sexta-feira, outubro 22, 2010
'Um ano mágico'
'Um ano mágico'
Há 13 anos longe das telas, Neville d'Almeida, recordista de bilheteria na década de 70, volta a dirigir uma ficção e tem um longa restaurado pelo MoMA
Rodrigo Fonseca – o Globo – Segundo Caderno
Até o dia 30, data na qual o Museum of Modern Art (MoMA), em Nova York, vai exibir uma cópia restaurada do longametragem “Manguebangue” (1971), seu realizador, Neville Duarte d’Almeida, terá de manter seus estilizados óculos escuros sempre no rosto. Isso se quiser disfarçar os surtos de choro cada vez mais frequentes. Foram três só durante este bate-papo com O GLOBO, no Oi Futuro do Flamengo, que virou o centro nervoso de seu trabalho com videoarte. Lágrimas têm embargado a voz do diretor mineiro de 69 anos com muita frequência desde o dia 14, quando ouviu seu nome ser mencionado entre os contemplados com a verba (no seu caso, de R$ 1 milhão) do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA). O fomento encerra um jejum de 13 anos na vida do cineasta. Depois que lançou “Navalha na carne” (1997), ele nunca mais conseguiu verba para rodar longas-metragens de ficção. Pois agora chegou a vez de adaptar a peça “A frente fria que a chuva traz”, do dramaturgo paranaense Mário Bortolotto.
— Desde janeiro, eu não parei de trabalhar com vídeos, instalações e exposições, que foram quase 20, inclusive no exterior. Agora, com o resgate do “Mangue-bangue”, dado como perdido, e com a chance de filmar “A frente fria...”, com o dinheiro do fundo, este é um ano mágico para mim — avalia Neville. — Eu nem acreditei que ia ser contemplado.
É engraçado saber que, mesmo tendo sido censurado durante o regime militar, eu consegui fazer mais filmes na ditadura, nos anos 60 e 70, do que agora, com a Retomada. A censura muda de forma.
Os hipócritas e os fariseus são muito bem organizados.
6,5 milhões viram ‘A dama do lotação’
A ausência de Neville nos editais e programas de financiamento surpreende quando se avalia seu currículo, abrilhantado pelo recorde de bilheteria de “A dama do lotação” (1978): 6.509.134 ingressos vendidos, pelas estatísticas da Embrafilme (outras fontes falam em 7,5 milhões de pagantes).
— Hoje quem ganha dinheiro com cinema no Brasil é chamado de grande artista, mas na época de “A dama do lotação” quem lotava cinema era chamado de mercenário, como eu fui. Daniel Filho e José Padilha estão aí deitando e rolando nas bilheterias porque eu estava fora.
Agora, vou bater recordes de novo — promete Neville, que foi convidado pela produtora Caju Filmes para dirigir três segmentos de um longa em episódios, ainda sem título divulgado, baseado em “A vida como ela é”, de Nelson Rodrigues (19121980). — Se em “A dama do lotação” tirei Nelson do subúrbio, agora vou tirá-lo do Rio e filmar um dos episódios em Recife, onde ele nasceu.
Imponentes também são os 1.938.136 espectadores acumulados por Neville em “Os sete gatinhos” (1980). Assim como os 900 mil de seu “Rio Babilônia” (1982), que, segundo o diretor, é exibido toda semana, em algum canal de TV.
— Um dia, esbarrei com o (candidato a presidente pelo PSDB) José Serra e ele me disse: “Vi ‘Os sete gatinhos’.
Mas é muito forte, né?” Respondi: “É verdade, Serra. Só não é mais forte do que a realidade brasileira” — conta Neville, que votou em Marina Silva para presidente, no primeiro turno, mas está indeciso para o segundo, embora tenha simpatia por Dilma Rousseff. — Naquele dia do Fundo Setorial, não vibrei só por mim. Quando vi Hermano Penna (diretor de “Sargento Getúlio”) entre os ganhadores, meu peito se encheu de alegria por ver um grande cineasta, que tem poucas oportunidades, ser reconhecido. Hoje, ao ver o cinema mauricinho que está aí, penso o quanto o nosso audiovisual reproduz as distorções do quadro político, na distribuição de renda: muito dinheiro para poucos e quase nada para um montão de gente. É empobrecedor para o país não dar a diretores como Luiz Rosemberg Filho (de “A$$untina das Amérikas”) e Ana Carolina (“Mar de rosas”) condições de filmar e ser exibidos.
Envolvido com exposições no Brasil e no exterior da série “Cosmococas”, projeto multimídia que desenvolveu em parceria com Hélio Oiticica (1937-1980), Neville volta agora aos sets, com atores, discutindo a exclusão social. Pelo universo teatral de Bortolotto, ele narra a experiência de um grupo de jovens de classe média alta do Rio num barraco alugado numa favela.
— Em “A frente fria que a chuva traz”, Bortolotto ataca o problema crucial deste país: o encontro do asfalto com a favela. Retratei isso em “Rio Babilônia” antes de muita gente.
O.k., Nelson Pereira dos Santos já tinha feito isso em “Rio 40 graus” (1955), mas não com prostituição, tráfico e corrupção policial, coisa que o cinema de hoje está mostrando, vide “Tropa de elite”. Eu ainda não vi o “dois”, mas tenho certeza de que o Padilha é o cineasta brasileiro mais importante do século XXI, porque sua capacidade de comunicação é única. Se ele é a maior revelação desta década, o filme nacional mais importante dos últimos anos é “5xFavela, agora por nós mesmos”, que mostra o futuro: o cinema de periferia — diz Neville.
Sua volta aos EUA, ao MoMA, com “Mangue-bangue”, gera saudade do tempo em que viveu em Nova York, trabalhando como garçom.
— Fui garçom no restaurante Yellow Fingers. Um dia, Glauber Rocha apareceu lá, do nada, encostou no balcão e me disse: “Precisamos falar da revolução do cinema brasileiro.” Pensei: “É esse o meu barato.” Mas disse: “Glauber, são 22h e só saio à 1h.” E ele: “Tudo bem. Eu espero.” E ele ficou lá, sentado, esperando três horas para falar de cinema. Eu saí de BH, onde via Jean Renoir, Jean Vigo, De Sica e Rossellini no Centro de Estudos Cinematográficos, o CEC, e fui para o New York City College estudar com aposentados de Hollywood.
Um dia, virei para um professor e disse: “What about Eisenstein? What about Renoir?” Ele respondeu que não conhecia aquela gente: “Here, there’s only one cinema: American cinema” (Aqui, só tem um cinema: o cinema americano). Ali, eu me dei conta de que aprendi mais de cinema em BH do que nos EUA, e, de tanto brigar, acabei expulso.
Com projetos para mais três longas — “Bye bye, Amazônia”, “Poeta da igualdade” e “A dama do lotação 2”—, Neville ri quando perguntam se ele, criado na religião metodista, encaretou: — Caretice é um estado mental.
Droga, por exemplo, é uma avenida que já atravessei, embora defenda a liberação de todas. Tem gente que toma Melhoral e fica doidão. Vai de cada um. Eu vivi de tudo, mas sempre acreditei em Deus. Um Deus da vida. Ele me fez experimentar o fracasso, a censura... Mas também me deu o sucesso. Agora leva “Manguebangue” ao MoMA e me deixa filmar de novo. Sem encaretar.
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