segunda-feira, março 21, 2011

Listas

Listas
Manoel Carlos
Como todo mundo, eu também cresci ouvindo meu pai dizer, com um certo orgulho cívico, como se a natureza estivesse sempre do nosso lado:
— O Brasil é um país abençoado. Não temos terremotos, vulcões, ciclones nem nenhuma outra calamidade natural.
E minha mãe, parceira de Deus em tudo o que fazia, riscava no corpo o sinal da cruz, acrescentando:
— Que Deus nos livre e guarde!
Hoje, com toda a certeza, meu pai não seria tão pretensioso, já que as chuvas, em todo o Brasil, têm causado grandes tragédias, com deslizamentos de terra, desabamentos e enchentes, carregando casas, pessoas e milhares de sonhos ribanceira abaixo.
Nasci em São Paulo e vivi, por muitos anos, naquela bela cidade, apropriadamente conhecida como “terra da garoa”, um apelido carinhoso que ela mereceu durante muito tempo. Pelo menos durante o tempo em que fui criança, adolescente — até adentrar a idade adulta. À noite, quase todas as noites, a garoa era a fiel companheira dos boêmios, causadora, no máximo, de um inofensivo resfriado. Hoje, pelo que lemos nos jornais, São Paulo submerge quase todas as tardes, emergindo na manhã seguinte, o tempo suficiente para secar e estar preparada para novo banho.
E assim tem acontecido em várias cidades do nosso imenso país, como na região serrana do Rio, há pouco. Obviamente, nada se assemelha ao que ocorre nos países que convivem com os vulcões, os ciclones, os terremotos e agora também os tsunamis.
Essa sucessão de catástrofes trouxe de volta as listas, paixão do homem desde os primórdios, como nos ensina Umberto Eco no belíssimo livro A Vertigem das Listas, que a Editora Record colocou nas livrarias.
E, por coincidência ou não, no mesmo momento em que ficamos sabendo que o terremoto que arrasou o Japão é “apenas” o sexto mais devastador entre os sete listados, somos também informados da lista dos bilionários do planeta, que inclui o brasileiro Eike Batista numa oitava colocação, o que levaria meu pai a comentar, se vivo fosse, que o Brasil, pelo menos no quesito fortuna, está bem na fita, quer dizer, na lista. E, nesse mesmo rol de homens afortunados, aparece também um artista brasileiro, o nosso Waltinho Salles, ainda que num modesto (por enquanto) 440º lugar. Mais listas circularam, como a das melhores universidades e a dos artistas americanos que mais devem ao Fisco, com Michael Douglas na ponta; os mais drogados, com o imbatível Charlie Sheen; os mais violentos, com Mel Gibson.
As listas, durante o mês de março, ainda exibiram números curiosos, como o de armas de fogo, que nos mostrou que, das 28 540 registradas no país, a região sul encabeça a lista com 15 238, tendo Santa Catarina (vejam só!) disparado na ponta, com 6 840, seguida do Paraná, São Paulo e Rio Grande do Sul. O Rio, de tão decantada violência, aparece num modesto quinto lugar. Meu amigo Lauro, com quem comentei esses números, afirmou, com ar sombrio, que o Rio é o campeão, mas... em armas não registradas. É, pode ser...
No reino das amenidades, o Carnaval revelou a lista dos mais beijoqueiros, com a Hebe em primeiríssimo lugar; dos mais festejados, com o Roberto Carlos; dos que mais apareceram, com a Sabrina Sato destronando Claudia Leitte, Ivete Sangalo e Carolina Dieckmann; dos mais implicantes, com a Luana Piovani; dos maiores cachês de políticos brasileiros, com o Lula campeão. Enfim: as listas voltaram com tudo, a partir do terremoto no Japão, duas semanas atrás, que registrou 8,9 graus na escala Richter.
Agora uma síndica de um condomínio em São Paulo resolveu estabelecer uma escala para os gemidos amorosos, já que, de um dos apartamentos, demonstrações sonoras de paixão vêm incomodando os vizinhos. Ainda não se sabe como ela pretende fazer essa medição, mas já se especula o nome que ela terá: escala Rejane, nome da síndica que pretende atender os vizinhos, que se posicionaram contra o fogo do casal apaixonado.
Diante disso, repudio a medida repetindo as palavras da minha mãe:
— Que Deus nos livre e guarde de tamanha inveja!

Sinfrônio, no Diário do Nordeste (CE)


Fim da era nuclear?

