segunda-feira, agosto 30, 2010
Não deu no "New York Times"
Não deu no "New York Times"
Em um trecho inédito de seu novo livro sobre o Brasil, Larry Rohter analisa o futuro do país pós-Lula e FHC
Letícia Sorg - Época
Correspondente do The New York Times no Rio de Janeiro até agosto de 2007, Larry Rohter continua profundamente ligado ao Brasil. Casado desde 1973 com a brasileira Clotilde, ficou por aqui até março de 2008 para escrever seu primeiro livro sobre o país, Deu no New York Times (editora Objetiva). Hoje, aos 60 anos, vive em Hoboken, no subúrbio de Nova York, mas vem regularmente ao Brasil. De olho no interesse mundial pelo país, acaba de lançar um novo livro, Brazil on the rise (numa tradução livre, Brasil em ascensão), pela editora americana Palgrave Macmillan. A primeira obra era dirigida ao público brasileiro; esta é uma espécie de introdução para o público estrangeiro. “O interesse pelo Brasil já era grande em 2008, quando a editora decidiu fazer o livro, e desde então só aumentou”, disse Rohter a ÉPOCA. “Já sabemos até que haverá uma edição do livro em chinês.”
Apesar de alguns erros factuais – Rohter diz, por exemplo, que a ditadura militar “criou vários Estados novos” para diluir a importância de São Paulo e Minas Gerais no parlamento, uma inverdade –, o livro também é interessante para o leitor brasileiro se reconhecer (ou não) no espelho que o autor apresenta. Rohter – que cita apenas de passagem o episódio em que Lula quis expulsá-lo do país, em 2004 – vai muito além da política. Fala do que acha bom (a hospitalidade, o espírito empreendedor) e ruim (o jeitinho, o preconceito racial velado) na sociedade brasileira. Rohter diz que, depois desse livro, não deve voltar tão cedo a escrever sobre a política – mas planeja lançar biografias de figuras da história do país. Também tem um romance não acabado, ambientado no Rio de Janeiro.
Trecho - “Lula vai querer continuar mexendo os pauzinhos”
A fase final do governo de Lula tem sido caracterizada por uma espécie de triunfalismo, beirando a vanglória, que sugere que Dilma Rousseff possivelmente venha a enfrentar pressões para desviar-se da rota dos últimos 16 anos. O discurso público do PT prega que todas as conquistas recentes do Brasil devem-se exclusivamente à sabedoria de Lula e suas políticas, uma postura que ignora tanto as enormes contribuições de FHC quanto o boom internacional das commodities nos últimos anos, liderado pela China, que ajudou a turbinar o desenvolvimento do Brasil. A convicção de que Lula e o Partido dos Trabalhadores são infalíveis e possuem uma espécie de toque de Midas ajuda a explicar tanto a iniciativa diplomática fracassada junto ao Irã, em maio, quanto o clamor crescente dentro do partido para manter sob a asa do Estado a dádiva do petróleo e do gás do pré-sal – sentimentos que devem aumentar se o partido conquistar um terceiro mandato. Os escritos de Dilma sobre economia, nebulosos em relação a questões básicas como o papel do Estado e da iniciativa privada, reforçam essa impressão.
Mais preocupante, talvez, na hipótese de uma vitória de Dilma, seja a possibilidade de uma recidiva de seu câncer, que a obrigue a um tratamento médico ou a debilite a ponto de ter de deixar o cargo em favor de seu companheiro de chapa, Michel Temer, do aliado PMDB. De certa forma, Temer lembra muito José Sarney, o vice-presidente empossado com a morte de Tancredo Neves em 1985: um articulador extremamente hábil, com parco conhecimento econômico e, segundo seus críticos, um senso ético inconstante. Quando o PT o indicou como companheiro de chapa de Dilma, Temer fora citado em duas investigações de corrupção: uma sobre uma empreiteira, em que seu nome aparecia como suposto beneficiário de propinas, e outra sobre os pagamentos do mensalão. Temer nega conexão com qualquer prática ilegal. Atribuiu as acusações a maquinações de rivais. Mas nunca ficaram claras suas convicções firmes, se é que as tem, sobre as questões políticas e econômicas que o Brasil tem pela frente.
E embora Lula esteja terminando o segundo e último mandato presidencial que a lei lhe autoriza, sua carreira política talvez ainda não tenha acabado. O que ele vai fazer, exatamente, depende em grande parte do resultado da eleição, mas é improvável que ele se refugie numa aposentadoria silenciosa. Na hipótese de uma derrota do PT, Lula automaticamente se tornaria o grande favorito para ser o indicado de seu partido à Presidência em 2014. A Constituição brasileira permite que ex-presidentes concorram a um terceiro mandato, contanto que um mandato tenha transcorrido desde sua saída. A popularidade de Lula continuará alta depois que ele deixar o cargo, e ele fará 69 anos no mês da eleição de 2014 – quase exatamente a idade que Getúlio Vargas tinha quando iniciou seu último mandato.
Mesmo que Dilma vença, Lula provavelmente vai querer continuar mexendo os pauzinhos no partido, no papel de fazedor de reis, mais que de velho estadista. Impossível prever até que ponto irá esse desejo. Dilma deve sua ascensão quase exclusivamente a ele. Especula-se que Lula veja o governo Dilma como mero interregno. Difícil imaginar um presidente em exercício cedendo seu lugar a Lula em 2014 sem que irrompa uma feia disputa interna. Mas coisas estranhas aconteceram no passado, e há um precedente logo ao lado. Em 2007, Nestor Kirchner desistiu de um segundo mandato como presidente da Argentina e permitiu que sua mulher, Cristina, concorresse. Talvez seja a isso que Lula se refira quando fala de sua relação “de pai para filha” com Dilma.
