terça-feira, setembro 14, 2010

Xalberto, para a Charge Online


(Dirceu) Dilma (Erenice)

(Dirceu) Dilma (Erenice)
Fernando de Barros e Silva - FOLHA DE S. PAULO
SÃO PAULO - A Casa Civil teve três titulares sob Lula. O destino ruinoso do primeiro deles abriu a porta do paraíso para a segunda. Dilma Rousseff está hoje na posição que José Dirceu sonhava para si, não houvesse o mensalão no meio do caminho. Dado o histórico da pasta, é o caso de perguntar se Erenice Guerra está mesmo no lugar errado.
Mas há diferenças entre eles. Dirceu era da tropa de elite do PT. Caiu, foi enxovalhado, mas preservou algum prestígio no partido, seu porto seguro. Parte da militância cultiva por ele certo amor bandido.
Preste atenção agora no que diz Dilma da sua afilhada, no debate Folha/Rede TV!: "Eu tenho até hoje a maior e a melhor impressão da ministra Erenice. (...) Agora, eu quero deixar claro aqui: eu não concordo, não vou aceitar que se julgue a minha pessoa baseado no que aconteceu com um filho de uma ex-assessora". Se Lula sacrificou Dirceu em 2005, por que Dilma não sacrificaria Erenice em 2010?
A ex-assessora ocupa circunstancialmente o coração do poder, o lugar mais alto da República depois de Lula, mas é um quadro típico do segundo escalão, contra o qual surgiram evidências de que usou sua posição para favorecer a parentela. Além do filho lobista, facilitador do acesso de uma empresa privada a verbas públicas sobre as quais a mãe-ministra tem influência, foram "descobertos" outros irmãos e agregados de Erenice, acomodados no Estado e/ou agraciados por negócios vários com o setor público.
Nepotismo, tráfico de influência, prevaricação, crime de responsabilidade -sabe-se lá o que pode estar implicado neste caso. Mas ele parece condenado a ser apenas isso - mais um caso, o caso Erenice.
Os escândalos foram banalizados e estão desmoralizados porque Lula quis assim.
Não foi obviamente o PT quem inventou o pistolão, o compadrio ou a pilhagem privada do Estado. Mas quando o PT foi criado, a esquerda tinha a veleidade de ser contra o patrimonialismo.

Aparência, nada mais

Aparência, nada mais
Dora Kramer - O Estado de S. Paulo - 14/09/2010
Um dos segredos do sucesso do governo Luiz Inácio da Silva é que não se constrange com nada. Aplica o mesmo truque diversas vezes com a maior seriedade e segue impávido não raro indignado com ofensas à honra e ataques insidiosos de uma gente muito sem classe que vê problema onde vigora a mais perfeita correção.
Agora nesse caso perfeitamente natural em que a ministra chefe da Casa Civil tem um filho que faz tráfico de influência e mais uns parentes pintando e bordando governo adentro, incluindo o uso de laranjas a fim de esconder a participação da própria ministra no negócio, o governo foi rápido - porém repetitivo - na reação.
Pediu a um assessor da Casa Civil que se demitisse, fez o gesto do repúdio à calúnia e, para não restar dúvida quanto ao rigor, acionou a Comissão de Ética Pública para examinar a conduta de Erenice Guerra, a ministra em questão.
Isso depois de deixar bem claro o seguinte: mulher de confiança de Dilma Rousseff, deixada por ela no cargo, Erenice não tem nada a ver com a ex-chefe e agora candidata do PT à Presidência. Inclusive porque, como disse Dilma, isso é um problema de governo. Governo com o qual ela não tem nada a ver, pois não?
A referência ao "governo de Lula e Dilma" na propaganda eleitoral, fica combinado, é só força de expressão.
A Comissão de Ética Pública se pauta pelas melhores das intenções. Na prática é uma das maiores inutilidades da República. Guarda semelhança talvez apenas com o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social.
A comissão tem um código: 19 belos artigos em defesa da melhor conduta das autoridades, conselheiros da melhor estirpe e nenhum poder de fato.
O último caso remetido para lá foi o do então secretário de Justiça Romeu Tuma Júnior, aquele que cuidava de reprimir a pirataria e era amigo íntimo do rei da pirataria em São Paulo.
Ninguém mais ouviu falar do caso. Anteriormente também a comissão cuidou de examinar a conduta do assessor especial Marco Aurélio Garcia, filmado em gestos obscenos no Palácio do Planalto para comemorar uma versão sobre falha técnica que teria ocasionado o desastre da TAM na pista do Aeroporto de Congonhas, em 2007.
Depois disso (ou foi antes?) a comissão cuidou do conflito de interesses na dupla jornada de Carlos Lupi na presidência do PDT e no posto de ministro do Trabalho e foi devidamente desmoralizada por ele em público.
Por essas e algumas outras já se sabe que o envio qualquer caso para a Comissão de Ética Pública não quer dizer nada. Ou melhor, significa que o governo pretende dar o assunto por enterrado.
Sentimento do mundo. Thais Pascoal, 23 anos e que se define como "antenada nas questões do País", escreve para "compartilhar sentimentos com relação ao ano eleitoral".
Diz: "Sinto que estou em um circo onde a cada quatro anos há um novo espetáculo, com candidatos de todos os tipos fazendo concorrência desleal aos programas humorísticos.
"Sempre fui fascinada por política nacional e internacional, mas confesso que tenho vivido com arrepios na espinha.
"Como chegamos a esse ponto em que o Brasil virou uma piada? Se eu pudesse, não votaria neste ano. Em quem votar? Esta é a pergunta que me faço todos os dias na hora de dormir, de tomar banho, de comer.
"Se o voto não fosse obrigatório creio que os partidos e os candidatos seriam mais, digamos, "honestos", mas serei obrigada a votar naquele que nem apresentou boas propostas.
"A política virou um campo de batalha em que falar mal é a principal arma de guerra: usar a filha de um, a conta do outro, o passado da outra."
Para concluir, declara-se "revoltada" e temerosa quanto ao presente e ao futuro. E, pelo que se depreende de sua mensagem, órfã no tocante a representação político-partidária.
Não é a única numa eleição em que o desinteresse se expressa nas coisas mais banais. Por exemplo, na ausência de adesivos nos carros, uma clássica maneira de marcar (e mostrar) posição.