Fim da era nuclear?
RICARDO YOUNG - FOLHA DE SÃO PAULO - 21/03/11
A história tem muitas ironias. A mais recente?
A era nuclear poderá terminar em Fukushima, não muito distante de onde começou: Hiroshima e Nagasaki. Centenas de milhares de civis pereceram e confrontaram a humanidade com a possibilidade de sua extinção diante de algum conflito bélico.
No entanto, desde o início, as ameaças reais à vida no planeta decorreram da energia nuclear usada para fins pacíficos, de usinas elétricas ou térmicas a equipamentos e artefatos de variados usos.
Impressiona-me ainda que, a cada novo evento, a gravidade da ocorrência é maior que a anterior, como se o ser humano duvidasse da sua própria possibilidade de extinção.
Outra constatação: as falhas em cada acidente ocorrem mais em função da irresponsabilidade no manejo, no monitoramento técnico e na transparência das informações para a sociedade, do que, propriamente pelo uso do material radiativo.
Em Tchernobil, em 1986, problemas técnicos aliados à imprudência dos engenheiros resultaram no vazamento do vapor de um reator que produziu uma explosão seguida de incêndios e, finalmente, do derretimento nuclear. A Europa jamais esquecerá as consequências sofridas.
O acidente com o césio 137, ocorrido em Goiânia em 1987, recebeu classificação de gravidade 5 pela escala internacional de acidentes nucleares, a mesma nota dada ao vazamento em Fukushima.
De novo, a irresponsabilidade. Catadores da cidade entraram nas ruínas de um hospital abandonado e encontraram um cilindro de aço. Ele foi recolhido como sucata e, na oficina de um deles, desmontado, espalhando o cloreto de césio que estava dentro da cápsula.
Em poucas horas, algumas já estavam mortas e 863 apresentam sequelas até hoje. O bairro precisou ser isolado por vários anos e milhares de pessoas em Goiânia tiveram que ser examinadas regularmente.
Neste acidente do Japão, a usina foi fortemente abalada pelo terremoto e pelo tsunami. No entanto o reator 4 já vinha apresentando problemas sérios, não relatados pela concessionária à agência reguladora japonesa. Esse comportamento criou as condições adequadas para a tragédia.
Os fatos em Fukushima nos obrigam a refletir não apenas sobre o uso da energia nuclear, mas também sobre as concessões privadas explorá-la.
Nesse caso, há um conflito de interesses entre o objetivo do negócio -o lucro- e o da sociedade -o bem-estar.
Será possível ter qualidade de vida quando a energia vem de uma usina nuclear operada por uma empresa que não segue, rigorosamente, os princípios da gestão socialmente responsável?