No mínimo, Lula vai querer continuar a ter voz na política e nas nomeações, caso o PT permaneça no poder. O partido não terá escolha senão aquiescer. Lula é seu único líder desde a fundação. Nem ele nem os demais chefes do partido primaram em formar uma geração de líderes que pudesse suceder a ele. Para o bem e para o mal, o PT está identificado a uma única pessoa, e seu destino ainda depende muito da imagem e da presença de um líder que os eleitores consideram mais popular e confiável que o partido que ele representa.
O panorama para o PSDB, o outro grande partido nacional, é bem diferente. Ele não carrega o fardo de um culto à personalidade e tem maior coerência ideológica. Mas tampouco tem um grande líder popular que personifique o partido, transmita sua mensagem e empolgue os eleitores. Da sede de sua fundação no centro de São Paulo, FHC continua envolvido na política interna do partido e, de fato, às vezes tenta exercer o papel de fazedor de reis. Mas ele não é a única autoridade do partido. Um de seus legados foi não só ter permitido, mas até cultivado e incentivado o surgimento de centros de poder concorrentes, ciente de que é uma atitude necessária para que o partido não desapareça com ele. Disso resulta que às vezes os próprios desejos de FHC não se concretizem, e sua voz, embora frequentemente a mais forte, seja apenas uma entre várias no partido.
Dos jovens líderes que surgiram desse viveiro, o que parece mais promissor é Aécio Neves. Neto do ex-presidente Tancredo Neves, além do sobrenome famoso Aécio tem outros trunfos, entre eles a boa aparência e o charme pessoal. Suas maiores qualidades, porém, são a habilidade política refinada e o ótimo retrospecto como administrador. Ao fim de seu primeiro mandato como governador, Aécio pôde anunciar que Minas Gerais estava de volta ao déficit zero. Ele anunciou que concorreria à Presidência em 2009, mas desistiu e candidatou-se ao Senado, que dará a Aécio não apenas uma tribuna política segura para os próximos anos, como lhe garantirá a exposição nacional necessária para uma candidatura presidencial bem-sucedida. Qualidades de líder certamente não lhe faltam. Em 2002, quando Howell Raines, então editor executivo do The New York Times, visitou o Brasil, marquei um almoço no Copacabana Palace com Aécio, na época presidente da Câmara. Bronzeado, cordial, transbordando confiança, Aécio dominou a conversa. Quando acabamos e ele foi embora, perguntei a Raines o que ele tinha achado. “Acho que acabei de almoçar com um futuro presidente do Brasil”, ele respondeu, uma avaliação que muitos fizeram e têm feito. Salvo um problema de saúde ou um inesperado escândalo pessoal, a única questão parece ser quando Aécio cumprirá essa profecia.
Mas, enquanto não ocorrer uma profunda reforma política, nenhum chefe de Estado brasileiro, qualquer que seja seu partido, pode sonhar em se tornar um administrador verdadeiramente moderno. Embora a economia tenha sido lançada no século XXI como resultado das mudanças ocorridas desde o fim da ditadura, o sistema político continua atrasado, prisioneiro de práticas antiquadas. Essa brecha abismo até aumentou nos últimos anos, e a riqueza cada vez maior ameaça alargar ainda mais a disparidade. Novos bilionários e os grupos que eles controlam se mostram cada vez mais ousados no uso de sua influência para corromper os princípios democráticos e promover seus interesses mesquinhos.
Para dar certo, as reformas têm de incluir vários elementos pleiteados há anos por cientistas políticos brasileiros e instituições pró-governança responsável. Um bom começo seria proibir, ou pelo menos dificultar, a mudança de partidos por parte de ocupantes de cargos eletivos. O voto distrital, que evitaria que os candidatos ao Congresso ou às assembleias legislativas concorressem no Estado inteiro, pode ser uma medida de vasto alcance – assim como a escolha de candidatos em primárias, em vez dos conchavos de bastidores que predominam no processo atual. Redistribuir as cadeiras no Congresso, na proporção do tamanho do eleitorado de cada Estado, também ajudaria, ao reduzir o poder dos Estados do Nordeste, ainda dominados por oligarquias familiares, e premiar Estados como São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, onde o eleitorado é maior, mais instruído e mais propenso a pedir o fim dos abusos e das práticas atrasadas.
Mas a aprovação e a aplicação de uma lei de financiamento de campanhas severa seria, provavelmente, a mudança mais transformadora. Do jeito que é hoje, nem os candidatos nem os partidos declaram todas as doações que recebem, um estado de coisas que incentiva as contribuições clandestinas, abuso e corrupção generalizados.
A política brasileira sofreu transformações profundas, na grande maioria para melhor, desde que cheguei ao país pela primeira vez, 40 anos atrás. No fim, aconteceu o que os militares no poder naquela época mais temiam: um líder trabalhista de esquerda foi eleito presidente. Mas a instabilidade do começo dos anos 1960, que derrubou a democracia, não voltou a ocorrer, um sinal da maturidade política do Brasil. Políticos eleitos podem dizer livremente o que pensam, sem temer ir para a cadeia ou perder seus direitos. A imprensa é ruidosa e combativa, o Judiciário não hesita em criticar e refrear o Executivo, e grupos cívicos, religiosos, profissionais e ambientais passaram a desempenhar papéis no processo governamental.
A democracia brasileira pode ser barulhenta, confusa e imperfeita, mas no geral tem estado a serviço do povo brasileiro. O desafio, agora, é juntar coragem para ir um passo além e pôr fim aos vestígios de práticas autocráticas centenárias – sob ameaça de perder o apoio do eleitor e pôr em risco o progresso obtido nos últimos 25 anos.
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