Pelicano para o Bom Dia, SP


Couraça para os bancos

Couraça para os bancos
Celso Ming - O Estado de S. Paulo - 14/09/2010
As principais autoridades monetárias do mundo (presidentes de bancos centrais)chegaram nesse fim de semana, em Basileia (Suíça), a um acordo final sobre o aumento das exigências de capital dos bancos.
Embora pareça assunto técnico-contábil enfadonho, trata-se de decisão prudencial de grande importância, cujo objetivo é tentar matar as crises bancárias ainda no ovo.
Este é o terceiro pacote de exigências de capital em relação aos ativos totais dos bancos. Por isso são chamados de Acordos de Basileia 3. Basileia (ou Basel) entra na paisagem bancária porque lá está o BIS, sigla em inglês de Bank for International Settlements, organismo que atua como banco central dos bancos centrais.
O problema existe porque os bancos trabalham sobre dois barris de pólvora. O primeiro deles é o fato de que muito do dinheiro que emprestam volta a ser depósito à vista e pode ser reemprestado em seguida. Ou seja, banco tende a criar dinheiro do nada. Para que isso não aconteça, existe a exigência da retenção compulsória. Nenhum banco pode trabalhar com todos os depósitos que recebe. Tem de recolher uma parte no banco central.
O outro barril de pólvora é o chamado descasamento de prazos. Emprestam a prazo mais longo dinheiro dos aplicadores que ficam devendo à vista ou a prazo curto. Às vezes acontece (geralmente em época de crise) que o depositante vai buscar o dinheiro e ele não está lá porque foi emprestado e só voltará em prestações a perder de vista. Por isso, os bancos têm de trabalhar com alto volume de capital em relação a suas aplicações (ativos). A última crise aconteceu, entre outras causas, porque o volume de capital ficou insuficiente para o volume de aplicações.
O foco das novas exigências é aumentar o capital de alta qualidade com que os bancos podem atuar. Capital de alta qualidade é o patrimônio, mais lucros retidos, mais certo porcentual de crédito tributário (até 10%).
O atual padrão mundial (que é de longe insuficiente) é de 2% de capital de alta qualidade em relação a todos os ativos dos bancos. As novas exigências são de 4,5%, mais um colchão de segurança de 2,5%, parcela que pode ser usada numa situação de crise. Além desses 7,0%, os bancos serão obrigados a formar um segundo colchão (desta vez contracíclico) de 2,5% sobre seus ativos, a ser acumulado em momentos de forte expansão do crédito.
Como de costume, os banqueiros acionaram suas conhecidas máquinas de chorar. Passaram a dizer que essas imposições obrigarão os bancos a trabalhar com muito dinheiro parado e, por isso, o crédito vai ser atingido, com prejuízos para a recuperação da atividade econômica.
No entanto, o acordo dá um prazo enorme, até 2018, para que essas exigências sejam atendidas, seguindo um cronograma bem folgado. A maior parte da chiadeira provém dos altos executivos dos grandes bancos que vão perder um pedaço dos multimilionários bônus de desempenho.
O Brasil vai ter alguma adaptação às novas regras. Mas já vem trabalhando com normas bem mais rígidas do que as vigentes no resto do mundo. A média, incluídos aí os bancos que dispõem de crédito tributário alto, opera com 17% de capital total.
Alguns observadores duvidam que os Estados Unidos acatem os novos padrões. É mais provável que sim. Foram as autoridades americanas as que mais se empenharam no BIS para que o acordo fosse adotado.
Outra decisão ficou para depois. Trata-se de instituir regras suplementares para serem adotadas por bancos considerados sistemicamente importantes (os grandes demais para quebrar).