AROEIRA


Nossa pequena Harvard

Nossa pequena Harvard
Caio Barreto Briso - Revista VEJA RIO
Escondido em meio à Floresta da Tijuca e pouco conhecido até mesmo dos cariocas, o Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada rivaliza em excelência com as melhores universidades americanas.
Welington de Melo, Jacob Palis e Artur Ávila, na Biblioteca do Impa (foto do prédio principal abaixo): três gerações de talentos
Passada a primeira curva da Estrada Dona Castorina, que leva ao mirante da Vista Chinesa, no bairro do Horto, sobressai a entrada de uma propriedade cercada pelas árvores da Floresta da Tijuca. Ali, em um terreno de 15 000 metros quadrados, um vasto prédio se esparrama por três alas. Pelos corredores, o silêncio monástico é cortado de tempos em tempos por diálogos em português, inglês, francês e espanhol. Não raro, incorporam-se a essa babel de idiomas expressões em russo e mesmo persa, uma das línguas mais antigas do planeta. É nesse ambiente, mistura de bucolismo e aldeia global, que 226 matemáticos desenvolvem estudos complexos e projetos de repercussão internacional. Embora não seja muito conhecido entre os próprios cariocas, o Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada (Impa) é unanimemente apontado entre os especialistas como um dos principais centros de pesquisa do mundo. Ancorado em sólida produção científica, exibe uma performance surpreendente, ultrapassando índices de departamentos de universidades americanas como Harvard, Princeton e Berkeley. Segundo dados da American Mathematical Society, a instituição brasileira publica, em média, 2,03 artigos relevantes por pesquisador ao ano, enquanto Harvard alcança 1,89 e Princeton, 1,83 (veja o acima). “Sempre buscamos a excelência, e essa performance é apenas o resultado desse compromisso”, orgulha-se o diretor César Camacho.
Sabe-se que um núcleo de ensino superior se torna respeitado à medida que consegue atrair talentos dos quatro cantos do globo. Entre os centros americanos, considerados os primeiros do mundo, a presença de acadêmicos estrangeiros chega a 30%. No período áureo do sistema universitário alemão, na década de 20 e início dos anos 30, quando a importação de cérebros era incentivada, o país produziu 21 prêmios Nobel. Portanto, faz parte da vocação de uma ilha de excelência reunir grandes cabeças, independentemente de onde elas estejam. Um recente processo para a escolha de dez vagas nos programas de pesquisa e pós-doutorado dá uma ideia da reputação internacional do Impa. Anunciado o “vestibular”, apareceram 185 candidatos. Da Europa, vieram 66. Da Ásia e América do Norte, 43 e 26, respectivamente. Os latino-americanos perfaziam 28, enquanto os brasileiros eram 23. Encerrada a seleção, apenas duas posições foram ocupadas por estudantes daqui, um cearense e uma gaúcha. Outras sete foram divididas por representantes de nações diferentes (Inglaterra, Alemanha, Espanha, Itália, Portugal, Israel e Rússia). E detalhe: uma última vaga permaneceu em aberto por falta de postulante suficientemente qualificado. “Não temos cota. Simplesmente escolhemos os melhores”, diz Camacho. Uma vez selecionados, os pós-doutorandos ganham 7 500 reais mensais, enquanto os pesquisadores têm salários entre 12 000 e 15 000 reais.
Não é fácil reproduzir em palavras todo tipo de trabalho desenvolvido no câmpus do Horto — para isso, seria melhor fazer uso de equações e algoritmos. Alguns projetos, porém, são de fácil entendimento. Existem aplicativos para iPhone, simuladores de realidade virtual e até um recorde mundial alcançado em 2010: uma imagem com a maior resolução gráfica do planeta (veja o quadro aqui). Tamanha produtividade, pouco comum entre nós, pode ser explicada por diversas razões. Mas a principal delas é a capacidade dos que ali estão. O Impa tem formado sucessivas gerações de gente que faz diferença. O mais reconhecido é Jacob Palis, 71 anos, tido como gênio mundial dos sistemas dinâmicos. No ano passado, Palis, doutor por Berkeley, nos Estados Unidos, foi agraciado com o Prêmio Balzan, uma das principais distinções europeias. Além de ser o primeiro brasileiro a receber a honraria — e o 1,2 milhão de reais que a acompanha — , Palis tornou-se o sétimo matemático a entrar para o grupo de agraciados. Empenhado em transmitir seus conhecimentos, ele se emociona ao relembrar que orientou 41 teses de doutorado ao longo da carreira. Desde então, esses mesmos doutores já formaram outros 150 matemáticos do instituto. “Essa é a essência do conhecimento, em que os mais experientes formam os mais jovens, sucessivamente”, resume.
Os pesquisadores Diego Nehab e Carolina Araújo, ambos de 34 anos: volta ao Brasil depois de cursarem doutorado em Princeton, uma das universidades mais importantes do mundo
Tal filosofia, fortemente baseada na meritocracia, deu origem a uma linhagem de superpesquisadores como Marcelo Viana, Ricardo Mañé e Welington de Melo, reconhecidos no Brasil e no exterior pela notória desenvoltura com números. E desaguou em prodígios como Artur Ávila, de 31 anos. Ele é considerado o mais forte candidato a ganhar a medalha Fields, uma espécie de Prêmio Nobel de Matemática, entregue a cada quatro anos. Seria o primeiro brasileiro a conquistá-la. Há uma década, antes mesmo de ter um diploma de graduação, ele havia concluído seu doutorado no Impa. Famoso no exterior pela capacidade de resolver os problemas mais complexos, ele se divide hoje entre Paris, onde é um dos diretores do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), e o Rio de Janeiro. “A maioria das pessoas só conhece o tema nos tempos de escola e ignora o vasto horizonte nessa área”, diz. Ávila, de fato, respira o assunto. Não raro, acorda no meio da noite com ideias e novos caminhos para suas teses. Durante o banho, nas caminhadas e até no metrô, as equações lhe vêm à cabeça. Costuma dizer que prefere não dirigir porque, devido a sua capacidade de abstração, poderia perder a concentração e bater o carro.
