sexta-feira, agosto 27, 2010

Deus é carioca. Mas até quando?

ASSALTO A SÃO CONRADO

Deus é carioca. Mas até quando?

Jorge Antonio Barros – Blog Repórter de Crime – O Globo
O assalto a São Conrado - o episódio do tiroteio em plena luz do dia, seguido de invasão de um hotel de luxo e da tomada de 35 reféns por traficantes de drogas fortemente armados, no sábado passado - foi dramático não apenas porque vidas de inocentes ficaram por um triz mas também porque o caso rasgou o véu que protegia as UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) como sendo a mais bem-sucedida medida dentro da política de segurança pública do governo do estado. As UPPs representam um grande avanço e são importantes porque já salvaram milhares de vidas, mas infelizmente ainda são uma gota no oceano do vagalhão de problemas que os gestores públicos têm a surfar na busca pela paz na cidade do Rio de Janeiro.
O assalto a São Conrado - ainda que tenha terminado com final feliz - expõe o calcanhar de aquiles do poder público e da sociedade diante da ação impetuosa e nefasta de grupos ilegalmente armados e detentores de territórios em grandes favelas do Rio. Sem contar que, no caso dos traficantes da Rocinha, se viu claramente o emprego de táticas militares pelos criminosos, num sinal de que realmente policiais militares participam da escolta de traficantes como Nem, o chefe do bando da Rocinha.
Por motivo de viagem levei seis dias para comentar o assalto a São Conrado, mas valeu a pena esperar. Em entrevista à revista "Época", aos jornalistas Nelito Fernandes e Ruth Aquino, o secretário de Segurança, José Mariano Beltrame, explicou com todas as letras porque a polícia não ocupou a Rocinha, apesar de ter prendido os dez traficantes que escaparam do cerco policial que parou aquela área nobre da cidade, que guarda um retrato da desigualdade social do país, por ter de um lado a maior favela da América Latina e do outro um dos shoppings mais luxuosos do Rio e edifícios onde já residiram chefes de estado, cujo condomínio não cabe no orçamento da maioria das famílias de classe média da cidade.
Como crítico da política de confronto nas favelas - que predominou nos dois primeiros anos do governo Cabral - fiquei feliz ao constatar que o secretário de Segurança chegou finalmente à conclusão que há muito defendo. Ele disse que sabe onde está o traficante Nem, mas não manda prendê-lo para evitar mortes de inocentes na Rocinha. Coerente, Mariano sabe que um tiro na Rocinha, na Zona Sul do Rio,  não é como um  tiro no Alemão - uma  favela encrustada em três bairros da Leopoldina - onde 19 supostos bandidos foram mortos numa das maiores operações policiais em favela, que reuniu mais de mil agentes das polícias civil e militar, em maio de 2007 - o cartão de visitas de Cabral para a bandidagem. Mesmo um tiro em Copacabana não é como na Favela da Coreia, onde a Polícia Civil praticou até safari aéreo.
- Sei onde está o  Nem, e sei até o que tem dentro da casa dele. Não tenho medo de traficante. Mas não posso arriscar a vida dos moradores. Para eu ir buscar essa pessoa, a sociedade está disposta a pagar o custo de algumas vidas?  - disse o secretário Beltrame, na entrevista à revista "Época".
O gestor que antes dizia que não se pode fazer omelete sem quebrar ovos - numa alusão às vítimas em confrontos entre policiais e bandidos - começa a pensar em cuidar até mesmo da galinha dos ovos de ouro. É certo que os inocentes da Rocinha, num momento político como o atual, podem ser medidos em votos - a verdadeira moeda de troca da paz. 
Talvez se não estivéssemos num período eleitoral, a primeira reação policial seria a da ocupação da Rocinha até mesmo como uma demonstração de força. As fortes imagens do asfalto sendo tomado por bandidos da favela - no assalto a São Conrado - gravadas até por cinegrafistas amadores nos levam à tentar entender o que aconteceu ali. Até agora essa é uma das histórias mais mal contadas dos últimos tempos na segurança pública.
"Bondes" (comboios) de traficantes armados de fuzis cruzando as ruas da cidade já não são novidade há um bom tempo. Levantamento feito pelas próprias polícias já havia detectado pelo menos 15 vias que servem de passagem para esses criminosos em carros posssantes transportarem armas, drogas e arrastarem o que estiver pela frente. O fato novo é um "bonde" desses ser visto em plena luz do dia num corredor da Zona Sul - entre o Vidigal e a Rocinha. Traficante politicamente articulado - teria financiado a campanha de um vereador, já morto, e obtido apoio até do MST - Nem sabe que ao ostentar seu poderio bélico não vai ganhar nada além de problemas com policiais que não estão em sua contabilidade. A operação custou ao traficante cerca de R$ 1 milhão, segundo me contou uma fonte do submundo.
Portanto, num mero exercício especulatório, o que pode ter acontecido foi justamente Nem - que teria ido a uma festinha no Vidigal - ter pedido reforço de seus homens ao perceber que poderia ganhar o bote de 12 policiais do 23o BPM (Leblon) envolvidos no cerco e captura ao traficante, sem autorização de superiores. O "bonde" bateu de frente  com os quatro do 23o BPM, que foram condecorados pelo comando, embora  tudo indica que tenham sido os maiores inocentes úteis do episódio. Eles podem ter sido espertos, mas traficante da Rocinha sabe que não compensa matar tiras. Com a chegada do reforço policial - que nunca foi tão rápido, talvez por já estarem nas imediações - foi um pega pra capar, que resultou em sete feridos e na morte da contadora de Nem. A presença dessa mulher indica que realmente Nem escapou por um triz de ter sido pego pelos policiais do GAT (Grupo de Apoio Tático) do 23o BPM. Entre os 29 telefonemas recebidos até segunda-feira pelo Disque-Denúncia (2253-1177), sobre o assalto a São Conrado, pelo menos um dizia que Nem fora visto entrando no Motel Escort,  na fuga.
 Mais perdidos do que cegos em tiroteio, alguns integrantes do bonde de Nem acabaram entrando numa fria - o Hotel Intercontinental, onde eu costumava frequentar os banheiros durante o período que morei na Rocinha para fazer uma reportagem. No quarto que aluguei na Estrada da Gávea havia apenas um banheiro coletivo usado por quatro famílias. Então era inevitável o uso dos banheiros do Inter. Encurralados, os traficantes da Rocinha optaram por se entregar sem ferir nenhum dos 35 reféns. A negociação foi tensa mas teve a participação de um ex-integrante da quadrilha, que agora atua como mediador de conflitos.
O assalto a São Conrado teve um final relativamente feliz, como admite agora o secretário de Segurança. Poderia ter sido mil vezes pior para todos se, por exemplo, algum turista tivesse sido morto na cidade escolhida para sediar a Copa de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016. 
- Foi uma infelicidade. Eu costumo dizer que, infelizmente, até que o novo Rio seja uma realidade completa, nós vamos ter que conviver com esse velho Rio - disse Beltrame à "Época".
Ao que tudo indica, Deus é carioca. Mas até quando?
 De qualquer modo, eu prefiro abraçar um dos slogans da campanha do GLOBO para a cobertura das eleições: "Eu prometo não deixar os governantes em paz  sobre a questão da violência".

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