quinta-feira, outubro 21, 2010
Nobre e necessária
Nobre e necessária
Sérgio Besserman – O Globo
“A política é a arte do possível”. Bobagem, neste caso não é arte. “A política é a mais nobre das artes”. Bobagem, nobreza não é um critério aplicável às artes. A política, na verdade, é apenas necessária.
Eli Wiesel, em “Homens sábios e suas histórias”, nos relata maravilhosamente a história do livro a respeito. Samuel, juiz e profeta, é o personagem do drama.
Sendo ele mesmo a imagem da integridade, teve dois filhos que, também juízes, se corromperam pelo dinheiro e traíram a Lei de Israel.
Diante disso, os anciãos procuraram Samuel e lhe disseram: “Já que estás velho e seus filhos não se parecem contigo, dá-nos um rei para nos governar e seremos iguais às outra nações”. O povo pedia um rei, um Estado, ou seja, a política. Essa mesma política que nas eleições presidenciais brasileiras cismou de invocar Deus para tudo, até gestor do SUS, nasceu, na verdade, contra Ele. Samuel se aborreceu com o pedido dos anciãos, mas Ele o esclareceu: “Não te amofines com isso... Não estão contra ti, mas contra Mim. É de Mim que estão fartos, não de ti”.
A política nasce contra Deus, mas ele compreende sua necessidade para os humanos. Ainda assim acha preciso que todos compreendam seu significado e diz a Samuel: “Escuta-os... Mas dizlhes o que os espera... Explica-lhes o que um rei significará para a nação”.
Samuel o faz e tenta prevenir e amedrontar os judeus, mas os judeus querem um rei, querem ser iguais às outras nações. Estão cansados de ser um povo especial, um povo à parte, escolhido por Deus para não se sabe quais missões...
A política, portanto, já nasce para o povo de forma contraditória: é a vontade de Deus atender ao pedido, e assim Ele aconselha Samuel e coroa Saul. Mas sabe que o pedido decorre de estarem fartos de Deus.
Saul cumpre seu trágico mandato, mas tem sempre a sombra do profeta a atormentá-lo de forma impiedosa. Não seria também uma lição? Para que a política seja o que ela tem de nobre e necessário, a capacidade de agregar em torno de ideias para transformar a realidade, é sempre preciso que a profecia esteja a atormentá-la, a lembrar que ela não se basta, que é ferramenta, sem méritos intrínsecos a não ser o imenso valor de sua necessidade.
No Brasil de hoje temos rei, ou reis e rainhas, mas não temos profetas ou profecias. Apesar dos avanços da sociedade e da democracia brasileira, é forçoso reconhecer que nosso sistema político tornou-se não funcional do ponto de vista da agregação de forças em torno de ideias e propostas. Há diversas razões para esse processo e a mudança desse quadro depende acima de tudo do aumento do acesso ao conhecimento por parte de todas as camadas sociais do país. Mas as regras do jogo não são neutras e favorecem espantosamente a essa misturebada geral que tudo confunde e nada esclarece.
Os constituintes de 1988 nos deixaram dois grandes legados perversos no sistema político: regras feitas para o Parlamentarismo e adaptadas às pressas e no último momento a esse sistema que o cientista político Sergio Abranches nomeou de “presidencialismo de coalizão”, e a manutenção do sistema eleitoral sem mudança expressiva em relação às regras anteriores e preservadas pelo regime militar.
O primeiro legado determina a cooptação dos partidos políticos para formar uma base parlamentar à base de favores, empregos e tudo o mais que o patrimonialismo típico de nossa sociedade bem conhece. O segundo legado determina que o peso do dinheiro é desproporcionalmente alto no Brasil (quando comparado a outras democracias) como fator de competitividade na disputa eleitoral, porque os membros do Congresso Nacional elegem-se pela obtenção de votos em superdistritos, os estados da Federação. Só os que têm capacidade de alavancar recursos financeiros capazes de lhes fazer chegar o nome a milhões e milhões são competitivos na disputa e, portanto, têm poder no interior dos partidos.
Deus atendeu ao povo e lhes deu um rei, Saul. Mas não afastou Samuel, e os profetas continuaram a falar. Mais tarde, para grande parte da humanidade, enviou e sacrificou seu próprio filho em nome de ideias, valores e amor. A política é nobre porque é necessária. E é necessária porque transforma, projeta e sonha. Se o sistema político não organiza em função de ideias, elas se tornam dispensáveis. E sem ideias não há sonhos. Reforma política já!
SERGIO BESSERMAN VIANNA é professor do Departamento de Economia da PUC-RJ.
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