domingo, setembro 05, 2010
Caso de política e não de polícia
Caso de política e não de polícia
Wilson Figueiredo - JORNAL DO BRASIL
HÁ DUAS SEMANAS o Brasil está diante de um episódio que não iria merecer atenção, nem desencadear a inquietação da cidadania, se não coincidisse com a etapa final de uma sucessão diante da qual a História pode lavar as mãos. Não lhe diz respeito o espetáculo.
Candidatos por um lado, cidadãos por outro. A Receita Federal tratou como acidente burocrático a violação do sigilo pessoal, cuja proteção é seu dever estrito e sem o qual, em qualquer democracia, a cidadania deixa de se exercer em sua plenitude.
Diante de um fato objetivo, da qual foi vítima a filha do candidato José Serra (à Presidência da República), e depois de uma investigação sigilosa, a Receita Federal proclamou a descoberta de um mercado em que informações podem ser adquiridas (ou vendidas) livremente, como se acrescentassem uma dimensão virtual à própria democracia.
Dizem que a degradação começou quando o secretário anterior da Receita foi trocado pelo atual, sob o véu protetor do eufemismo de atender a motivo de força maior, mas na verdade a serviço de razão inferior. No Brasil, a democracia se considera preparada para fazer eleições aperfeiçoadas pela contribuição eletrônica, mas ainda não melhorou os partidos políticos, nem convenceu os eleitores de que há outros motivos para recusarem preferência a candidatos que nada têm a ver com os princípios que citam e muito com os fins ocultos de que se valem. Lula não é convincente no papel de Pilatos, em que se especializou.
Os radicais já tomaram o pulso presidencial e estão se lixando.
Tudo começou na última troca de comando da Receia (o substituto se esqueceu de que, etimologicamente, secretário tem tudo a ver com segredo). É fato indiscutível que ocorreu uma vazão de irregularidades, muito superior ao que se poderia considerar acidente de trabalho. Daí a preocupação crescente com os fundamentos da democracia, no ponto crítico onde a sociedade e o Estado demarcam as respectivas autonomias. O petismo fez estoque de informações e, em épocas eleitorais, aplica-se ao trabalho subterrâneo de aproveitar o material utilizável em período de retração da ética. Quando nada, para retardar efeitos nocivos da normalidade democrática.
Antes que se recorresse à versão segundo a qual, em nome da economia de mercado, florescia no país um negócio de compra e venda de informações valiosas, mas sigilosas, o presidente Lula confirmou a impressão de estar perfeitamente a par do que se passou e vai continuar. Sempre há outro escândalo à espera de oportunidade para a vaga do anterior, do qual o cidadão desistiu por falta de resultado. A versão do sigilódromo, para diluir o prejuízo moral, foi politicamente desastrosa. Expôs a Receita à suspeita de que nada é acidental.
Dificilmente ela será a mesma depois que se assentar a espuma eleitoral deste escândalo, e o governo se der conta de que a cidadania não disfarça a indignação por ser tratada como personagem daquele pesadelo em terceira dimensão que George Orwell legou ao século 20 no seu profético 1984.
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