Sala de estudos do câmpus, no Horto: atmosfera ao mesmo tempo informal e cosmopolita
Por qualquer ângulo que se olhe, a educação brasileira está longe do ideal. Em seu ranking mais recente sobre o ensino fundamental, a Unesco atribuiu ao país a 88ª posição entre as 127 nações analisadas — atrás de Bolívia e Namíbia. Outra lista, sobre as 200 melhores universidades do mundo, feita pela revista inglesa Times Higher Education, não incluiu nenhuma das nossas. Ou seja: estamos mal em cima e em baixo. Por não ter cursos de graduação e se dedicar unicamente à matemática, o Impa não é avaliado nesse tipo de levantamento. Mas sua trajetória poderia servir de exemplo e inspiração. Criado pelo governo federal em 1952, o instituto surgiu antes de outros correlatos — como o de Pesquisas Espaciais em São José dos Campos (SP) e o da Amazônia, em Manaus. Com o tempo, graças à adoção de um sistema de gestão diferenciado, foi se descolando de seus pares. Trata-se de uma organização que recebe repasses públicos, mas tem independência administrativa. Com isso, as contratações e os investimentos são mais ágeis. Se a direção julgar procedente, os acadêmicos poderão ser punidos com a demissão. “Isso faz uma enorme diferença, pois dá autonomia. Pesquisa não se faz no improviso”, afirma o economista Claudio de Moura Castro, especialista e consultor na área.
Costurados com carinho, os laços com a iniciativa privada têm se mostrado outro importante diferencial. A cada ano, o instituto recebe 18 milhões de reais em repasses do Ministério da Ciência e Tecnologia. Mas, além de administrar tais recursos com rigor, busca também financiadores externos, seja através de parcerias, seja por meio de simples filantropia. Desde 2007, por exemplo, o economista e ex-presidente do Banco Central Armínio Fraga doou 1,6 milhão de dólares para seus cofres. O dinheiro foi destinado à criação de um posto permanente de pesquisador. Em seguida, foi a vez de o banqueiro Pedro Moreira Salles e seu irmão, o cineasta João Moreira Salles, destinarem 660 000 reais para a manutenção de duas vagas de doutorado e mais duas de pós-doutorado. O último a entrar na lista foi o célebre matemático americano James Simons, dono de uma fortuna de 10,6 bilhões de dólares e o 74º homem mais rico do mundo. No início do ano, ele se comprometeu a aplicar 1,6 milhão de dólares. “A matemática é fundamental para a boa educação, e o Impa é um centro de padrão máximo global, talvez a instituição brasileira de maior prestígio internacional”, explica Fraga. “De lá saem pessoas que espalham pelo Brasil ideias e padrões essenciais, vitoriosos.”
O inglês Morris, o iraniano Movasati e o argentino Heloani: salários compatíveis com os dos melhores centros e excelentes condições de pesquisa atraem matemáticos de vários países
    Nas grandes universidades do mundo, os pesquisadores de ponta gozam de uma invejável independência, seja para dispor de seu tempo, seja para escolher os rumos de seu trabalho. O mesmo acontece com os matemáticos da ilha de excelência carioca. O fato de não terem de dar aulas para graduação lhes permite uma maior dedicação a seus próprios projetos. É curioso observar que, frequentemente, um estudante de determinada área não entende absolutamente nada das outras. “Eu sou da computação gráfica e as outras especialidades são praticamente outra língua para mim”, confessa Diego Nehab. Aos 34 anos, ele é representante da nova geração de estudiosos do instituto. Doutorou-se em Princeton e passou pelo centro de inovação da Microsoft, na costa oeste americana. Com tantas credenciais, Nehab poderia ter continuado nos Estados Unidos, mas, quando soube da vaga, decidiu que era a hora de voltar. “Aqui tudo funciona. Os equipamentos são ótimos”, diz ele. Trajetória semelhante teve Carolina Araújo, de 34 anos. Como Nehab, ela fez doutorado em Princeton. Lá, sua sala ficava no mesmo andar do escritório de John Forbes Nash, ganhador do Nobel de Economia em 1994 — e inspirador do filme Uma Mente Brilhante. “Ele ia diariamente à universidade. Sempre nos cumprimentávamos”, recorda. A perspectiva de desenvolver projetos na área de geometria algébrica a animou a trocar os Estados Unidos pelo Rio. Com isso, tornou-se também a única mulher a ocupar um posto na elite do Impa.
Presenças marcantes no belo campus do Horto, os estrangeiros parecem se sentir em casa. Adepto de um uniforme pouco usual entre as estrelas acadêmicas de seu país, o argentino Reimundo Heloani, de 33 anos, percorre os amplos corredores do instituto de camiseta, bermuda e chinelo de dedo, aliás, um visual comum por ali, principalmente entre os expatriados. Com especialização no Massachusetts Institute of Technology (MIT) e em Berkeley, escolheu o Brasil para fazer suas pesquisas em uma área aqui ainda pouco explorada, a física matemática. O inglês Robert Morris, de 30 anos, segue o mesmo estilo. Graduado na Universidade de Cambridge, o maior celeiro de prêmios Nobel do planeta (82 no total), ele se diz apaixonado pelo Rio: “O salário é ótimo, muito parecido com o que se paga na Europa. Além disso, os colegas são mais abertos para a troca de conhecimento”. Com sua mistura de rigor acadêmico e informalidade, o Impa atrai até representantes de culturas longínquas, como o iraniano Hossein Movasati. Há quatro anos na cidade, após uma experiência na Alemanha e no Japão, ele foi o primeiro de seu país a estudar na nossa pequena Harvard. Agora, espera que conterrâneos sigam seus passos. “Outros virão”, avisa Movasati. As portas estão abertas. Mas apenas para os melhores.

