terça-feira, setembro 07, 2010

Gandhi e a ética na comunicação

Gandhi e a ética na comunicação
Por Evandro Ouriques*, para a Plurale
Em uma conhecida lista de discussão a respeito de ética e mídia alguém qualificou Mahatma Gandhi e Dom Hélder Câmara de"falsos profetas", chegando a esta conclusão inquietante, e sintomática como procurarei mostrar, apenas avaliando dois pensamentos destes homens, que haviam sido gentilmente postados na lista por outra pessoa.
Dom Hélder foi considerado "falso profeta" por ter dito algum dia que "o segredo para ser e permanecer sempre jovem, mesmo quando o peso dos anos castiga o corpo, é ter uma causa a que dedicar a vida". Isto foi considerado um sofisma, pois para se viver se precisaria saúde, e em relação a se ter uma causa para isto, foi recomendado cuidado, pois Hitler também "tinha, e bem definida, uma causa". Por sua vez, o crime de Gandhi foi ter dito, também um dia, que "a satisfação está no esforço e não no resultado final". Esse princípio, central no pensamento gandhiano, foi considerado uma "falácia", pois "em qualquer atividade o importante é o resultado".
Eles foram assim sumariamente julgados e condenados em exatas 57 palavras, incluindo a assinatura da mensagem a qual analiso: tanto Gandhi, o homem prático que recusou os modelos simplificadores e criou uma ética operacional política que libertou os "intocáveis" e a Índia por meios não-violentos, fundando assim um novo regime político e um Estado, e pondo a pá-de-cal no Império Britânico; quanto Dom Hélder, o ganhador do exigente Prêmio Popular da
Paz, defensor enérgico da Teologia da Libertação e da Não-violência durante a sombria Ditadura Militar brasileira.
Reflitamos um pouco sobre este caso. O que Gandhi -que nunca foi profeta, quanto mais falso- fez ao falar do desapego em relação ao resultado das ações, é negar o produtivismo, essa mentalidade doentia que, hoje de forma ainda mais intensa do que nos dias gandhianos, sincroniza os aspectos sombrios do capitalismo tardio com a irreferência da pós-modernidade, paradoxalmente referenciada no "livre" exercício de quaisquer desejos, cuja legitimidade é apenas a de sentí-los, e no dinheiro como equivalente geral, como Marx o denominava.
O que está em vigência hoje, sabe-se bem, é a mercantilização absoluta das relações, (como se tal fosse inevitável...) quando nos obrigamos a calcular o lucro que cada ação e cada relação nossa nos trará, para que o acumulemos, como se isto fosse ‘felicidade’. É esta mentalidade, precisamente, que fez com que a cultura de comunicação fosse depreciada diante da atual cultura da informação, pois a experiência de comunicação, jea mostrou brilantemente Marcio Tavares d’Amaral, é aquela da ordem da diferença, e, portanto, aquela que se produz apenas no entre, nas relações, na surpresa e na entrega da verdadeira conversa, do diálogo, de fato.
A cultura da informação, ao contrário, é exatamente a que se constrói no dirigir-se a, ou seja, é aquela a qual só interessam os ‘resultados’ da atividade, que serão obtidos junto à audiência pela transmissão da informação dirigida a ela, da maneira a "mais eficaz possível". É daí que temos a cultura da eficácia, do produtivismo, e o entendimento da Comunicação não como 'communication' mas apenas como 'communications', ou seja, apenas como 'meios de comunicação', como 'mídia', ‘meio(s) de persuasão’. (Im)puro convencimento.
Lembro como esta perspectiva alimenta a insustentabilidade e o autoritarismo patriarcal, já que é ela que o sustenta ao garantir o esquecimento da experiência -sempre livre e desinteressada, repito- da comunicação (pois nunca podemos saber onde as conversações nos levam) em prol da ação interessada no mundo, da redução da complexidade da Vida e do mundo à unidimensionalidade do mercado, do sujeito a consumidor e do pensante a idiota, seja lá qual for a cor de sua pele.
É importante observar que é exatamente no tempo da mentalidade imperativa dos resultados que os resultados ambientais e sociais são os que bem sabemos. Ou seja, quando afirmamos que ‘We get what we measure’ em verdade deveríamos afirmar que obtemos o que deixamos de medir: a felicidade verdadeira, a justiça verdadeira, a possibilidade de criarmos um outro mundo em que os impulsos destrutivos sejam dominados pela vontade.
