domingo, dezembro 26, 2010

Odylo entre objetos

Odylo entre objetos
JOSÉ CASTELLO – O Globo – Prosa e Verso
Há um sistema de objetos frios e impenetráveis que circundam o poeta. Uma constelação indiferente, mas da qual ele não se livra, tanto que — nave em descontrole — ela persiste e avança em sua viagem rumo ao poema. O poeta não passa de um prisioneiro dos objetos. Para o melhor, ou o pior, eles definem a poesia que escreve. A imagem dessa constelação de objetos inacessíveis, mas mortais, me vem durante a leitura da “Poesia completa”, de Odylo Costa, filho, que seu filho Virgilio Costa organizou para a editora Aeroplano. Odylo, poeta injustamente esquecido — ele mesmo, projetado para fora de si, parecendo um objeto que o circunda. “Coisificado” — se diria nos anos 1950.
Odylo Costa, filho nasceu em 1914, em São Luis do Maranhão, e faleceu aos 65 anos incompletos, no Rio. A grafia de seu nome, de que nunca abdicou (não Odylo Costa Filho, mas o “filho” em minúscula, a vírgula a separá-lo do nome), indica, talvez, a atenção que o poeta conferia a esse mundo paralelo, barrado pela vírgula cortante. De um lado, o nome, herdado do pai, Odylo de Moura Costa. De outro, a filiação — a herança, essa longa série de laços inertes, mas persistentes —, isto é, o “filho”.
Filho de que? A poesia de Odylo está repleta de pistas delicadas, mas visíveis. Um passeio pelo índice da “Poesia completa” oferece uma rota de sinais. A noite, que arrasta o passado. As cartas de amor, as cantigas de amigo, as memórias da cidade natal, extensa cadeia afetiva que alimenta os poemas. Os anjos, a vida de Nossa Senhora, os bichos no céu, sistema de objetos do culto religioso. Correntes,
longas caudas de vestimentas antigas, os panos reparadores da fé. Tudo o que um poeta carrega.
Penso em outros poetas. Muitos reclamam do catolicismo caseiro que pinga dos versos de Adélia Prado; da loucura latente, mas atordoante, que lateja nos poemas de Hilda Hilst; da fé política que alimenta a poesia de Ferreira Gullar; do lastro primitivo sobre o qual avança Manoel de Barros. Muitos os vêem como vícios, a serem no máximo perdoados. Ou como sintomas — talvez graves — de ordem psíquica. Alguns, ainda, os tomam simplesmente como defeitos, que diminuem a poesia. Servem, enfim, de agasalhos ou mordaças, com que os confinamos em longas séries de tradições, de escolas poéticas, de “fases”.
 Grilhões do nome, dos quais um poeta não se livra. Se o poeta os abandona, mata-se. Basta ver o caso de Fernando Pessoa, estilhaçado em tantos heterônimos, como se fosse sempre outro e outro e outro. Contudo, vestígios constantes — de aposta na metamorfose — neles permanecem. Para o poeta, a poesia não é um objeto exterior, é um objeto interior.
Tomo os versos de Pessoa, que me ajudam a pensar: “O mundo exterior existe como um ator num palco: ele está lá, mas é outra coisa”. Que outra coisa? A mesma coisa — é o mesmo poeta que, nos objetos do mundo, como num espelho, se repete. Não será por acaso que a “Poesia completa” de Odylo se abre com um poema luminoso como “Ao leitor”.
“Vejo-me aqui repetido!/ E eu me quisera sempre novo,/ embora se repita a vida,/ repitam-se as canções do povo”, Odylo começa. Não: o poeta não aceita a repetição por preguiça, ou por apatia. Não se trata de uma desistência. Não depõe suas armas de poeta, mas antes, a elas se agarra com firmeza. O motivo aparece no último dos cinco quartetos: “sempre é novo/ o olhar que inventa um novo mundo”. O poeta, pois, parte do olhar e não da coisa. A poesia não está nos objetos, que se repetem em ritmo maçante e massacrante, mas nas novas visões que deles descortina.
A poesia, portanto, não se passa no mundo. Tampouco se passa nas palavras. Passa-se entre os dois — passa-se no olho. Odylo foi um poeta do olho. No poema seguinte, “Epígrafe”, ele resume sua estratégia: “se não tenho tudo o que amo,/ materialmente, tudo é meu/ noutra espécie transverberada/ que é para mim Inferno e Céu”. Mais forte que o sistema dos objetos é a pressão da fantasia que, em Odylo, se resume na dualidade do Bem e do Mal. Ela, sim, molda os objetos. Dela, sim, o poeta fala, os objetos como desculpa.
Nem é bem de Odylo que se trata, mas — novamente o olho — da maneira como o poeta vê. Todo poeta, mesmo o mais materialista, tem sua metafísica, grande armadura com a qual ultrapassa as coisas do mundo físico, os objetos inertes, e deles se apropria para chegar, enfim, ao poema. Em um poema
chamado justamente “Objetos”, Odylo resume: “No fechado silêncio dos objetos/
mais simples mora um toque de magia”. Magia dos objetos, ou do poeta que os observa? Das coisas, ou do olho de poeta?
Lembra, então, de uma arraia pintada, dois séculos antes, por Chardin: “disforme, aberta/ em sangue e
dentes, agressiva e forte”. Observa Odylo que, com a passagem do tempo, muitas glórias se emudeceram. Não esta pintura. “Aquela arraia sobrevive à morte”. A arraia, objeto indiferente que inspirou o pintor barroco? Ou o olhar do mesmo pintor?
Encontra Odylo uma imagem invertida de si no poeta espanhol, do século XVII, Lope de Vega. “Dos libros, tres pinturas, cuatro flores,/ pediu Lope para ser feliz”. Prendia, assim, a felicidade à posse de objetos, como se a ligação do poeta com o mundo se fizesse através de chaves e fortes cadeados. “Não falou de riquezas nem de amores./ Esse pouco de pobre — não mais — quis”. No fecho do soneto, “Glosa a Lope de Vega”, Odylo inverte, porém, o desejo de seu ascendente espanhol. “De coisa alguma havemos precisão”, escreve. “Livros, quadros e flores, que doidice!/ Basta-nos ser de um só Amor providos”.
É no amor, que resulta sempre de um olhar com o qual alguém se debruça sobre o outro, que as coisas se decidem, e não nas próprias coisas. A ideia chave replica na epígrafe que Odylo toma de Luis de Camões: “nos olhos me levais alma e sentidos”. Através do grande túnel do olhar, os objetos se arrastam e se ligam. E é nesse longo despejar para dentro que eles se transformam em poesia. Escrito o poema — invertendo a lição de Clarice, que descartou as palavras para ficar com o sentido — podemos jogar os objetos fora. E ficar, como fazia Odylo, com a força das palavras.
Email: josegcastello@gmail.com. Leia mais textos do colunista em www.oglobo.com.br/blogs/literatura

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