quinta-feira, novembro 11, 2010
Chão de ferro
Chão de ferro
Cora Rónai – O Globo – Segundo Caderno
Sempre gostei de tampas de bueiro, e durante algum tempo participei de uma comunidade no Flickr dedicada a fotografá-las. Há tampas muito variadas pelo mundo, e tenho fotos de uma mais linda do que a outra, em geral com os pés dentro do quadro, minha forma favorita de registrar por onde andei.
As tampas de bueiro brasileiras, infelizmente, são um fracasso estético na comparação com seus pares internacionais. Não passam de pragmáticas placas de metal, sem qualquer intenção de fazer bonito, perfeito exemplo do desleixo urbano que nos caracteriza. Uma tampa de bueiro bem decorada diz muito do capricho dos administradores da cidade.
Por outro lado, não conheço cidade tão cheia de bueiros quanto o Rio. No outro dia, andando por Ipanema e tendo de contornar uma obra que se fazia em torno de um deles, me dei conta de que a calçada era praticamente toda constituída de bueiros.
Decidi contá-los. Voltei para a esquina e comecei do começo. Vocês já tentaram contar bueiro? É muito difícil. O vaivém das pessoas atrapalha, amigos e conhecidos interrompem as contas e leva-se esbarrões de gente que não olha por onde anda, até porque o contador de bueiros anda sem olhar. Apesar disso, quando cheguei à outra esquina, tinha contado 161, e esbarrado em pistas da História das telecomunicações, com tampas da CTB, da Telerj e de um genérico Telefone convivendo lado a lado.
Também encontrei a preciosidade da foto, versão estapafúrdia da Light: depois a gente se espanta quando explodem.
O número não me saiu da cabeça. Cento e sessenta e um?! Como era possível a existência de 161 bueiros num único trecho de calçada?! Eu devia estar errada, mas ainda que tivesse errado por cem, sobrariam 61 bueiros num único lado de um único quarteirão, muito mais do que se vê em qualquer outra parte. Resolvi voltar no dia seguinte para uma recontagem... e cheguei a 164! Joguei a toalha. O fato é que, por uma ou por outra conta, está sobrando bueiro em Ipanema. Houve um tempo em que o gosto musical da Bia ficou tão diferente do meu que quase não havia o que pudéssemos escutar juntas; uma das raras exceções era “Hair”, o musical que fez a cabeça da minha geração e que continuou vitorioso nas paradas até a adolescência da minha filha.
Perdi a conta do número de vezes em que vimos e revimos o filme de Milos Forman, e a quantidade de vezes em que os dois CDs, o da produção teatral e o da versão para o cinema, foram trilha sonora para nossas viagens de carro.
“Hair” resumia tudo em que eu acreditava com 14 anos, época em que geralmente se acredita em tudo ou em nada com a mesma intensidade.
Eu acreditava em paz e amor, e achava, de verdade, que bastava um pouco de boa vontade para que todos os seres humanos passassem a conviver em harmonia; tinha uma saudável descrença de ritos religiosos, mas achava muito bonitos os mantras indianos, adorava aquelas túnicas coloridas e tinha enorme prazer em sentir cheiro de incenso pela casa. No mais, até pelo histórico da família, tinha horror a guerra, qualquer guerra.
Quando a Bia e as suas amigas descobriram “Hair”, o mundo já era outro. A identificação da sua geração com o “meu” musical passava por outros circuitos, talvez pela nostalgia de uma postura de rebeldia que, no fim dos anos 80, já não fazia sentido. Independentemente da motivação, porém, a história nos fisgou por igual, e até hoje sabemos as músicas de cor.
Agora, passados tantos anos, fomos juntas à estreia de “Hair” no Casa Grande — e saímos de lá com o mesmo encantamento antigo. A produção está linda, e tem um elenco jovem, afinado e cheio de garra: mesmo os atores que ficam no fundo do palco, encobertos pela sombra, dançam e cantam cheios de entusiasmo.
Os figurinos e o visual da tribo estão ótimos.
O mais importante de tudo, porém, é que Claudio Botelho conseguiu o prodígio de traduzir as músicas sem torturar as palavras: elas caem naturalmente onde devem cair, e não causam estranheza ao ouvido acostumado à versão original. Uma coisa é traduzir um musical do qual ninguém se recorda, ou do qual ninguém conhece as letras; outra é mexer com o ícone de tantas gerações, com músicas que todos cantaram milhares de vezes.
Sem essa tradução de alto nível, não poderia existir “Hair” em português. Nada como o tempo para aproximar as gerações.
Nos idos de “Hair”, a geração dos meus pais, e dos pais dos personagens, me parecia irremediavelmente perdida — uma geração que não sabia nada da vida, que tinha mania de trabalho e obsessão com contas e contracheques. Hoje, que já sou mais velha do que era aquela geração naqueles tempos, me pergunto como imaginávamos sobreviver.
Era fácil ser hippie com mesada, e relativamente simples viver à margem da sociedade com casa e comida na retaguarda.
Os pais de Claude, que eram ridículos quando foram escritos, hoje, apesar de caricatos, me despertam certa simpatia. A mãe aspira a casa porque, afinal, alguém precisa cuidar da limpeza; e o pai cobra um trabalho do filho porque, até prova em contrário, seres humanos precisam trabalhar para garantir seu sustento.
O fato de exigirem que o filho se aliste são outros quinhentos; essa é uma parte do “sistema” que nunca vou conseguir entender. Não acredito mais que a convivência entre os bípedes deste planeta seja exatamente uma coisa simples, mas continuo firmemente convencida de que não é brigando que a gente se entende.
Blog: cora.blogspot.com. E-mail: cora@oglobo.com.br
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