Luís Roberto Barroso: “Não devemos aceitar esse fato”

Luís Roberto Barroso: “Não devemos aceitar esse fato”
Para o professor de Direito Constitucional, nada justifica descumprir a ordem judicial
Martha Mendonça, com Cristiane Segatto - Época
Professor de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e especialista na área de Saúde Pública, Luís Roberto Barroso diz que o descumprimento de uma decisão judicial não deve ser visto com naturalidade e que a descentralização do SUS não isenta a União de responsabilidade nos casos de tratamentos excepcionais.
ÉPOCA – O que o caso de Fabinho diz sobre a saúde no Brasil?
Luís Roberto Barroso – Em primeiro lugar, ele diz sobre a Justiça. O descumprimento de uma decisão judicial é sempre um fato lamentável em uma democracia e não deve ser aceito com naturalidade. Sobre a saúde, ele diz o que todos sabemos: ainda não há saúde para todos no país, especialmente para os que não podem pagar um plano privado.
ÉPOCA – Que instância, em sua visão, nesse caso específico, teria a responsabilidade pelo fornecimento do equipamento?
Barroso – Segundo a decisão judicial, era o município. A meu ver, há um problema nessas condenações solidárias (conjuntas) da União, do Estado e do município: é que, sendo obrigação dos três, acaba não sendo de ninguém. Era preciso que ficasse claro, desde o primeiro momento, de quem é a responsabilidade. Até porque, admitindo-se a ação contra os três, há uma multiplicação desnecessária de esforços: três defesas, três máquinas que precisam se movimentar. Isso custa dinheiro e tempo.
ÉPOCA – Por causa da descentralização que vem a reboque do SUS, a União fica, de algum modo, isenta de responsabilidade, como alegou?
Barroso – Embora a execução dos serviços de saúde caiba, como regra, aos municípios, a União tem um papel essencial na coordenação e no financiamento desses serviços – especialmente nos tratamentos excepcionais e de alto custo. Nesses casos, acho que, havendo condenação, a principal responsabilidade deve ser da União. É quem tem a chave do cofre.
ÉPOCA – O Brasil acertou em incluir o direito à saúde na Constituição?
Barroso – Sim. Em um país no qual 75% da população não tem plano de saúde, se esta não for uma obrigação constitucional do Estado, deixa de ser atendida uma das necessidades mais básicas do povo. Mas o orçamento é finito e a alocação de recursos envolve escolhas trágicas, inclusive a de quem vai viver e de quem vai morrer.
ÉPOCA – Qual deve ser a abrangência de medicamentos e tratamentos da rede pública?
Barroso – O ideal, naturalmente, seriam o acesso universal (a todos os que precisam) e o atendimento integral (para tudo o que precisam). Infelizmente, não é assim em lugar nenhum do mundo. A sociedade brasileira, associações de hospitais, médicos, enfermeiros deveriam participar, no segundo semestre de cada ano, do processo de escolha de prioridades e de alocação dos recursos disponíveis.
ÉPOCA – Quais são as consequências da judicialização da saúde?
Barroso – A face negativa da judicialização é que ela revela uma patologia: se alguém precisa ir à Justiça para fazer valer seu direito, é sinal de que ele não foi reconhecido espontaneamente. A face positiva é que, em caso de descumprimento do direito, há uma instituição capaz de impô-lo. Mas muitas situações geram controvérsias. Por vezes, tratamentos experimentais, ou no exterior, ou caríssimos, desviam recursos que deveriam acudir outras situações e, talvez, um maior número de pessoas. Nesses casos, não há solução juridicamente fácil nem moralmente barata. A vida é feita de escolhas, e isso vale, também, para as políticas públicas.