Gandhi fala exatamente do disto. Ele não age porque vai ‘ganhar’ alguma com isso no sentido vulgar. Ele age porque este comportamento é da ordem da ‘ética’. É ético, ou seja, faz parte do fio que sustenta a sociabilidade, que sustenta a Vida, como mostra tão bem Humberto Maturana ao verificar laboratorialmente que o amor é a base do biológico e do social. E, por ser ético, e por ético ser esta sustentação, o comportamento basta a si próprio, não necessitando de nenhum resultado idealizado como ‘objetivo’.
Se alguém está entendendo estas rápidas considerações como mera’ divagação’, o que é compreensível pela falta de hábito desenvolvimentista de pensar, ainda mais por sua dificuldade de pensar de maneira profunda, o que demanda tempo, sublinho que do ponto de vista o mais pragmático de fato que seja, é através do desapego dos resultados da ação que podemos eliminar, por exemplo, a correspondente frustação e depressão -um dos padrões psiquícos mais presentes na humanidade hoje, com as decorrentes violiencia contra si e contra o outro- que teremos que incorporar e administrar se vivemos na expectativa do reconhecimento alheio para cada atitude nossa.
Generosidade é outro nome deste desapego, que certamente é da ordem da Sustentabilidade e das Poleiticas Públicas Sociais, que falam, como o Fórum Social Mundial, que um outro mundo é possível, o que demanda que um outro conceito de comunicação seja possível.
A precipitação de tal julgamento infeliz feito na referida lista me faz lembrar de todos os meus próprios julgamentos infelizes, que acabaram por me convencer, inclusive a partir do exemplo de pessoas extraordinárias como Gandhi e Dom Hélder, que se queremos ética, e consequentemente ética na comunicação, devemos avaliar sempre de maneira profunda e vagarosa tudo o que se apresenta, ou seja pela gestão de nossos estados mentais (pensamentos, afetos e percepções), pois, como se sabe, a superficialidade promovida pela velocidade extrema é exatamente pilar da cultura tecno-lógica, na qual a tecnologia tornou-se a própria lógica de tudo. E, pro isto, acabamos sendo pensados e sendo sentidos pelo discurso que nos atravessa e que, pelo hábito e pela suposta ‘objetividade apressada’ em obter ‘resultados’ com nossas atividades, terminamos tragicamente acreditando ser nosso enfrentando os devastadores resultados psíquicos, sociais e ambientais.
Neste sentido, em relação a Gandhi, por exemplo, sugiro para os que querem superar o jugo do deste padrão mental insustentável ("o estado de espírito bárbaro está em cada um de nós", citando Maffesoli), a leitura de O caminho é a meta, Gandhi hoje, de Johan Galtung (Editora Palas Athena, 2003). Ele é o pioneiro e renomado cientista social especialista em estudos para a paz e teoria dos conflitos, que atua nas universidades do Havaí, de Witten/Herdecke, de Tromsoe e na Universidade Européia da Paz, e fundador da Transcend (transcend.org), e que já trabalhava pelo jornalismo para a paz na década de 70. Antes, portanto, de grande parte dos participantes desta lista, suponho, ter nascido.
O que Gandhi fez, em suma, foi constituir uma moral pelo exemplo, aplicando à sua própria vida as reformas que pregou e conclamando os cidadãos a demonstrarem a capacidade política de se governarem, através do exercício diário do auto-domínio, estimulando o outro, através do exemplo, a modificar o seu comportamento: lutando, portanto, primeiro contra si próprio para dominar-se em relação por exemplo à sequência mental eu-quero-porque-quero (a lógica do consumo) e dessa forma ganhar ascendência sobre si; a maneira, aí sim, mais eficaz de nos livrarmos da obsessão do interesse e do poder auto-referenciados e de seus nefastos resultados.
*Evandro Vieira Ouriques é Colunista de Plurale, colaborando com artigos sobre Sustentabilidade. Coordenador do Núcleo de Estudos Transdisciplinares de Comunicação e Consciência da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (NETCCON.ECO.UFRJ), consultor organizacional, coordenador do curso Jornalismo de Políticas Públicas Sociais (NETCCON.ECO.UFRJ e ANDI – http://territoriojpps.ning.com), é criador da metodologia Gestão da Mente Sustentável, o Quarto Bottom Line, pós-doutor em Comunicação, Estados Mentais e Ação no Mundo, pelo PACC.FCC.UFRJ, e diretor de Comunicação e Cultura do Núcleo de Estudos do Futuro da PUC-SP - evouriques@terra.com.br - @EvandroOuriques  (Envolverde/Revista Plurale)

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