quinta-feira, outubro 21, 2010
As drogas e a realidade
As drogas e a realidade
Francisco Bosco – O Globo – Segundo Caderno
Radicais, as drogas "isolantes" lançam sobre a realidade a dúvida quanto a sua própria existência
Em “Paraísos artificiais”, Baudelaire compara dois agentes, o vinho e o haxixe, duas forças a desencadear processos diferentes. A partir do texto do grande poeta, pergunto-me qual o fundamento da diferença entre esses dois alteradores da consciência. Ele reside, no meu entender, no modo como cada um altera a relação do sujeito com a realidade. Os dois modos permitem estabelecer dois paradigmas, em que se pode alocar cada droga de acordo com sua maneira de alterar, no sujeito, a experiência da realidade.
Os alcoóis operam dentro da realidade, amaciando-a, afrouxando as cordas em que todo sujeito, mais ou menos neurótico, vive cotidianamente amparado e enlaçado. A realidade protege (do nada) e oprime (frustrando pulsões). O álcool a dilui, dissipa sua autoridade, cobre com algodões, “névoas benéficas”, sua excessiva claridade.
Abre-se aí uma distância dentro da realidade, e a margem que fica para trás é a do desgosto da própria realidade.
Essa é a ação positiva do álcool, “The power of positive drinking”, como disse Lou Reed. Como todas as forças, o álcool também está submetido à lei dialética; suas ações maléficas são o revirar-se desse mesmo princípio de abrandamento da realidade, quando levado ao excesso: a perda progressiva do compromisso com o princípio da realidade, no alcoolismo, ou as atitudes que infringem demasiadamente as balizas morais a que prestamos contas uma vez a realidade retome as rédeas.
Caso banal da ressaca moral.
Assim, os álcoois todos se situam no campo do abrandamento da realidade, e, no limite, no alcoolismo, num abandono das negociações com o princípio de realidade (à vigência, incontrastada, do princípio do prazer, chama-se precisamente vício).
A cocaína pertence a esse paradigma. Sua alteração não produz os mesmos efeitos que o álcool: ela acelera, dispara, mecaniciza — mas se trata ainda de uma modificação dentro da realidade.
A cocaína não suaviza a realidade, mas energiza o sujeito, que se sente um pouco acima dela. Sua aleivosia vem daí: cada vez que seu efeito diminui, o sujeito, desabando de seu pedestal de pó, ingere outra fileira para subir novamente, e assim durante horas. Quando tudo se acaba, nota-se, como no célebre samba, que “pra subir você desceu”, e agora deve enfrentar uma temporada a uns 500 metros abaixo do nível da realidade, onde a angústia é proporcional à velocidade e à profundidade da descida.
Mas há um outro paradigma, uma outra família de drogas. São aquelas (o haxixe, o LSD, o chá de cogumelos, a ayahuasca) que atacam, questionando-a, revelando sua ilusão, a realidade.
“O vinho torna bom e sociável”, descreve Baudelaire, mas “o haxixe é isolante”.
Nessa diferença se situa o âmago do que desejo delinear.
A realidade é por excelência social; ela é o conjunto, complexo, contraditório e imensurável, das representações de uma coletividade.
As drogas da realidade são, consequentemente, as drogas da sociabilidade.
Ingere-se-as para melhor se relacionar com o outro.
Mas as drogas “isolantes”, não. Muito mais radicais, elas lançam sobre a realidade a dúvida quanto a sua própria existência. É nessa dúvida que se passa toda a experiência.
Pois essas drogas, atacando a realidade enquanto princípio, deslocam o sujeito como que para fora dela.
Ora, a rigor, fora da realidade é o nada. Ou, em psicanálise lacaniana, o real. E é por isso que muitos usuários de drogas dessa espécie, por meio do uso intenso e extenso, acabaram passando de vez para o outro lado, psicotizando, perdendo o contato com a realidade.
Mas, em casos menos radicais, qualquer usuário se vê como que fora da realidade.
Essa se lhe aparece como uma ilusão; porém, finda a experiência, retomará sua existência sólida, natural.
Durante a viagem, o sujeito vê a realidade à sua frente, como um teatro.
Ele se mantém consciente, mas, justamente, trata-se de uma hiperconsciência da realidade, isto é, de uma consciência daquilo de que normalmente somos inconscientes, por nela estarmos imersos.
É isso, creio, que um poeta, usuário de LSD, estava a dizer quando contou que pôde segurar seu ego junto à cintura, como quem segura um capacete. Uma distância se abre. E o sujeito se percebe num limbo, além da realidade, aquém do nada.
Esse limbo é um lugar de extrema sensibilidade porque suspende a realidade. A realidade naturaliza; ela é o que reconhecemos habitualmente, por mais extraordinárias que sejam suas operações internas (como a da arte, por exemplo).
Mas, suspensa, a realidade cede lugar à estranheza absoluta, à estupefação que é o seu próprio espetáculo como precária invenção.
Então, não é algo na realidade que é estranho, uma parte sua qualquer que escapa à gramática habitual.
Mas é a própria realidade, em sua totalidade, em seu princípio, que é estranha, abolido seu caráter de natureza. Nessa estranheza absoluta, os “sentidos tornam-se de uma acuidade extraordinária”, mas, ao mesmo tempo, “sobreabundantes a alegria, o bemestar, também são imensamente profundas a dor e a angústia”. Sim, tudo isso gira no mesmo vórtice, pois a suspensão da realidade é o teatro e o vazio, a beleza e o caos. A realidade se revela uma ilusão: um homem sensato “parece-vos o mais doido e o mais ridículo de todos os homens” — mas uma ilusão necessária. Para além dela é a verdade, isto é: o nada.
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