Newton Silva, para O Jangadeiro Online


Hengill Mountain, Iceland

Photograph by Snorri Gunnarsson

R$ 520,00 por uma vida - Reportagem de Capa - Denúcia

R$ 520,00 por uma vida
A história absurda do menino de 14 anos que morreu porque as autoridades se recusaram – mesmo com ordem da Justiça – a fornecer um aparelho simples para ajudá-lo a respirar
Martha Mendonça, com Cristiane Segatto - Época
SAUDADE
Maria das Graças e Antônio na sala de casa coma foto de Fabinho. Eles sentem tristeza e revolta com a perda do filho

Eram 16h06 do dia 9 de agosto quando Fábio de Souza do Nascimento morreu de insuficiência respiratória. Ele viveu 14 anos, com os pais e a irmã mais velha, num condomínio popular de Jacarepaguá, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Gostava de pipa e videogame, de desenho animado e futebol. Torcia pelo Flamengo. Adorava churrasco e misto-quente. Sonhava em ser motorista de caminhão.
Um mês depois de sua morte, a pipa rosa que Fabinho gostava de empinar está presa na parede, na entrada da sala do sobrado humilde de seus pais. É o símbolo de uma vida interrompida, de um drama familiar – e também de um crime. Intimadas pela Justiça a fornecer a Fabinho um balão de oxigênio que poderia ter lhe salvado a vida, ao custo de R$ 520 por mês, autoridades dos governos federal, estadual e municipal discutiram, procrastinaram, ignoraram a determinação judicial até que fosse tarde demais.
O caso de Fabinho revela as falhas trágicas do sistema de saúde no Brasil, que pela lei deve garantir tratamento a qualquer cidadão, mas na prática tem de lidar com recursos escassos, que, em muitas ocasiões, levam ao descaso com as ordens judiciais. Submetido a um transplante de medula há quatro anos, ele desenvolveu uma doença pulmonar. Necessitava de um balão de oxigênio em casa. Seus pais conseguiram o equipamento na Justiça. Mas nunca o receberam. A União, o Estado e o município do Rio de Janeiro levaram seis meses empurrando a responsabilidade um para o outro. Aí ficou tarde demais.
Fabinho não teve uma vida fácil. A mãe – Maria das Graças Ferreira de Souza, mineira de Ponte Nova, uma dona de casa de 57 anos – e o pai – Antônio Serafim Nascimento, de 56, paraibano que faz bicos como pedreiro – se alternam ao contar sua história. De vez em quando param de falar para chorar. Outras vezes sorriem juntos com alguma lembrança. Com apenas 1 ano e 7 meses, o filho foi diagnosticado com câncer. Tinha linfomas pelo corpo e teve de passar por vários tratamentos. Até que aos 10 anos passou por um transplante de medula, no Instituto Nacional de Câncer (Inca). A irmã, Fiama, três anos mais velha, foi a doadora. A cirurgia, bem-sucedida, parecia ser o início de uma nova vida para ele.
Não foi.
Perto do Natal de 2006, quando Fabinho parecia ter pela primeira vez uma rotina normal de criança, começou a ter tosse constante e dificuldade de respiração. O diagnóstico: doença do enxerto contra-hospedeiro, uma reação do organismo às células recebidas no transplante. Ela pode atingir vários órgãos. No caso de Fabinho, foi o pulmão. Após alguns períodos de tratamento no Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, da UFRJ, os médicos recomendaram que ele tivesse em casa um aparelho concentrador de oxigênio. “Era uma forma de dar dignidade a sua vida e protegê-lo de crises respiratórias mais graves e fatais”, diz a pneumologista Marina Andrade Lima, que o atendeu nos últimos meses de vida e fez o laudo médico para a Justiça. Com o aparelho, as crises de Fabinho poderiam ser controladas, e, na avaliação dos médicos, ele tinha grandes chances de viver muitos anos.