Imprensa e política

Imprensa e política
CARLOS ALBERTO DI FRANCO – O Globo e O Estado de S. Paulo 21/03/11
O governador do Rio Grande do Sul e ex-ministro da Justiça de Lula, Tarso Genro, manifestou desconforto com o trabalho da imprensa. Na contramão do discurso da presidente Dilma Rousseff, defensora dos jornais, "mesmo quando são irritantes, mesmo quando nos afetam, mesmo quando nos atingem", o governador gaúcho vislumbra riscos para a democracia subjacentes ao empenho investigativo dos jornais.
Em artigo na Folha de S. Paulo, Tarso Genro aponta o perigo representado pela imprensa: "É visível que existe, em grande parte da mídia, também uma campanha contra a política e os políticos, o que, no fundo, é, independentemente do objetivo de alguns jornalistas, também uma campanha contra a democracia".
O comentário do governador, em sintonia com a linha mais autoritária de seu partido, o PT, é injusto e infeliz. Não é o jornalismo investigativo que conspira contra a democracia. É a corrupção endêmica e impune. É o pragmatismo aético. É a "governabilidade" que justifica alianças que fariam corar até mesmo representantes de facções.
O fisiologismo político é responsável por alianças que são monumentos erguidos à incoerência e ao cinismo. Quando víamos Lula, José Sarney, Fernando Collor e Renan Calheiros, só para citar exemplos mais vistosos, abraçados e congraçados, no mesmo palanque, pairava no ar a pergunta óbvia: o que une firmemente aqueles que estiveram em campos tão opostos? A "governabilidade", dirão alguns. Na verdade, interesse. Só interesse. Os fisiologistas têm carta-branca para gozar as benesses do poder. Os ideológicos, cúmplices ou lenientes com o apetite dos fisiológicos, recebem deles o passaporte parlamentar para avançar no seu projeto de poder.
Tarso escolheu um momento ruim para investir contra a imprensa, pois recentemente se tornou público um vídeo em que a deputada federal Jaqueline Roriz (PMN-DF) aparece recebendo um maço de dinheiro das mãos do delator do mensalão do DEM, Durval Barbosa.
Barbosa, recorda o jornalista Fernão Mesquita, "é o pivô do "mensalão do DEM", aquele no qual tombou sob o fogo das lentes indiscretas da Polícia Federal lulista o governador José Roberto Arruda, em manobra arquitetada para mostrar que isto de "mensalões" não é exclusividade do PT e, assim, animar as "excelências" a aprovar, em unanimidade suprapartidária, uma saída de emergência para "mensaleiros" pegos em flagrante escaparem da cassação".
Foi rigorosamente o que aconteceu. A nova legislação é uma bofetada na cidadania. Diz pura e simplesmente: quem roubar em cargo público só pode ser punido por malfeito flagrado no mandato em exercício. Ficam impunes as roubalheiras praticadas em mandatos anteriores.
Não foi a primeira vez que Jaqueline Roriz esteve envolvida em escândalos. Há precedentes. Suas impressões digitais apareceram em achados da Polícia Federal já em 2006. Mas o que salta à vista de qualquer praticante de empenhos investigativos, sublinha Fernão Mesquita, é que a deputada Jaqueline Roriz "possivelmente não seria eleita em 2010 para o cargo que lhe garante a impunidade de seus crimes anteriores se o filme que a mostra praticando um deles em 2006, desde então dormindo nas gavetas da Polícia Federal lulista à espera de um momento conveniente, tivesse sido divulgado antes" (www.vespeiro.com). É isso que cabe à imprensa. Mostrar o que sonegam. Desnudar o verdadeiro substrato dessa sucessão interminável de escândalos.
É um erro, um grave equívoco, minimizar a gravidade da corrupção. O Brasil está bombando. O desenvolvimento absolve todos os pecados. O crescimento da economia é uma viseira que impede um olhar mais profundo sobre o País que queremos construir. O custo humano e social da corrupção é assustador. A dinheirama que desaparece no ralo da corrupção é uma tremenda injustiça e um câncer que, aos poucos e insidiosamente, vai minando a República.
A corrupção, independentemente do seu colorido partidário, precisa ser duramente combatida. É ela que empurra a juventude desempregada para o consumo e o tráfico de drogas. É ela que abandona os idosos que são maltratados nas filas de uma saúde pública de baixíssimo nível. Saúde para todos. Maravilha. Mas que tipo de saúde? Educação para todos. Formidável. Mas que tipo de educação? O Brasil é VIP na economia, mas é o único entre os emergentes sem universidades top de linha. É o que mostra o novo ranking divulgado pela Times Higher Education (THE), a principal referência no campo das avaliações de universidades no mundo.
A um projeto autoritário de poder o que menos interessa é gente educada, gente que pense criticamente. Multiplicam-se universidades, mas não se formam cidadãos: homens e mulheres livres, bem formados, capazes de desenvolver seu próprio pensamento, conscientes de seus direitos e de seus deveres.
O Brasil pode morrer na praia de uma economia florescente, mas sem um projeto sério de educação. Só a educação de qualidade será capaz de preparar o Brasil para o grande salto. Deixarmos de ser um país exportador de commodities para entrar, efetivamente, no campo da produção de bens industrializados.
Para isso, no entanto, é preciso o acicate de uma imprensa independente e que vá além dos episódios pontuais. Uma imprensa desmistificadora de relatórios oficiais. Um jornalismo capaz de fazer a correta leitura de números, estatísticas e documentos. Impõe-se a prática de um jornalismo que não se vista com as lantejoulas do último escândalo denunciado, mas que saiba o que está no fundo da impunidade.
O governador Tarso Genro está equivocado. A imprensa não ameaça a democracia. O que, de fato, compromete a democracia é a banda podre da política brasileira.
DOUTOR EM COMUNICAÇÃO, É PROFESSOR DE ÉTICA E DIRETOR DO MASTER EM JORNALISMO

