terça-feira, maio 11, 2010
E perder uma oportunidade rara de descobrir que a vida – não apenas a dela, mas também a nossa – pode ser decodificada de uma forma mais generosa se nos reconhecermos em olhos dispostos a enxergar além dos estereótipos.
O perigo da história única- Por Eliane Brum
Contar uma única versão sobre nós mesmos pode significar abrir mão de viver
Terça-feira, 02 de Março de 2010
Desde muito cedo percebi que a trajetória de uma vida continha bem mais do que os conflitos visíveis. Em parte, me transformei numa contadora de histórias ao intuir que a forma como é contada uma vida pode significar a possibilidade desta vida.
Assim como pode determinar sua morte. O mundo é um palco onde se digladiam as versões – e o poder é usado para impor a história única como se fosse toda a verdade. Não só entre os países, mas na vida social e também dentro de casa. Compreender o poder da narrativa é o primeiro passo para construir uma vida que vale a pena. É também a chave para alcançar a complexidade – ou as várias versões – da vida do outro.
Na semana passada, duas experiências me fizeram voltar a refletir sobre o poder das histórias, um tema recorrente nesta coluna e no meu trabalho. A primeira foi o filme Preciosa, já lindamente comentado neste site na coluna de Cristiane Segatto. A outra foi uma palestra de uma escritora nigeriana chamada Chimamanda Adichie.
Em Preciosa, filme de Lee Daniels em cartaz nos cinemas, concorrente ao Oscar, a personagem é uma negra gorda e enorme, abusada sexualmente pelo pai e de várias outras maneiras pela mãe, que frequenta há anos a escola sem que ninguém perceba que não sabe ler.
Preciosa, este também é o nome enormemente simbólico da personagem, é um nada para muitos – e também para si mesma. Um nada difícil de olhar. Ela mesma, quando se olha no espelho, não se reconhece.
Desde que assisti ao filme, na sexta-feira de Carnaval, o recomendo com veemência aos meus amigos. Mas, assim como as pessoas ao redor de Preciosa, no filme, tinham dificuldade de olhar para ela, alguns amigos têm resistência em ir ao cinema “assistir àquela desgraceira”. Ou acompanhar uma personagem que contém em seu corpo todas as características relacionadas aos perdedores. Alguns amigos viram o trailer e decidiram fugir de Preciosa.
É uma pena. E é o que tenho tentado mostrar a eles – e agora a vocês. Não ver Preciosa é não permitir que ela seja vista de outra maneira.
E perder uma oportunidade rara de descobrir que a vida – não apenas a dela, mas também a nossa – pode ser decodificada de uma forma mais generosa se nos reconhecermos em olhos dispostos a enxergar além dos estereótipos. Neste sentido, ao decidir assistir a este filme – tão diferente do que se costuma produzir em Hollywood – o espectador está se tornando parte da transformação de Preciosa. E isso é genial como proposta cinematográfica.
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