Maria das Graças e Antônio procuraram a Defensoria Pública da União no Rio de Janeiro para entrar com uma ação. A Justiça lhes deu ganho de causa em dois dias: a União, o Estado ou o município do Rio deveriam fornecer o equipamento – imediatamente. Dois meses depois, em abril, a Defensoria telefonou para os pais de Fabinho. O aparelho não chegara. A União se defendia na Justiça dizendo que o Sistema Único de Saúde (SUS) descentraliza esse tipo de demanda, e quem devia pagar o aparelho era o Estado ou o município. O Estado apresentara decisões judiciais anteriores que dirigem ao município a atribuição. O município alegava que, por se tratar de um fornecimento de “alto custo” e “média complexidade”, era de responsabilidade estadual (leia o quadro abaixo) . Um aparelho desse tipo custa R$ 3.800. Ele requer um cilindro de alumínio, que custa R$ 50. É no cilindro que fica a carga de oxigênio, que deve ser renovada todo mês, a um custo de R$ 40. O Poder Público em geral não compra aparelhos, aluga-os. O preço, nesse caso, seria de R$ 520 por mês.
A Defensoria recorreu, pedindo o sequestro da verba necessária ao aluguel do equipamento e a prisão dos secretários que não cumpriram a ordem da Justiça. Dado o jogo de empurra entre as autoridades, o juiz da 10ª Vara da Justiça Federal, Fábio Tenenblat, decidiu que o município deveria dar o aparelho a Fabinho em 48 horas. Três meses depois, em agosto, Fabinho ainda não tinha o equipamento. E estava mais debilitado. Tinha falta de ar e cansaço. O nebulizador ficava ligado quase ininterruptamente, mas já não funcionava como paliativo. Antônio levou o filho ao Inca para receber oxigênio. Precisou carregá-lo nas costas, da Central do Brasil, onde o ônibus vindo de Jacarepaguá os deixou, até a Praça da Cruz Vermelha, onde fica o hospital – a 1 quilômetro e meio de distância.
No dia seguinte, a crise voltou, e Antônio foi de novo à Defensoria, revoltado. A advogada Maria Cecília Lessa da Rocha fez nova comunicação à Justiça no dia 5 de agosto, uma quinta-feira. No fim de semana seguinte, a família de Fabinho teve um Dia dos Pais ruim. Ele mal andava e estava sem fome. Algo raro, segundo a mãe. Mesmo nas crises, Fabinho sempre fora boa boca. A madrugada foi de terror, diz Maria das Graças. Às 4 horas, Fabinho tentou levantar-se e desmaiou. A mãe chamou uma ambulância, que chegou em meia hora. Ainda na porta de casa, o menino teve uma parada cardíaca. Foi reanimado, mas sua resistência havia caído muito. Morreu no meio da tarde, no Inca, de insuficiência respiratória.
APOIO
A defensora pública Maria Cecília
(à esq.), que pediu a prisão dos secretários de Saúde, e a pneumologista da UFRJ, Marina, que cuidou de Fabinho em seus últimos meses de vida. “Ele merecia uma vida mais digna”, diz a médica