A cola e a escola

A cola e a escola
RUY CASTRO - FOLHA DE SÃO PAULO - 21/03/11
RIO DE JANEIRO - A tentação é grande. Ao receber a incumbência de produzir um texto sobre um assunto xis, o aluno -de qualquer grau, escola ou universidade- vai ao Google, digita-o entre aspas, clica e recebe uma chuva de referências, páginas e até livros inteiros a respeito. Certo ou errado, não importa - está "tudo" ali, ao alcance dos dedos.
E copiar é ainda mais fácil. Pode-se puxar o texto para nosso arquivo sem precisar sequer digitá-lo. Sob o pretexto de fazer "pesquisa", e graças à internet, o plágio se tornou uma prática maciça entre os estudantes brasileiros. Se temos cola, para que escola?
Por sorte, os professores estão aprendendo. Primeiro, eles já não aceitam que determinado aluno, que passou o ano com a cabeça em Shakira ou Lady Gaga, possa de repente citar Cassirer ou Merleau-Ponty em seu trabalho. Para se certificar de que estão diante de um plágio, vão eles próprios ao Google, digitam entre aspas um trecho do trabalho, clicam -e o original completo, de autoria alheia, aparece gloriosamente na tela do monitor.
Outro motivo de suspeita é quando o mesmo trecho, com as mesmas palavras, aparece nos trabalhos de metade da turma, sinal de que foram à mesma fonte ou se copiaram uns aos outros.
É verdade que, no tempo da caneta-tinteiro, da pena de ganso e do mata-borrão, também existiam a preguiça, a cópia e o plágio. Mas o acesso aos livros era menor, havia menos títulos circulando e estes eram conhecidos pelos professores. Era preciso grande descaro para transcrever trechos mais longos.
Às vezes, mandam-me trabalhos escolares sobre a bossa nova, Nelson Rodrigues, Garrincha ou Carmen Miranda. Passo os olhos na esperança de encontrar alguma novidade e, de repente, deparo com páginas que me soam familiares. Vou conferir e descubro, com divertido espanto, que sou o autor delas.

