segunda-feira, outubro 18, 2010

Missão de Primavera

Missão de Primavera
Joaquim Ferreira dos Santos – O Globo – Segundo Caderno
Vigiar o voo do bem-te-vi e as moças que pulam em 3D
 Meu caro Rubem Braga, escrevo-lhe aqui de Ipanema para lhe dar uma notícia grave, a Primavera chegou, e outra mais grave ainda, nenhum cronista até agora escreveu uma linha sequer para saudá-la.
Sabe aquela quaresmeira na General Osório? Floriu amarela. Em resposta a tamanho espetáculo, apenas o silêncio generalizado, meu sabiá da crônica. Os jovens acham tudo muito etéreo, querem ficar ao largo do que possa parecer poesia numa hora dessas.
Os novos cronistas querem se encharcar de vida real, discutir a campanha presidencial e declarar votos. Ficariam constrangidos com o que acabei de reparar e sei que você, velho Braga de olho nas marés, iria entender. Entrou um vento mais quente, vindo do mar, pelo corredor da Aníbal de Mendonça. Ele foi tão se arrastando Ipanema adentro que, quando chegou à esquina com a Barão de Jaguaripe, as moças haviam recebido o recado pelo Twitter, um bilhetinho que agora se passa pelo telefone. Elas já esperavam o novo vento sem o casaquinho.
Apareceram os primeiros ombros e colos das moças, meu caro Rubem, e eu achei que você gostaria de saber dessas novidades da Primavera. Nada que mude o mundo, mas pelo menos leva-se um papo diferente do que veio no resto do jornal — e, se eu entendi direito, essa é a ideia, vamos mudar de assunto, por trás de toda crônica.
São cada vez mais comuns nas varandas do bairro os tico-ticos com um fio de grama no bico, uma notícia de Primavera que imagino importante, e os novos cronistas, velho Braga, me deixaram sozinho para o anúncio. A cidade inteira está trancada no cinema, vendo um filme sobre a violência no Rio. Saem todos lívidos com a mensagem de que os bandidos são eles, nunca nós, os caras do sistema. No seu tempo, velho Urso, a catarse da Humanidade era feita através da beleza das flores. Agora, as pessoas relaxam aliviadas quando o policial do bem esmurra muitas vezes o político corrupto. Não se faz mais Primavera como antigamente, daquelas que você, do alto da sua cobertura na Barão da Torre, percebia primeiro e logo trombeteava pelos jornais. Anunciava ter visto uma vaga de espuma galgar o costão sul da Ilha das Palmas, um sinal de violência primaveril.
Pronto. Nasciam a Primavera e também uma crônica clássica.
Pois já se faz Primavera novamente em seu terreiro, meu caro Braga, e uma outra novidade do mesmo jeito grave é que as moças nas revistas agora pulam, peladas, em 3D, na ponta dos nossos dedos. E dizer que numa crônica célebre você declarou as coisas tão calmas que a única novidade era o Hollywood com filtro.
Elas, as moças, se reinventam a cada dia e, minutos atrás, uma das mais bonitas me disse ao telefone, em meio a uma conversa sobre a mania de se desejar “um beijo no coração” ou um “abraço na alma”, ela me disse en passant, sem gravidade, que havia trocado a prótese de silicone dos seios. Aumentou a turbinagem.
Quer me mostrar. Homem maduro que sou, disse, também en passant, “legal”.
A propósito, você tem visto a Leila Diniz por aí? Disseram que a Duda Cavalcanti vai passar pelo Rio no verão. Se for fato, escrevo contando. Você, que sabe do assunto: houve mulher mais bonita — a Tônia não vale — do que a Duda em Ipanema? Meu caro Rubem, são as questões da Primavera e é uma pena que você não esteja aqui para a gente esticar a conversa, colar uma palavra na outra, essas coisas que você fazia como ninguém. Iríamos dar uma geral na Humanidade num bar de cerveja importada com um nome genial, Delirium Tremens, que abriram na sua rua. Ipanema anda mais bonita. Colocaram uma vegetação rasteira, de dunas, no final da areia, junto da calçada. A coisa ficou, como você diria, bárbara.
Do lado de sua cobertura, aquela fazenda no ar cheia de mangueiras, construíram um elevador de 36 andares. De frente, os turistas veem o mar, as Cagarras, as gaivotas flanando.
À esquerda, eles podem observar, de cima, você, ou melhor, todo o quintal de sua casa, a varanda onde tinha rede e um dia o Vargas Llosa — outra notícia grave que eu queria dar, o novo Nobel de Literatura — nela deitou. Ele se espreguiçou um pouco, riu daquela cena bucólica se chocando com os prédios de Ipanema ao fundo, e disse: “Vou colocar essa rede numa história”. Você foi mais rápido. No dia seguinte publicou Vargas Llosa e a rede numa crônica de jornal.
Eu queria ver você, velho Braga, escrevendo crônica todo dia com os turistas olhando e tirando foto lá de cima.
Enfim, eu vou ficando por aqui, pelo menos mais um pouco, consciente de que sou responsável pela missão de que você me encarregou.
Vigio em seu nome o voo do bem-te-vi, a espuma das ondas e o caminhar das moças por entre as moitas de azaleias e de manacás em flor. Nada grave, graças a Deus, porque aí não seria esta crônica de Primavera. Adeus.
E-mail: joaquim.santos@oglobo.com.br

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