De acordo com o artigo 330 do Código Penal, a desobediência de ordem judicial é crime, com previsão de detenção de 15 dias a seis meses e multas. “O juiz determinou a tutela antecipada. O aparelho deveria ter sido fornecido imediatamente e o mérito julgado depois. Primeiro se atende, depois se discute”, diz o advogado sanitarista Tiago Farina. Também especializada em Direito Sanitário, a professora da Unicamp Lenir Santos afirma que o caso é de crime por omissão. “Se os médicos indicaram e a Justiça mandou, é uma obrigação dos entes públicos cumprir o que foi determinado.” O presidente do Sindicato dos Médicos do Rio de Janeiro, Jorge Darze, diz que, além de crime, houve uma clara violação do Estatuto da Criança e do Adolescente. “Os menores têm prioridade absoluta neste país, segundo o artigo 227 da Constituição. O que aconteceu foi uma demonstração de que o Poder Público se considera acima da lei e do direito”, afirma.
Em parte, essa situação decorre da falta de clareza sobre a responsabilidade da União, do Estado ou do município na saúde. O SUS descentralizou o atendimento, mas deixou muitas lacunas para casos como o de Fabinho. Só na Defensoria Pública do Rio de Janeiro há cerca de mil processos aguardando decisão sobre quem deve arcar com a demanda de saúde. Em quase todos os pedidos, as contestações têm texto praticamente idêntico, um forte indício de que “o simples descumprimento da ordem judicial está se tornando uma regra”, como diz o chefe da Defensoria, Ariosvaldo Costa Homem.
Procurados por ÉPOCA, o Ministério da Saúde e as secretarias estadual e municipal do Rio enviaram notas de esclarecimento. A Secretaria de Estado do Rio diz que a responsabilidade é do município, mas que, ainda assim, estavam abrindo licitação para a compra do aparelho – “porém, antes de sua conclusão, o paciente foi a óbito”. A Secretaria Municipal disse também ter aberto processo para a aquisição do equipamento e que uma empresa chegou a ser contratada – “no entanto, ao contatar a família, o paciente havia falecido”. Maria das Graças e Antônio dizem que jamais receberam telefonema de nenhuma das secretarias. Por causa desse caso, o juiz Tenenblat mudou os procedimentos na 10ª Vara Federal. Instaurou um esquema de monitoramento das ordens judiciais.
Professora de Direito Administrativo, a procuradora Raquel Carvalho avalia que o primeiro erro do caso de Fabinho foi o equipamento de que ele precisava não estar disponível no SUS – o que desafogaria a Justiça. Ela afirma que é preciso repensar a política pública de saúde. “Quem fica de fora recorre ao Judiciário, e isso desestrutura a política de saúde. A judicialização da saúde, cada vez maior, acaba impedindo essa abrangência.”
A maioria dos que recorrem à Justiça pede remédios modernos que não fazem parte das listas do SUS ou só estão disponíveis no exterior. Entre 2003 e 2009, o país teve cerca de 50 mil ações desse tipo, segundo o Ministério da Saúde. E elas estão ficando mais caras. Em 2008, o governo federal gastou R$ 47 milhões para cumprir 2.273 decisões judiciais. Em 2009, com menos casos (1.780), gastou quase o dobro: R$ 83 milhões. É um valor ainda pequeno em relação ao gasto total com a compra de medicamentos (em 2009, o Ministério da Saúde empregou R$ 6,4 bilhões, cerca de 12,5% do orçamento geral da pasta). Mas a tendência preocupa, porque entrega aos juízes decisões que deveriam estar na esfera dos médicos.
O cerne da questão é que a judicialização da saúde cria distorções. O tratamento de um único paciente pode custar milhares de reais por mês. O orçamento da Secretaria de Saúde é finito. Se o juiz obriga o secretário de Saúde a gastar muito dinheiro com um único paciente, o gestor deixa de cumprir outros programas para atender à ordem da Justiça. A tentativa de prolongar a vida de um paciente de câncer terminal pode comprometer a distribuição de remédios contra a hipertensão, que poderiam salvar centenas de pessoas. Em pequenos municípios do Nordeste, uma ordem judicial para a compra de um remédio importado contra o câncer costuma consumir o orçamento total destinado à saúde na cidade. Qual interesse deve ser respeitado: o da coletividade ou o do indivíduo?
Não há resposta fácil. No ano passado, o Supremo Tribunal Federal organizou três dias de audiências públicas e ouviu representantes do Ministério da Saúde, das secretarias estaduais, médicos e associações de pacientes para coletar informações que podem guiar os juízes em processos que cheguem à Suprema Corte.
Segundo o Ministério da Saúde, o Brasil vive uma “epidemia” de ações judiciais. Ela é sintoma de dois problemas. O primeiro: como a Constituição diz que saúde é dever do Estado, abre caminho para qualquer pedido: drogas caríssimas, experimentais, que só existem no exterior (e de eficácia duvidosa), fraldas (quando um dos sintomas da doença é diarreia), iogurtes (quando a dieta é recomendada pelo médico)... O segundo problema: a lista de medicamentos oferecidos no SUS não é atualizada há quase uma década. Nesse período, foram lançados muitos remédios de eficácia comprovada, úteis no tratamento do câncer e de outras doenças graves, mas eles não estão disponíveis no SUS. O Senado aprovou um projeto de lei que obriga o Ministério da Saúde a atualizar as tabelas de remédios e procedimentos do SUS pelo menos uma vez por ano. O projeto, apoiado pelo próprio ministério, está em tramitação na Câmara dos Deputados.
