sexta-feira, agosto 27, 2010

O autor e os laços sociais

O autor e os laços sociais
27 Agosto 2010 |  11:37
Baptista Bastos - b.bastos@netcabo.pt
Um leitor do "Jornal de Negócios", o eng.º Heitor Sampaio, daqueles que se não refugiam no anonimato para fazer do insulto e da trapaça uma infame arma de arremesso
Um leitor do "Jornal de Negócios", o eng.º Heitor Sampaio, daqueles que se não refugiam no anonimato para fazer do insulto e da trapaça uma infame arma de arremesso, escreveu-me, e pergunta porque sou "tão pessimista." O e-mail não era longo, mas estabelecia os parâmetros de uma discussão séria. Decidi, por isso, tornar pública a minha resposta. E, acaso, chamar mais leitores para o debate.
A verdade, caro Heitor Sampaio, é que estamos sujeitos, de há uns tempos a esta parte, à intrusão do ruído como categoria cultural e, por definição, social e política. Esse ruído impõe uma especial perda do sentido das coisas e uma profunda alteração dos valores. O contrato de comunicação entre quem escreve e quem lê está seriamente abalado por uma ruptura dos diferentes níveis que regiam a essência da própria identidade e os fundamentos sociais, culturais e políticos. O ruído constitui o dispositivo basilar da confusão, e essa confusão possui uma matriz ideológica. Promove-se medíocres, aperfeiçoa-se os mecanismos de domínio, anula-se aqueles que propõem o estudo e a reflexão, extingue-se os recalcitrantes, persegue-se escritores, jornalistas, cineastas, artistas que não renunciam ao compromisso ético, justificativo da sua singular razão de ser. Mas há muita gente que nunca renegou a herança legada, que nunca abandonou a responsabilidade da sua história, que nunca cedeu à tentação de capitular. Os seus actos possuem o maior dos sentidos e o mais forte dos significados. 
É um mundo estranho, ameaçador e perigoso, este, no qual vivemos. O primado dos números tenta sobrepor-se à razão dos nomes; e os nomes, que ambicionavam impulsionar a verosimilhança dos sonhos, parecem destinados a descrever fantasmas. Não é insólito que eu escreva estas reflexões, num diário "de negócios." Porque um jornal não é um amontoado de cifras, mas um conjunto de palavras seleccionadas. Não o esqueçamos! As palavras têm-nos permitido construir laços sociais, e estabelecer uma certa superioridade sobre os outros instrumentos de mediação. No entanto, pretendem fazer-nos crer que novas reivindicações nos encaminham para outros repertórios, em que as palavras já não correspondem às exigências da época nem à identidade social do indivíduo.
A persistência da tese conduz à ambiguidade das particularizações. É importante e urgente que, neste jornal, por causa da sua especificidade, se fale da nossa responsabilidade moral, intelectual e ideológica. A única capaz de inverter esta tendência, de abafar este ruído maligno e de procurar, com tenacidade e perseverança, a reabilitação dos valores humanistas. De reabilitar a integridade.
Escreve-se pessimamente em Portugal. Lê-se pessimamente em Portugal. Há escritores, muito patrocinados pela Imprensa, pela Rádio e pelas Televisões, que me levam até ao desgosto da palavra. Há jornalistas que o não são, à força de o quererem ser. Os escritores falam das suas pequenas angústias quotidianas e ignoram, por desmazelo, preguiça ou estratégia, os grandes e dolorosos problemas nacionais. Os jornalistas foram disciplinados (ia a dizer: "normalizados") para cultivar a "distanciação" e falam de "verdade substantiva" - a forma e o modo mais redondos e sórdidos de se afastarem da realidade possível.
O combate contra a língua não é, somente, mera questão de gramática. O combate contra a língua, a que assistimos nos jornais, nos livros, nas televisões, nos discursos dos políticos, é, também e sobretudo, uma questão ideológica e uma abjecção moral.
Repare-se na selecção informativa da Imprensa; atente-se nos títulos dos best-sellers (a "besta célere", designada por Alexandre O'Neill); e no declínio das tiragens dos jornais. Nem uns nem outros reflectem ou testemunham a realidade portuguesa. Aplico a estas evidências o conceito de Noam Chomski, o qual evoca "as perspectivas de transformação social do mundo actual, bem como que poderia ser a utopia para os que, apesar da pedagogia da impotência, martelada pela comunicação social, não renunciaram a transformar o mundo". Eu não renunciei. E muita mais gente do que se julga também não renunciou.
Venho de um tempo em que se escrevia baixinho, quando muitos baralhavam a dignidade e outros eram os insurgentes de uma contínua rebeldia. Queríamos dizer tudo, a memória dos outros acompanhava-nos, e as palavras eram o produto de todos os sangues. Dessa memória insubordinada e dessa aventura de liberdade me tenho socorrido para a composição do que escrevo, afinal a correspondência do meu desejo íntimo de recompor o mundo. Por vezes esmoreço, e sobressaio como um homem desencantado. Não gosto do que vejo e sinto-me um pouco responsável pelo estado das coisas. Mas regresso à minha oficina, ao torno do meu trabalho, velho operário caturra a procurar modelar a matéria do seu ofício, e a interpretar os sinais da época.
Em que ponto estamos com o tempo? Quais as relações entre história, saber, avaliação, espaço, disciplina e palavra? Nos últimos anos tenho procurado encontrar respostas para estas interrogações: no que escrevo e no que outros escrevem, impulsionado por essa circulação insana e fértil, absurda e inquietante que são os dias da nossa rapidez sem flores e sem perfumes. No entanto, persisto na teimosia da esperança; insisto em que a direcção da condição humana é a da liberdade; acredito, como Saint-Just, que a felicidade é possível entre os homens; e continuo a confiar num outro contrato social, cujas imensas possibilidades sejam exploradas pela vontade política.
Enfim: recuso, totalmente, a existência de problemas sem solução, de perguntas sem resposta, de que o conceito de socialismo está esgotado e de que o capitalismo colocou um ponto final na História. Nesse sentido tendo vivido e escrito. Pode, ou deve, um jornal com as características deste, no qual há tantos anos escrevo, demitir-se deste debate? Pode, ou deve, um diário como o "Negócios" furtar-se a editar, por exemplo, os artigos de António Rêgo Chaves, únicos na nossa depauperada Imprensa? 
Digam-me, em recta e digna consciência. 
b.bastos@netcabo.pt

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