1989)
Nascido na Áustria, é considerado o maestro mais poderoso do século XX. Simpatizante do nazismo durante a guerra, foi nomeado regente da Orquestra Filarmônica de Berlim em 1955. Ao assumir, anunciou: “Serei um ditador”. Famoso pelas broncas, disse certa vez que gostaria de jogar gasolina nos músicos e queimá-los vivos |
Sergiu Celibidache (1912-1996)
Antecessor de Karajan à frente da Filarmônica de Berlim, o romeno inspirava medo, a ponto de seu camarim ser chamado de “a jaula do leão”. Para um único concerto, ele podia exigir mais de dez ensaios. Conhecido pelo sarcasmo, não poupava farpas aos colegas. “Karajan proporcionou grande prazer à humanidade. A Coca-Cola também” |
Riccardo Muti (1941)
O maestro italiano comandou por 24 anos o Teatro alla Scala de Milão. Nesse período, elevou o padrão de qualidade da orquestra e revelou-se um eficiente captador de patrocínios. Em 2005, em assembleia, 700 dos 800 funcionários do teatro votaram pela sua destituição. Dono do apelido Monstro de Milão, costuma criar desafetos por onde passa |
Daniel Barenboim (1942)
Argentino naturalizado israelense, é maestro da Ópera Estatal de Berlim. É especialista nos três “B” (Bach, Beethoven e Brahms).Segundo as más línguas, ele se julga o quarto B. Certa vez, em um ataque de fúria, atirou uma partitura no rosto de um músico. Em 2002, foi preterido no posto de regente da Filarmônica de Berlim |
W. Eugene Smith//Time Life Pictures/Getty Images (toscanini), DEUTSCHE GRAMMOPHON/DivulgaçÃo (Karajan), STEPHAN JANSEN (Celibidache), Sigi Tischler/AP Photo/Keystone (Muti), divulgação (barenboim)
Buscar a perfeição...Isso é ruim? Eu não acho!
ResponderExcluirTrazemos em nós essa busca, como uma espécie de instinto, um impulso vital, que se orienta para o melhor, e se determina, em seu vértice, pelo desejo de felicidade perene. Mas, esta felicidade só nos será garantida se trilharmos o caminho da perfeição.
Se temos idéias e conceitos claros e profundos, em suma, convicções, chegaremos a transformá-las em atitudes.
Assumir uma convicção é adquirir tamanho apreço por uma idéia que, necessariamente, vai-se lutar por colocá-la em prática. E o Roberto Minczuk faz isso!
Os números não mentem!!!!
Aumentar o piso salárial, bolsas auxílio, orçamento, concertos, empresas mantenedoras e contratar mais músicos? Não é qualquer um que consegue!
O grande problema, é que no Brasil, as pessoas não estão acostumadas à seriedade...
Muitos pensam que ser músico é levar a vida na valsa... E digo...não é! Buscar o sucesso é algo cansativo, que precisa de dedicação!
Pessoalmente eu sinto orgulho em imaginar que o Brasil possa ter uma Orquestra com destaque mundial!
E mostrar que definitivamente não somos bons só de futebol, samba e mulheres!
Acredito que, cada músico que entrou na OSB, entrou porque quis! Ninguém foi obrigado a entrar na OSB... Então assumiu um compromisso! Que cada um cumpra o compromisso que assumiu! Se não estiver satisfeito, saia! Que dê chance a novos interessados, de mostrarem seu valor!
Esta reportagem, só mostra o profissionalismo, a garra e o quanto Roberto Minczuk é responsável, dedicado e tem amor ao que faz! Ser líder não é fácil! Ainda mais em um país como o Brasil onde muitos não gostam de ver o sucesso de outros!
BRAVO MAESTRO!!!!!
Concordo com vc, plenamente!
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