Fabinho, no entanto, não era um desses casos de dilema da Saúde. Seu tratamento era relativamente barato; ele era uma criança, que deve ter preferência na alocação de recursos. O descaso no cumprimento da ordem judicial, aí, é sintoma de um problema grave: a falta de clareza na política de saúde está levando a um comportamento cínico, desleixado, que custa vidas. “O que aconteceu com Fabinho dá desânimo a quem cuidou dele”, diz a pneumologista Marina Andrade Lessa. “Nosso trabalho é refém do poder público.”
É um desvio do sistema que as decisões vitais para pacientes como Fabinho dependam de ações, recursos e burocracia. Elas devem ser tomadas por quem tem contato com as pessoas. “Fabinho tinha os olhos mais lindos do mundo”, diz Marina. A assistente social do Inca, Claudia Leivos, lembra-se dos últimos meses em que conviveu com Fabinho. “Ele estava orgulhoso porque foi escolhido como capa de uma cartilha nossa.” O desenho de Fabinho estampa a cartilha dos direitos dos pacientes de câncer do Inca – uma escolha que hoje soa irônica. “Ele dizia que agora era artista e que distribuiria autógrafos pelo hospital. Mas a última vez que o vi parecia muito cansado”, afirma Claudia.
“Fabinho era feliz”, diz a mãe, apesar da rotina de hospitais e remédios. Quando estava em casa, brincava com os vizinhos, andava de bicicleta, chegou a jogar bola com o cateter no peito. Apegava-se a todo mundo. No sobrado de Jacarepaguá, Maria das Graças procura o que fazer. “Eu vivi em torno dele. Agora ando pela casa sem função. Ele era minha vida.” O pai chora, conta algumas travessuras e repete sempre, com seu sotaque nordestino: “Ele era demais”.
Os problemas de saúde não deixaram Fabinho estudar direito. Aprendeu mais em casa, e com professoras que iam aos hospitais. Tinha uma curiosidade espontânea. Gostava de consertar eletrodomésticos, e às vezes conseguia, segundo o pai. Também colecionava fotografias e informações sobre ônibus e caminhões. No computador da irmã, fez um arquivo sobre como dirigi-los.
No último aniversário, entre o Natal e o Ano-Novo passados, os pais lhe fizeram uma festa surpresa. “A gente se virava para dar uma festinha, os vizinhos ajudavam, porque ele merecia, por passar por tanta coisa”, diz Maria das Graças. Seus 14 anos foram cercados dos amigos e parentes mais próximos e amigos da vizinhança. Depois do bolo e das fotografias em que sempre saía fazendo caretas, jogou videogame com os meninos da rua.
No condomínio Cesar Maia, com suas quadras numeradas e ruas batizadas com letras, o menino da casa 37 da Rua F suscitava um misto de pena e admiração. Sua luta pela vida fazia dele uma espécie de herói e símbolo de superação. Cada vez que ele sumia, para tratamentos, surgia uma incerteza sobre sua volta. “Era uma felicidade vê-lo de novo brincando na rua depois de um sumiço. Ele dava esperança para a vida da gente”, diz a vizinha da casa 69, a dona de casa Rosemary Gonçalo da Silva. No mês passado, Fabinho deixou a todos preocupados quando desapareceu numa ambulância de manhãzinha. E, desta vez, não voltou.
Fabinho era um adolescente típico de muitas maneiras – a paixão por música e jogos eletrônicos. A irmã, Fiama, diz que fica com saudades do irmão quando vê novelas. “Ele adorava e sabia todas as músicas. Tinha uma memória incrível.” Também sonhava em ter um quarto só para ele, já que, desde pequeno, dormia com os pais. Mas Fabinho era bem diferente em outros aspectos. Tantos tratamentos e remédios frearam seu desenvolvimento. Tinha 14 anos, mas corpo de 10. Na vizinhança, muitos garotos que eram seus amigos quando mais novos passaram a rejeitá-lo. Nos últimos anos, ia menos à rua. “Ele me contou que alguns estavam chamando ele de esquisito”, diz a mãe. Dos que continuaram fiéis, se destaca Iúri da Silva, de 12 anos. Os dois viviam um na casa do outro. Com a piora na saúde de Fabinho, Iúri passava horas na casa 37, para longas maratonas de videogame e brincadeiras com carrinhos de ferro.
Já no fim, as alegrias de Fabinho foram escasseando. Andava poucos metros e já ficava cansado ou começava a tossir. Passou a ir à pracinha apenas para ficar sentado nos bancos vendo as outras crianças brincar. Depois, nem isso. Tinha de recorrer à nebulização e muitos copos d’água para conter a tosse. Adeus bicicleta, futebol e pique na rua. “Ele passou por quase tudo sem reclamar. Mas na semana que morreu me disse que estava cansado demais. Ele tinha crises de tosse tão fortes que ficava com a boca e as unhas roxas”, diz a mãe. De tudo, Maria das Graças tem apenas um arrependimento: não ter deixado Fabinho tomar banho de chuva. Ele sempre quis, mas ela, preocupada com sua saúde, proibia. “Agora fico imaginando meu filho correndo na chuva, molhado e feliz.”

