terça-feira, maio 18, 2010

Obama entendeu e agiu pela transformação

Obama entendeu e agiu pela transformação
RAFAEL COX ALOMAR - O Globo - 17/05/2010

Conheci Elena Kagan (procuradorageral dos Estados Unidos escolhida pelo presidente Obama para integrar a Suprema Corte americana) durante meu último ano de Direito na Universidade de Harvard. Kagan era, então, a primeira mulher a assumir o comando da Faculdade de Direito mais antiga dos EUA.
Acabara de regressar da Casa Branca, onde havia pontuado com eficiência tanto no Conselho de Política Interna assim como no escritório do assessor jurídico do presidente Clinton. Agora assumia as rédeas da escola de Direito em um momento crítico: de dispersão ideológica e intelectual; de esgotamento e insatisfação com o rumo de uma instituição extremamente fragmentada (e inclusive balcanizada na sua base ideológica) e em boa medida paralisada por um conservadorismo anti-histórico.
A chegada de Kagan, não obstante, trouxe consigo o sopro daqueles ventos de mudança de que falava Harold Macmillan (primeiro-ministro do Reino Unido, de 1957 a 1963) em pleno desmantelamento do império britânico.

Logo a nova decana se converteu, através de sua fina e ágil mente jurídica, em agente decisivo de transformação institucional. Os desencontros ideológicos prosseguiam, o que agora mudava era a tônica da conversação e o marco de sua contextualização.
Com a nomeação de Elena Kagan à Corte Suprema, o presidente Obama deu um passo na direção correta. O significativo desta nomeação é que reflete algo que talvez não se via desde as administrações de Franklin Roosevelt (1933-1945) e de Lyndon Johnson (1963-69). Refiro-me a um presidente de profunda sensibilidade ideológica (no sentido amplo do conceito), que compreende mais cabalmente que muitos de seus predecessores o momento único de transformação econômica e de rearranjo demográfico pelo qual atravessam os EUA, cujos limites e matizes serão definidos pelos juízes da Suprema Corte.
No caso específico de Roosevelt (depois da sua fracassada tentativa de tomar de assalto o Supremo no princípio de 1937), a opção por Hugo Black, Felix Frankfurter, William Douglas e Robert Jackson (que jogou um papel proeminente no julgamento de crimes de guerra em Nuremberg) potencializou a viabilidade de reformas na legislação social e econômica.
Johnson, por sua parte, compreendeu — talvez melhor que Kennedy — que a luta pelos direitos civis mudaria para sempre o rosto dos EUA, definindo assim a solvência moral da “Grande Sociedade” que aspirava a construir.

Daí sua nomeação de Thurgood Marshall ao Supremo (2 de outubro de 1967), que como procurador-geral e advogado principal da NAACP (National Association for the Advancement of Colored People) dominava melhor que ninguém as sutilezas, complexidades e zonas cinzentas da discriminação racial e do tóxico impacto dessa desigualdade intencional na perpetuação dos ciclos de pobreza e de marginalidade social.
A entrada em cena de Kagan, e da juíza Sonia Sotomayor antes dela, coincide com um desses momentos únicos de transformação. A instrumentação da recém-firmada reforma de saúde à luz de noções criativas de federalismo; a preservação e defesa das liberdades civis e do direito à privacidade ante o embate da lei de imigração do Arizona e dos tentáculos da lei “Patriota” — e inclusive a democratização do aparato eleitoral americano (hoje precário como consequência de uma nefasta decisão do Supremo, 5-4 em Citizens United v. FEC) — dependerão mais que nunca não só do temperamento daqueles que integram este tribunal, mas também da cultura jurídica dos que o compõem. E em Kagan o presidente Obama conseguiu identificar uma jurista de calibre excepcional que conjuga todos esses elementos tão indispensáveis à tarefa judicial.
O Senado agora está com a responsabilidade constitucional de dar curso a esta nomeação. Esperamos que assim seja.

RAFAEL COX ALOMAR é advogado.© El Nuevo Dia (Porto Rico)/GDA.

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