sábado, agosto 28, 2010
A culpa dos inocentes
A culpa dos inocentes
GLÁUCIO ARY DILLON SOARES - 28/08/2010
A reação de uma jovem negra ao incesto paterno, de ausentismo e fantasias, tão bem descrita no "Push", de uma autora negra chamada Sapphire (tema de um filme de impacto, "Preciosa"), se caracteriza por se ausentar, por pensar em outras coisas, para não sentir, para fugir. Sapphire ficou impressionada com a declaração de uma jovem negra que tinha filhos com o pai. Outra reação comum é apertar os dentes e "esperar que acabe". Foi a reação de Tatiana, jovem que entrevistei, vítima de estupro da parte do pai e da mãe também.
Porém, nem todas as vítimas apresentam reações semelhantes. Muitas, em estado de confusão e sem entender o que está acontecendo, "sentem" que algo está sendo feito em seu corpo. Um exemplo é o de Sabrina. Sabrina, quando menina, teve "uma educação católica, amava São Francisco de Assis e adorava cantar na capela".
Era filha de uma relação extraconjugal. A mãe, solteira e empregada doméstica, teve uma relação conturbada com um homem casado.
Sabrina não pôde se beneficiar de uma presença paterna, porém, segundo ela, a ausência paterna era pouco notada. O pai a via pouco, mas a presenteava, estabelecendo um vínculo: "...quando o via era pura alegria. Muito criança para entender..." Mas a relação entre os pais era instável e, mesmo à distância, terminou.
A mãe continuou tentando compatibilizar sua vida de mulher, de fêmea, e as funções de mãe. "Conheci dois namorados dela e os aceitei sem restrições, porque o ciúme ainda não tinha se manifestado em mim. Por volta dos [meus] nove anos, minha mãe conheceu um homem (casado) que veio a ser meu padrasto. Ele largou a família e assumiu compromisso com minha mãe... [e] foi morar na nossa casa. Era um excelente provedor. Minha mãe deixou o trabalho e passou a cuidar do lar. Novamente, aceitei dividir minha mãe com outra pessoa." Algum tempo depois, "começaram os problemas. Meu padrasto começou a me molestar sexualmente. Beijava minha boca e me bolinava. Esfregava seu pênis na minha vagina. Pedia silêncio em troca de agrados e promessas...a situação foi se tornando constante e só parou quando tive minha primeira menstruação, por volta dos doze anos. Não posso negar que a coisa se tornou prazerosa, seria hipócrita se dissesse o contrário. Se pegarem um bebê e bolinarem seu ele ficará ereto". A estória continuou. O efeito dessa relação socialmente (mas não biologicamente) incestuosa foi profundo e não terminou. Sabrina continua sofrendo. A culpa e a vergonha reaparecem sem dar aviso.
Marina Maggessi, extraordinária policial e, agora, deputada federal, escreveu um dos mais diretos e corajosos que já li, "Dura na queda".
Descreve o incesto em que foi vítima de um tio. O tio, tipo clássico, abeiro, não trabalhava e bebia.
Um dia propôs, como brincadeira, que ambos tirassem a . Ela tinha sete anos. Agarroua, a sentou sobre ele, e a esfregou em seu pênis. A sensação para ela era estranha, mas, em momentos, boa. Achava tudo suspeito porque ele a ameaçava para "não contar".
Como em muitos casos, a suspeita levou a uma tentativa de parar a "brincadeira", mas usando o poder de tio, ele a impediu. "A brincadeira tinha virado obrigação." Marina não conseguiu contar o que acontecia para a mãe. O tio acabou sendo expulso de casa pelo pai, por outras razões, mas Marina só entendeu o que havia passado após conversar com uma colega. Algumas reações foram horríveis, como a de se sentir suja quando ia à igreja. Criança, não entendia que pecado pela força, contra a vontade, não é pecado mesmo que em algum momento o corpo infantil tivesse gostado do que aconteceu.
Essas histórias reúnem elementos comuns a muitas situações de incesto ou estupro de menores:
Dependência da mãe em relação ao homem e/ou presença de um familiar na casa ou perto; Família ausente na origem ou desestruturada posteriormente; Ameaças e/ou tentativa de suborno da menor; Faixa etária da vítima no início do abuso; Menstruação como determinante frequente do fim do abuso; Alguma sensação de prazer por parte da vítima; Consciência tardia de que o ocorrido era moralmente condenável; Sentimento de culpa e vergonha.
O abuso sexual violento deixa marcas, e pessoas que estão em contato com crianças, como parentes, professoras, pediatras, vizinhos, amigas mais velhas, poderiam identificá-las.
Os sintomas de abuso recente são claros: problemas para andar ou sentar; roupas rasgadas e/ou sujas de sangue; dores ou coceiras genitais; marcas, hematomas ou sangramentos nas áreas genitais ou na boca; gravidez ou doenças sexualmente transmissíveis; infecções urinárias frequentes etc. Terapeutas logo identificam reações de culpa e de vergonha, que são difíceis de tirar.
É preciso conscientizar, em sentido duplo: para os que lidam com crianças e adolescentes, estupro não é algo que só acontece "com os outros". Sobretudo, é importante conscientizar homens (e muitas mulheres também) de que sexo ou é consensual sempre, desde o início, ou é estupro. É preciso desconstruir o mito de que se a criança, a adolescente ou a mulher sente algum tipo de prazer, ainda que seja um orgasmo, essa reação desqualifica o estupro como tal. O estupro é definido pela ação contra a vontade da vítima em qualquer momento do processo, ou pela incapacidade de julgamento por parte da vítima (particularmente crianças, mas também alguns tipos de deficientes) e não pela resposta da mesma. O seu legado, duradouro, para as vítimas é a culpa e a vergonha.
O legado, duradouro, para as vítimas é a culpa e a vergonha
GLÁUCIO ARY DILLON SOARES é sociólogo do Instituto de Estudos Econômicos, Sociais e Políticos (Iesp) da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Publicado em O Globo
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