Conto “Lodaçal”, de André Sant’anna, do livro “Essa História Está Diferente – Dez Contos Para Canções de Chico Buarque”, organizado por Ronaldo Bressane
Brejo da Cruz
Chico Buarque
a novidade
que tem no brejo da cruz
é a criançada
se alimentar de luz
alucinados
meninos ficando azuis
e desencarnando
lá no brejo da cruz
Eletrizados
cruzam os céus do brasil
na rodoviária
assumem formas mil
uns vendem fumo
tem uns que viram jesus
muito sanfoneiro
cego tocando blues
uns têm saudade
e dançam maracatus
uns atiram pedra
outros passeiam nus
mas há milhões desses seres
que se disfarçam tão bem
que ninguém pergunta
de onde essa gente vem
são jardineiros
guardas-noturnos, casais
são passageiros
bombeiros e babás
já nem se lembram
que existe um brejo da cruz
que eram crianças
e que comiam luz
são faxineiros
balançam nas construções
são bilheteiras
baleiros e garçons
já nem se lembram
que existe um brejo da cruz
que eram crianças
e que comiam luz
Ocaso, e o Brejo da Cruz é uma cidade, é uma aldeia, é um lodaçal, é umas quatro/cinco casas, é nada, é um brejo em cima de um campo de futebol submerso pelo lodaçal com uma cruz bem no meio do círculo central que nunca fora traçado no campo de terra seca rachada, onde antigamente nunca chovia, antes, até o dia em que um cara, meio padre, meio cangaceiro, mandou acabar com esse negócio de futebol e levantar uma cruz bem em cima do círculo central inexistente daquele lugar meio aldeia, meio campo de futebol, meio nada, fazendo com que, depois de erguida a cruz, passasse a chover demais sobre o campo de futebol sem círculo central, e só sobre o campo de futebol sem círculo central, por milagre de Deus, que existe, fazendo com que o meio nada, o meio cidade de quatro/cinco casas, se tornasse um brejo com uma cruz no meio e sapos, onde chove muito, chove sempre, chove o tempo todo, sem parar, em cima da cidade, da aldeia, das quatro/cinco casas, apenas lá, em cima do campo de futebol lodaçal e quase nunca ao redor, um redor onde só chove raramente, onde há nada, onde há algumas poucas plantações de maconha de uns caras que só aparecem de vez em quando para colher maconha, para plantar maconha, para tratar mais ou menos da maconha e só.
Ocaso, e o Chiquinho e o Toninho ainda não comeram nada neste dia, já que o Chiquinho e o Toninho e todo mundo no Brejo da Cruz só comem sapo, já que nem rã há naquele brejo com uma cruz no meio, e o Chiquinho e o Toninho não aguentam mais comer sapo, mas é ocaso e a lua está nascendo cheia, e há a luz da lua e o Chiquinho e o Toninho sentem um troço por dentro, que não é fome, já que o Chiquinho e o Toninho já estão acostumados a não comer sapo, que é uma comida que enjoa logo, que é um bicho que quase não tem carne, já estão acostumados a não comer, já estão acostumados a comer nada, já estão ficando acostumados a sentir um troço por dentro, que é um troço que dá neles sempre que a luz da lua aparece cheia no ocaso. O Chiquinho e o Toninho não comeram nada, o Chiquinho e o Toninho nem têm vontade de comer nada.
Ocaso, e o Chiquinho e o Toninho andando nada adentro, nada afora, o sol sumindo, a lua subindo cheia, aquele troço, aquela luz, lua e estrelas.
Lua, estrelas, o Chiquinho, o Toninho e o maconhal já meio afastados do Brejo da Cruz.
Nas bandas do Brejo da Cruz, criança é nada. Tudo nada. A lua, as estrelas e os pés de maconha seriam nada também, não fosse o troço que dão no Chiquinho e no Toninho e no pai do Chiquinho e no pai do Toninho e em todo mundo que é criança ou já foi criança no Brejo da Cruz.
Pode ser muito bom ser nada. E o bom de ser nada, o bom de só se ter sapo pra comer, o bom do nada é que tudo tanto faz, mas normalmente não é muito bom. Tudo, no nada, é vida interior. Poesia isso?
Luz da lua e das estrelas?
O Chiquinho é bem fissurado, gosta demais desse troço que dá, e acaba de puxar, do shorts meio rasgado, meio nada, aquela página inteira de jornal de há quinze anos, cheia de notícias e opiniões e de um monte de palavras e significados que, para o Chiquinho, significam nada, e o Chiquinho vai direto no pé de maconha, pega um punhadão de maconha assim, rasga a página de jornal no meio, joga a metade do punhadão de maconha assim numa metade da página de jornal e a outra metade do punhadão de maconha assim na outra metade da página de jornal.
Noite, luz da lua cheia, o Chiquinho, o Toninho e dois charutões enormes de maconha sem valor comercial.
No Brejo da Cruz, mato vale nada, custa nada. É só catar no pé, quanto quiser, quanto o Chiquinho quer. E o Toninho de noite sob a luz da lua. No Brejo da Cruz, maconha não tem preço, custa nada. O problema é fósforo. O Chiquinho e o Toninho têm uma caixa com três palitos. Depois, só Deus sabe... Deus existe, mas não se importa com palitos de fósforo, não se importa com crianças sem comida sentindo um troço, e caixas de fósforos só aparecem no Brejo da Cruz quando aparece alguém de alguma fazenda meio distante para escravizar alguma criança. Nessas raras ocasiões, as crianças deixam de valer nada e passam a valer um punhado de caixas de fósforos, um punhado de maços de cigarros, um punhado de qualquer coisa que valha um pouco mais do que nada. E o problema das caixas de fósforos no Brejo da Cruz é a baixa produção de crianças próprias para o consumo. Quatro/cinco casas, quatro/cinco famílias é muito pouca matéria-prima para a produção de crianças próprias para o consumo.
Então, caçadores de escravos, progresso e caixas de fósforos aparecem muito pouco mesmo no Brejo da Cruz.
Retirado do livro “Essa História Está Diferente – Dez Contos Para Canções de Chico Buarque” (Companhia das Letras)
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