sexta-feira, agosto 27, 2010
Lijia Zhang: “O conforto tira a vontade de lutar”
Lijia Zhang: “O conforto tira a vontade de lutar”
A escritora desafia o regime com um livro, mas reconhece que na China de hoje há mais liberdade
Juliano Machado
O otimismo é uma marca da jornalista e escritora chinesa Lijia Zhang. Na juventude, foi operária de uma fábrica estatal de mísseis em Nanquim por nove anos. Eram os anos 80, e o regime comunista controlava tudo da rotina das pessoas, da vestimenta aos hábitos sexuais. Mesmo sem nenhum incentivo, Lijia estudou inglês, cursou uma universidade à distância e ousou desafiar o governo ao dar apoio aos estudantes dos protestos da Praça da Paz Celestial, em Pequim, em 1989. Decidiu escrever sua história no livro A garota da fábrica de mísseis (editora Reler, 416 páginas, R$ 49), que chega às livrarias nesta semana. Lijia virá ao Brasil no dia 29. Nesta entrevista a ÉPOCA, ela reconhece que ainda falta democracia na China, mas diz que as pessoas se sentem mais confortáveis na vida pessoal.
QUEM É Lijia Zhang nasceu em Nanquim. Tem 46 anos. Divorciada, tem duas filhas: May, de 13 anos, e Kirsty, de 11. Vive em Pequim, onde trabalha como jornalista freelancer para veículos estrangeiros
O QUE FEZ Ainda como operária, organizou em Nanquim um ato de apoio aos protestos estudantis da Praça da Paz Celestial
O QUE PUBLICOU A autobiografia A garota da fábrica de mísseis
ÉPOCA – O que levou a senhora a relatar sua história na fábrica de mísseis? Lijia Zhang – Estava conversando com um amigo escritor, o americano Peter Hessler, numa lanchonete de Pequim, em 2000. Por acaso, mencionei minha experiência como operária na fábrica de mísseis Liming. Ele ficou surpreso e me sugeriu escrever essa história como um artigo na edição asiática do The Wall Street Journal. Foi o que fiz. Ao lerem o texto, pessoas que não conheciam minha infância pobre em Nanquim disseram que eu poderia escrever um livro. Comecei a pesquisar e percebi que havia poucas obras sobre a China dos anos 80. O livro é sobre minha vida, mas por meio dela acredito que o leitor possa aprender muito de como era o meu país naquela época.
ÉPOCA – E por que escrevê-lo em inglês? Lijia – Porque certamente seria proibida de publicar meu livro se eu o escrevesse em mandarim. Quando a versão internacional do The New York Times (chamada International Herald Tribune) publicou uma resenha sobre o livro em 2008, consegui uma cópia do jornal em Pequim e percebi que a página da resenha tinha sido rasgada. O livro só não está proibido oficialmente na China porque não foi publicado por uma editora daqui.
ÉPOCA – O título do livro em inglês, Socialism is great (O socialismo é ótimo), foi uma ideia irônica sua? Lijia – Na verdade, tanto o título em inglês quanto o título em português (A garota da fábrica de mísseis) foram escolhidos pelos editores, não por mim. O título que eu havia pensado era Sapo no poço. Por muitos anos, eu me senti como um sapo dentro do poço, que era a fábrica. E o livro era para contar como o sapo conseguiu sair do buraco. Mas meu primeiro editor me disse que o leitor não iria entender tão fácil a ideia.
ÉPOCA – A senhora em algum momento teve orgulho de trabalhar num local destinado a fazer um míssil capaz de atingir os Estados Unidos? Lijia – No começo de minha experiência lá, eu me sentia orgulhosa, sim. Achava muito importante para a defesa do país ter um empreendimento desse tipo. Com o tempo, fui me frustrando com a rotina da fábrica e me desiludi com o funcionamento do regime.
ÉPOCA – Na juventude, a senhora teve um relacionamento com um homem casado, fez sexo dentro da fábrica, realizou um aborto sem saber quem era o pai da criança. Como a sociedade chinesa de hoje enxergaria isso? Há mais liberdade sexual em relação aos anos 80? Lijia – De certa forma, vejo o que fiz como uma transgressão, sem peso na consciência. Foi uma rebeldia, e as consequências foram um pouco complicadas. No aborto, corri riscos, porque foi feito de forma precária e só uma amiga minha sabia. Mas hoje acho que está havendo uma revolução sexual na China. As pessoas iniciam a vida sexual muito mais cedo, são mais bem informadas sobre sexo e têm mais parceiros ao longo da vida. A China está inserida na globalização dos hábitos sexuais. É claro que existem desníveis entre gerações. Em Pequim, ainda há pais que vão a parques avaliar possíveis parceiros para seus filhos. Nos anos 80, como eu conto no livro, havia um tipo de “polícia menstrual”, ou seja, uma funcionária da fábrica cuja única tarefa era verificar se as mulheres haviam menstruado para comprovar que não estavam grávidas. Isso praticamente deixou de existir, mas há pais em regiões mais atrasadas da China que têm práticas semelhantes com suas filhas.
ÉPOCA – A senhora diz que viver hoje na China é “excitante”. O que a faz pensar assim, diante de uma repressão política que parece tão intensa como há 20 anos? Lijia – Em minha cidade, Nanquim, organizei uma manifestação em apoio aos estudantes da Praça da Paz Celestial (Tiananmen), que se rebelaram em junho de 1989, porque aquela luta não era só por democracia. Era um apelo por mais liberdades individuais. Eu não fui promovida nenhuma vez em nove anos de serviço na fábrica. Qual era um dos argumentos para eu ser preterida? O “instrutor político” da fábrica achava que meus cabelos naturalmente ondulados, o que é incomum entre os chineses, fossem uma concessão a “elementos burgueses decadentes”. Por essa mesma lógica, a fábrica nos proibia de usar batom, calça boca de sino e, aos homens, ter cabelo com comprimento abaixo do lóbulo da orelha. Isso não existe mais. Gosto de usar a metáfora da gaiola. Ainda há bastante controle sobre a população em várias situações, mas a gaiola do Estado foi se alargando de tal maneira que muitas pessoas dentro dela não veem mais qual é seu limite.
ÉPOCA – É por isso que não houve mais mobilizações como as de 1989? Lijia – Talvez. Os chineses sempre foram muito empreendedores, acostumados a trabalhar duro. A partir do momento em que eles podem desfrutar alguma liberdade em seu modo de vida, no cotidiano, já não sentem tanta necessidade de lutar por algo. Há uma sensação maior de conforto, especialmente entre a classe média.
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