quarta-feira, maio 05, 2010

Lições de um assalto

Lições de um assalto
Aziz Filho - O Globo - 05/05/2010

Há 50 anos, quando perdeu os privilégios da corte, a cidade do Rio de Janeiro teve de assumir a liderança de um estado que era o atraso em forma de gente. Se Deus não fosse conterrâneo, o carioca não teria resistido aos dois golpes.  Mas, de carnaval em carnaval, a excapital foi cumprindo seu destino de cartão-postal. Logo veio o cerco militar ao que há de mais precioso por aqui: o conhecimento. Foram duas décadas de perseguições e sambas no escuro. Quando o petróleo do antigo Estado do Rio começou a fazer diferença, os constituintes de 88 o transformaram no único produto sem cobrança de ICMS na origem. As outras pragas já estavam na primeira página: tráfico, violência, a praga da descontinuidade e o calvário de desavenças com o poder central. De tombo em tombo, o Rio chegou quase inteiro ao século XXI, quando a sorte começou a dar o ar de sua graça. O Cristo virou cartaz nas agências de viagem. Nas favelas, o que parecia impossível começou a acontecer, com a expulsão de traficantes. Ao derrotarem americanos, japoneses e espanhóis na disputa por 2016, os brasileiros voltaram a se encantar por sua cidade natal. O presidente chorou e o carioca bebeu até cair. Para completar, o Flamengo foi campeão e os gays fizeram da cidade o melhor destino do planeta. Na apoteose, a Unidos da Tijuca abriu nova era para o carnaval, 21 anos depois de Joãosinho Trinta abençoar a BeijaFlor com o enredo “Ratos e urubus, larguem a minha fantasia”. No carnaval de 2010, a escola de Nilópolis cantou parabéns para Brasília. Entrou na Sapucaí com medo de ser vaiada por causa das estripulias de José Roberto Arruda. Mas o carioca celebrou seu martírio com aplausos. Parecia curado do trauma, otimista depois de 50 anos. Foi então que, em Brasília, 369 deputados votaram para tirar 7 bilhões por ano da primeira cidade olímpica da América do Sul. Um tiro de misericórdia que destrói o Rio para dividir entre 5 mil municípios migalhas tão teatrais como as que a escola de samba Grande Rio espalhou na Avenida este ano para homenagear os ratos e urubus da Beija-Flor de 1989. Caso os estadistas que existem no Senado não consigam barrar a emenda Ibsen e ela não seja vetada, mais uma vez poderá cair nas mãos do Supremo a oportunidade honrosa de recolocar a República no seu devido lugar, estampando a inconstitucionalidade do assalto. Mas a luta fratricida na qual o deputado Ibsen Pinheiro tentou jogar a Federação terá deixado lições valiosas. A maior delas talvez seja a importância de um Judiciário forte e resistente a ratos, urubus e políticos nanicos.
AZIZ FILHO é jornalista.

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