domingo, julho 04, 2010

Aula de civilidade a céu aberto

tragédia das águas
Aula de civilidade a céu aberto
No centro de donativos do Quartel do Derby, no Recife, voluntários de diferentes classes sociais representam solidariedade em prol das vítimas da enchente. Morador de rua e médico se tornam iguais
Silvia Bessa – Correio Braziliense
  
O Quartel da Polícia Militar do Derby, no Recife, instalou a maior sala de aula a céu aberto de Pernambuco, com ensino gratuito de trabalho em equipe, fraternidade e igualdade. Deveria se tornar ponto obrigatório para visitas de estudantes de todas as idades e classes sociais. É lá onde se assiste o exercício pleno da civilidade e da consideração ao próximo. Só no quartel do Derby pode-se encontrar um cirurgião cardíaco e toráxico dos melhores hospitais particulares do estado e um morador de rua carregando, sem diferença, um caminhão de cestas básicas. Escondidos atrás da camisa oficial da “Operação Reconstrução”, Paulo Santana, 49 anos, e Airton de Oliveira da Silva, de 37 anos, têm emprestado horas dos seus dias em favor das vítimas da enchente que arrasou 67 municípios do estado. São extremos unidos em função de uma causa.
Faltou sangue tipo O negativo para viabilizar a cirurgia que Dr. Paulo Santana faria. “Estava sem compromisso, então resolvi vir ajudar”, disse o médico do Hospital Santa Joana. Ele chegou no centro de recebimento de donativos da PM às 9h da quinta-feira e, às 12h, ainda estava suando a camisa, segurando um saco de mantimentos por segundo e animando a fila de voluntários. “Vamos, acelera, vamos ver se esse povo come ainda hoje”, repetia, promovendo a alegria geral de ilustres desconhecidos do lado.
Airton de Oliveira Silva, o morador de rua, chegou um pouco antes, às 7h, e às 17 ainda se destacava pela disposição com a qual colocava nas costas os sacos de comida destinados aos desabrigados. “Disseram que a coisa está séria pelo interior. Antes falavam que pessoas de sete cidades passam dificuldades, mas hoje soube que passou para doze cidades”, comentou, admirado, sem informação sobre números ou dimensão do desastre das chuvas. “Realmente, não sei porque não assisto televisão. Lógico, não podia assistir: moro na rua”, contou o sem teto. Airton pernoita em baixo das marquises do Recife antigo durante a semana; dias de sábado e domingo, se “muda” para qualquer beira de calçada do Derby (“É mais seguro”). Ex-gari, Airton tem um patrimônio parecido com o de muitas das vítimas das chuvas — um colchão e algumas poucas roupas doadas. Ficou sem moradia em 2000, quando perdeu o emprego da Prefeitura de Olinda. “Aqui, ajudando esse povo, minha personalidade cresce”, revelou.

Ajuda aos nossos
O médico Paulo Santana, 24 anos de profissão, acredita que na hora da necessidade se deve lembrar da nacionalidade dos desabrigados. “A gente se comove e ajuda ao Haiti quanto mais os nossos”, frisa o cirurgião, conhecido pela sua disponibilidade em atender os mais carentes. No consultório, Dr. Paulo trabalha com leveza e colabora com quem precisa, muitas vezes ignorando questões financeiras. Ele já enfrentou duas enchentes na década de 70, quando morava na Avenida Caxangá e “perdeu tudo”. “Não convido nenhum colega de trabalho para vir comigo aqui, mas se minha iniciativa incentivar alguém será ótimo”. “Sem dúvida, atitudes como a dele incentivam a mobilização da sociedade”, disse a representante comercial hospitalar Sandra Rodrigues.
Vivendo sozinho, Airton não tem sequer quem convidar. “Mas queria dizer que estou muito satisfeito por exercer o voluntariado, ajudando a quem precisa”, frisou, ao fim da quinta-feira, usando palavras bonitas. Homem sem patrimônio, de vestes simples, de poucos sorrisos, Airton oferece a sua boa vontade. Observador atento da aula de civilidade gratuita e a céu aberto promovida no Quartel da PM no Derby, o soldado Marcos César Rocha, vê o médico e o morador de rua como representantes da singular colaboração dos voluntários.

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