O acidente nuclear do Japão

O acidente nuclear do Japão
JOSÉ GOLDEMBERG - O Estado de S. Paulo - 21/03/11
Existem hoje cerca de 450 reatores nucleares, que produzem aproximadamente 15% da energia elétrica mundial. A maioria deles está nos Estados Unidos, na França, no Japão e nos países da ex-União Soviética. Somente no Japão há 55 deles.
A "idade de ouro" da energia nuclear foi a década de 1970, em que cerca de 30 reatores novos eram postos em funcionamento por ano. A partir da década de 1980, a energia nuclear estagnou após os acidentes nucleares de Three Mile Island, nos Estados Unidos, em 1979, e de Chernobyl, na Ucrânia, em 1986. Uma das razões para essa estagnação foi o aumento do custo dos reatores, provocado pela necessidade de melhorar a sua segurança. Com a queda do custo dos combustíveis fósseis na década de 1980, eles ficaram ainda menos competitivos. O custo da instalação de um reator nuclear triplicou entre 1985 e 1990.
Temos agora o terceiro grande acidente nuclear, desta vez no Japão, que certamente vai levar a uma reavaliação das vantagens e desvantagens de utilizar reatores nucleares.
Vejamos quais são os fatos, as causas e consequências do acidente nuclear japonês.
Os fatos são bastante claros: o sistema de resfriamento deixou de funcionar após os terremotos e o núcleo do reator onde se encontra o urânio começou a fundir, produzindo uma nuvem de materiais radioativos que escapou do edifício do reator, contaminando a região em torno dele. Além disso, o calor do reator decompôs a água em hidrogênio e oxigênio, o que provocou uma explosão do hidrogênio que derrubou parte do edifício. A quantidade de radioatividade liberada ainda não é conhecida, mas poderia ser muito grande (como em Chernobyl) se o reator não fosse protegido por um envoltório protetor de aço. O reator de Chernobyl não tinha essa proteção.
As causas do acidente são menos claras: a primeira explicação foi a de que, com o "apagão" causado pelo terremoto, os sistemas de emergência (geradores usando óleo diesel), que deveriam entrar em funcionamento e garantir que o sistema de resfriamento do reator continuasse a funcionar, falharam. A temperatura subiu muito e o núcleo do reator começou a fundir, como aconteceu no reator de Three Mile Island, nos Estados Unidos. Essa explicação provavelmente é incompleta; é bem provável que parte da tubulação de resfriamento tenha sido danificada, impedindo a circulação da água.
O que se aprende com essa sucessão de eventos é que sistemas complexos como reatores nucleares são vulneráveis e é impossível prever toda e qualquer espécie de acidente. Em Three Mile Island não houve nem terremoto nem tsunami, e nem por isso o sistema de refrigeração deixou de falhar.
A principal consequência do acidente nuclear no Japão é o abalo da convicção apregoada pelos entusiastas da energia nuclear de que ela é totalmente segura. Tal convicção é agora objeto de reavaliação em vários países e certamente também o será no Brasil.
Essa reavaliação envolve três componentes.
Em primeiro lugar, considerações econômicas: a competitividade da energia elétrica produzida em reatores nucleares comparada com eletricidade produzida a partir de carvão ou gás é desfavorável a ela. Ainda assim, ela se justificaria porque o uso de carvão ou gás para geração de eletricidade resulta na emissão de gases responsáveis pelo aquecimento da Terra, principalmente o dióxido de carbono. Em funcionamento normal, reatores não emitem esse gás. A competitividade da energia nuclear poderia melhorar se a emissão de carbono fosse taxada.
Em segundo lugar, considerações de segurança no suprimento de energia. A produção de eletricidade em reatores nucleares torna certos países menos dependentes de importações de carvão ou de gás natural - caso do Japão e da França -, mas, em contrapartida, torna-os dependentes da produção de urânio enriquecido ou da sua importação.
Em terceiro lugar, riscos de natureza ambiental e de proteção à vida humana resultantes da radioatividade. Este parece ser o "calcanhar de Aquiles" da energia nuclear. Outras formas de produção de eletricidade também oferecem riscos, que vão desde a mineração do carvão até usinas hidrelétricas que, ao se romperem, podem acarretar mortes e outros problemas, como o deslocamento de populações. No entanto, a radioatividade que é liberada em acidentes nucleares causa não só mortes imediatas (como aconteceu em Chernobyl), mas também doenças - inclusive o câncer - que só se manifestam anos após as pessoas terem recebido doses altas de radioatividade.
Escolher a fonte de energia mais adequada depende, pois, de uma comparação entre os benefícios, os custos e riscos que ela provoca e envolve.
Diferentes países têm feito escolhas diferentes e vários deles, na Europa, decidiram no passado excluir a energia nuclear do seu sistema, como a Itália, a Suécia e outros. Já outros, como o Japão e a França, fizeram a opção oposta.
Após 25 anos sem acidentes nucleares de grande vulto, a confiança na segurança de reatores aumentou e houve um esforço para estimular um "renascimento nuclear" com apoio governamental, principalmente nos Estados Unidos.
O acidente nuclear do Japão destruiu essa credibilidade e reviveu todos os problemas já esquecidos que reatores nucleares podem trazer. E também provocou uma reanálise de interesse em expandir a energia nuclear como solução na Europa e nos Estados Unidos.
Essa reavaliação é particularmente importante para os países em desenvolvimento, como o Brasil, que tem outras opções - melhores sob todos os pontos de vista - além da energia nuclear para a produção de eletricidade, que são as energias renováveis, como a hidrelétrica, a eólica e a energia de biomassa.

