terça-feira, agosto 31, 2010

A crueldade do apedrejamento

A crueldade do apedrejamento

Folha de São Paulo - 30/08/2010
Antiga pena capital islâmica provoca amplos protestos no mundo
MARKUS SCHREIBER/ASSOCIATED PRESS
O apedrejamento pode ser uma das mais antigas formas de execução no mundo, e certamente está entre as mais bárbaras.
Dois casos recentes atraíram a atenção mundial. Em meados de agosto, um jovem casal foi apedrejado até a morte no Afeganistão por tentar fugir, em um grave sinal do ressurgimento do Taleban. 
Em julho, criou-se uma campanha internacional para defender Sakineh Mohammadi Ashtiani, uma iraniana que foi condenada à morte por lapidação, acusada de adultério.
Grande parte da indignação que esses casos provocaram -além do simples anacronismo do apedrejamento no século 21- parece derivar do abismo entre as atitudes no Ocidente e em partes do mundo islâmico, onde alguns movimentos recorrem a punições draconianas, e uma visão de restaurar um passado longínquo na busca pela autenticidade religiosa.
O apedrejamento de adúlteros destinava-se antigamente a evitar os nascimentos ilegítimos, que poderiam manchar as linhagens tribais masculinas da Arábia medieval. Mas hoje está ocorrendo em um mundo onde as mulheres pedem liberdades reprodutivas, salários igualitários e a mesma posição social que os homens, inclusive em partes do mundo islâmico.
Essas perspectivas contraditórias ficaram claras em julho, quando o Brasil se ofereceu para dar asilo à mulher iraniana condenada por adultério. O caso tornou-se um embaraço para o governo de Teerã, que valoriza seus laços diplomáticos com Brasília. 
As autoridades iranianas rapidamente redefiniram o crime de Ashtiani como assassinato, em uma aparente tentativa de legitimar seu caso. Ela ainda poderá ser apedrejada ou enforcada.
O Taleban se definiu na década de 1990 com sua versão incrivelmente dura e amplamente contestada da lei islâmica, pela qual as lapidações por adultério tornaram-se comuns. 
Uma lapidação praticada neste mês por centenas de aldeões na Província de Kunduz indicou para onde o Afeganistão parece rumar.
"Não há como dizer quantas lapidações ocorreram, mas foram generalizadas" quando o Taleban governou, disse Nader Nadery, alto comissário da Comissão Independente de direitos humanosdo Afeganistão. "Muitas vezes o homem escapava e só a mulher era castigada, especialmente se ele tivesse conexões ou fosse um membro do Taleban."

A lapidação não é praticada apenas entre os muçulmanos, nem começou com o islã. Grupos dedireitos humanos dizem que uma jovem foi apedrejada até a morte em 2007 na comunidade Yazidi do Curdistão iraquiano, que pratica uma antiga religião curda. 
O Antigo Testamento inclui um episódio em que Moisés ordena que um homem que violara o Shabat fosse apedrejado, e esse ato provavelmente ocorreu entre comunidades judias no antigo Oriente Médio. A lei rabínica, que foi composta a partir do século 1° A.C., especifica a lapidação como uma pena para diversos crimes.
Alguns muçulmanos queixam-se de que o apedrejamento é transformado em escândalo no Ocidente para prejudicar a reputação do islã em geral. 
A maioria dessas punições severas é realizada pelo Taleban e outros grupos radicais que, segundo muitos estudiosos, têm pouco conhecimento real da lei islâmica. A lapidação é uma punição legal somente em alguns países muçulmanos -Irã, Arábia Saudita, Somália, Sudão, Paquistão e Nigéria-, mas raramente é usada.
A lapidação não é prescrita pelo Corão. Essa punição tem origem nas tradições legais islâmicas que a designam como pena para o adultério. Embora o castigo possa parecer selvagem para o Ocidente, estudiosos dizem que é coerente com os valores da sociedade árabe na época de Maomé, o profeta fundador do islamismo.
O adultério "era considerado uma ofensa a alguns dos propósitos fundamentais da lei islâmica: proteger a linhagem, a família, a honra e a propriedade", disse Kristen Stilt, professora da Universidade Northwestern, que escreveu sobre a lei islâmica. 
Isso pode ajudar a explicar a ligação entre crimes sexuais e apedrejamento, em oposição a outras formas de execução. Um crime que parecia violar a identidade da comunidade exigia uma reação comunitária.
Os líderes iranianos são claramente indecisos quanto à lapidação, que ajudou a obscurecer a reputação de seu país. Advogados iranianos que estiveram envolvidos nesses casos dizem que até cem lapidações foram efetuadas desde a revolução, mas que a prática está se tornando menos comum.
Atualmente, há pelo menos dez pessoas nas cadeias do Irã condenadas à lapidação, setemulheres e três homens, eles acrescentaram.
Existe uma vigorosa campanha interna contra o apedrejamento no Irã, conduzida principalmente por mulheres. No Afeganistão, essa pena parece estar em ascensão, apesar de ser impopular.
"Vemos um aumento nessas chamadas aplicações da justiça pelo Taleban em casos de moral", disse Nadery. "Nos últimos sete meses, 200 pessoas foram mortas por demonstrar reprovação ou criticar os atos do Taleban."

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