sábado, outubro 30, 2010

'O iluminado'

'O iluminado'
Arnaldo Bloch – O Globo
Eu nasci há dez mil... Não, não era nada disso que eu ia dizer. Nem que sou a mosca da tua sopa, embora às vezes isso pareça bem plausível. O que eu ia dizer era que estou em Minas Gerais, aqui, onde nasci. Ou melhor, onde fui concebido. Passei os últimos três dias a trabalho em Caxambu, uma dessas estâncias hidrominerais onde antigamente tinha cassino e para onde o pessoal vinha tomar banhos termais perolados, ou em águas sulfurosas, o famoso banho com cheiro de pum, água-pum, o pum do bem, pum-pum sem Protex protege o bumbum.
Peraí. O serviço de quarto bateu à porta.
Um desses hotéis antigos, com pé-direito de uns cinco metros e portas que são o triplo do meu tamanho e têm janelas no alto.
Os corredores têm tapetes vinho-escuro ao longo dos quais se encontram uns berços antigos, onde um ancestral meu poderia perfeitamente ter sido ninado nas férias dos pais. Ou abandonado nas mãos de uma enfermeira má enquanto os pais iam tomar banho de pum.
Talvez fosse eu mesmo ali, no berço vazio no corredor, um ano após o nascimento, para comemorar os dois anos da concepção. Minha mãe sempre me disse que foi em Caxambu.
Ou terá sido em Cambuquira? Meu pessoal vinha pra essas bandas. Em Cambuquira o tio Jorge dava o primeiro grito de carnaval montado num burrico. Há fotos.
Ou terá sido em São Lourenço? Poderia ligar para minha mãe agora e esclarecer tudo, mas não consigo parar de escrever, e nessas horas é bom aproveitar, principalmente quando se está tendo prazer, como estou, agora. Prazer de me rever nascer. Ou melhor, correr rumo ao ovo. Corrida ao ovo. Essa eu venci, essa ninguém me tira.
Posso ter perdido muitas, ou todas as outras, mas ninguém tasca minha faixa de campeão da corrida ao ovo, quando eu ainda era leite (papai gosta de dizer: “Você veio do meu leite”). Leite com ovos, daí sai algum bolo. O bolo sou eu. Bolo em Caxambu.
Ou será Lambari? Não, Lambari não foi. Mas foi por aqui, num desses grandes hotéis. O hotel aqui às vezes é sinistro. Portas rangem quando piso num certo ponto do assoalho. Basculantes sopram em meus ouvidos palavras jamais ditas.
E esses corredores com berços vazios? Fazem-me imediatamente pensar nos corredores de “O iluminado”, que o menino percorria com seu velotrol. Cadê meu velotrol? Rosebud... Redrum... Quem viu ambos os filmes já decifrou, quem não viu vá googlar depois de ler a crônica.
Teria que ser um velotrol gigante pra sustentar o menino de 45 anos, jornalista, fazendo matéria pro jornal sobre um grande evento que reúne sociólogos, antropólogos, cientistas políticos. Digito no teclado do netbook, sentado numa das cadeiras de plástico de bar que compõem o auditório do debate.
Em dado momento dou uma relaxada, estico bem os braços para trás, pendendo para um dos lados. Uma das pernas da cadeira cede no piso liso, entorta, caio esparramado no chão, eu prum lado, computador pro outro, celular, caneta, bloco.
— Tudo bem aí? — pergunta um dos conferencistas.
— Sem feridos — respondo, arrancando risos moderados do público.
— E o computador? Quebrou? — O computador está bem — digo, e agora os risos mal se ouvem.
— Podemos continuar então? — Podem — autorizo, e sussurro, baixinho, para ninguém ouvir: — Essa cadeira é uma armadilha para a mídia.
E rio de mim mesmo, recomposto. A mídia.
Mídia aqui é uma baita minoria. TVs não cobrem, só eu, a Cláudia da “Folha”, a Isabella de uma revista de ciência e um cara de uma Gazeta cujo nome agora esqueço.
Com dois mil participantes, dá um ser da mídia para 500 pensadores. Esses caras têm imprensa... Também, precisa ver o veneninho que escorre quando um sociólogo profere a palavra “mídia”... Não tem jeito, mesmo que seja amigão de jornalistas, não dá para a palavra “mídia” soar neutra como devem ser os vários “atores” num discurso de ciências sociais.
Mas isso tudo é brincadeira. Como andar de velotrol num corredor cujo tapete é vinho escuro. Cor de sangue. O sangue que desce por todas as frestas da porta, o menino de Kubrick no velotrol, fascínio e terror.
Aqui há várias portas no corredor, mas não aquela do fundo, com o sangue. Aqui, no fundo do corredor, há duas janelas, de onde se vê ora um prédio, ora uma colina.
Colina de Minas Gerais.
Amanhã cedo, antes de voltar ao Rio, vou tomar um banho. Banho perolado. Que pum que nada. Nem vim fazer filho, não. Aqui fui feito. E não foi com um dedinho. Hoje um jornalista, um eleitor, uma alma, bolo de ovo e leite, que a qualquer momento vai se encontrar, nesses corredores, consigo próprio, antes, lá, fronteira final, onde nenhum outro homem antes esteve, nem nunca estará.
E-mail: arnaldo@oglobo.com.br

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