PROFESSOR DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (USP)

Elvis para o Correio Amazonense


Letras góticas na parede

Letras góticas na parede
YOANI SÁNCHEZ - O GLOBO - 20/03/11
Quando os filhos chegam a essa idade difícil que são os 17 anos, nós mães já estamos um tanto esgotadas pelas transformações de sua longa adolescência. Começam então a se cumprir, ou a frustrar-se, os sonhos de estudos superiores que, juntos, acalentamos. Aqueles que passaram pelo pré-vestibular faltando às aulas e com o caderno dobrado no bolso veem refletir-se o resultado de suas andanças na incapacidade de entrar na universidade. Todavia, para quem esteve maior tempo junto aos livros, nem sempre o desenlace corresponde a suas expectativas profissionais. A imprensa oficial cubana acaba de anunciar que haverá este ano uma importante redução das vagas para o ensino superior.
Durante várias décadas em Cuba, os jovens passavam automaticamente do ensino médio ao superior, sem vestibular. Eram os anos do escoramento do regime pelo Kremlin e existia a ideia de que todos devíamos obter um diploma de graduação em algo. Os trabalhos manuais foram subestimados e tarefas como semear a terra, varrer um parque ou reparar um eletrodoméstico eram muito pouco valorizadas socialmente. A profissão mais desejada pela maioria dos pais - os filhos em geral se deixavam levar pelo desejo dos progenitores - era a de médico. Daí que milhares e milhares de futuros doutores desfilaram pelas congestionadas aulas das faculdades de medicina.
Nas salas das casas podiam ver-se, emoldurados em dourado, títulos tão incríveis como "Engenheiro em reações nucleares" pela Universidade de Moscou ou "Especialista em exploração hidrelétrica" graduado em Leipzig, antiga Alemanha Oriental. As famílias competiam entre si em relação à especialidade a que se dedicariam seus rebentos, enquanto obrigavam os menores a entrar nas aulas do ensino superior. O pior desengano para um pai era escutar que seu jovem filho somente queria ser enfermeiro ou taxista. As ruas se encheram de gente com os mais altos estudos, mas faltavam braços para fazer as tarefas manuais de cada dia. A pirâmide profissional se inverteu e chegaram, então, novos problemas.
Ao nos cair em cima a crise econômica dos anos 90, todo esse desespero para obter um diploma foi por água abaixo. Passou a ser comum ver-se como motorista de um ônibus turístico o aplicado neurocirurgião que até há pouco salvava vidas numa sala de cirurgia. Salários ínfimos desestimularam professores, engenheiros e acadêmicos a seguir exibindo, com orgulho, o fruto de seus longos estudos. Ante as limitações legais para sair do país, os graduados em centros de altos estudos se viram em desvantagem diante de técnicos e operários que podiam viajar com mais liberdade.
Outro tanto ocorreu com os sonhos paternos em relação ao futuro profissional de seus filhos. Em muitos lares, deixou-se de estimular os adolescentes a entrar na universidade, para indicar-lhes o caminho curto de um emprego manual pelo qual obteriam melhor remuneração. Voltou-se a dizer, com orgulho, "meu filho é mecânico" ou "a menina quer ser cabelereira", pois em trabalhos como esses podia-se ganhar, num dia, o que um sacrificado médico obtinha num mês. Alguns até advertiam claramente os filhos de que o diploma já não era um fetiche para mostrar aos amigos, mas um forte grilhão que os ataria ao trabalho estatal.

Minhas amigas preferem que seus filhos vendam pizzas ou façam trabalhos de costura, numa sociedade repleta de profissionais que não encontram emprego de acordo com seus conhecimentos. Jogam-lhes na cara se preferem passar cinco anos estudando para depois receber um salário menor que o do vizinho, que preferiu trabalhar por conta própria.
Os papéis se inverteram e agora as avós alardeiam que um neto se tornou cozinheiro de um hotel, de onde traz todos os dias alguma carne e leite. Os diplomas de antanho seguem nas salas das famílias, embora hoje gerem mais interrogações do que poses de orgulho. Uma boa parte dos profissionais, ao ver as letras góticas que confirmam sua alta capacitação, somente atinam a se perguntar se valeu a pena, se tão longo sacrifício foi para isto.
YOANI SÁNCHEZ é filóloga. Blog: www.desdecuba.com/generaciony.

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