Alecrim


A Noite na Ilha

A Noite na Ilha
Dormi contigo a noite inteira junto do mar, na ilha.
Selvagem e doce eras entre o prazer e o sono,
entre o fogo e a água.
Talvez bem tarde nossos
sonos se uniram na altura e no fundo,
em cima como ramos que um mesmo vento move,
embaixo como raízes vermelhas que se tocam.
Talvez teu sono se separou do meu e pelo mar escuro
me procurava como antes, quando nem existias,
quando sem te enxergar naveguei a teu lado
e teus olhos buscavam o que agora - pão,
vinho, amor e cólera - te dou, cheias as mãos,
porque tu és a taça que só esperava
os dons da minha vida.
Dormi junto contigo a noite inteira,
enquanto a escura terra gira com vivos e com mortos,
de repente desperto e no meio da sombra meu braço
rodeava tua cintura.
Nem a noite nem o sonho puderam separar-nos.
Dormi contigo, amor, despertei, e tua boca
saída de teu sono me deu o sabor da terra,
de água-marinha, de algas, de tua íntima vida,
e recebi teu beijo molhado pela aurora
como se me chegasse do mar que nos rodeia.
(Pablo Neruda)

Bessinha


Eduardo Marques: "O estudo ajuda, mas não basta para sair da pobreza"

Eduardo Marques: "O estudo ajuda, mas não basta para sair da pobreza"
O cientista político diz que as relações sociais dos pobres são fundamentais para produzir novas políticas sociais
Mariana Sanches - Época
A teoria que relaciona poucos anos de estudo à baixa renda tornou-se lugar-comum na literatura mundial sobre pobreza. Para o cientista político Eduardo Marques, da Universidade de São Paulo, a relação entre escola e pobreza não é errada. Apenas não explica tudo. “Encontrei pessoas com os mesmos anos de estudo, moradoras de um mesmo bairro e com histórias de vida parecidas em que uma delas tinha condição de vida melhor que a outra”, diz Marques. Depois de quatro anos de pesquisa em sete áreas pobres de São Paulo, replicadas agora em Salvador, ele concluiu que o conjunto de relações sociais dos indivíduos – a que chama de redes – pode ser mais importante do que os anos de escola na hora de determinar se alguém terá emprego ou não. Enquanto um ano a mais na sala de aula aumenta em R$ 7 a renda mensal, um padrão de redes específico traz a ele R$ 59 a mais. Os resultados obtidos por Marques, inéditos no Brasil e a ser publicados no fim de setembro, apontam para uma nova geração de políticas sociais. O combate à pobreza pode estar menos ligado a dar dinheiro aos pobres do que a criar oportunidades de novas relações para eles. Marques, no entanto, admite que nenhum governo no mundo sabe ainda como influenciar as redes sociais.
ENTREVISTA - EDUARDO MARQUES
QUEM É èLivre-docente em ciência política da Universidade de São Paulo e pesquisador do Centro de Estudos da Metrópole (CEM)
O QUE FAZ èCoordena a área temática de políticas públicas da Associação Brasileira de Ciência Política
O QUE PUBLICOU èLança neste mês o livro Redes sociais, segregação e pobreza, em parceria do CEM com a editora Unesp
ÉPOCA – Por que o senhor acha que as redes sociais explicam a pobreza? Eduardo MarquesMeu principal adversário em termos de argumento é a literatura que diz que a pobreza está associada a certos atributos, o principal deles é a escolaridade. Então indivíduos de menor escolaridade são mais pobres, e ponto. Encontrei algo no meio que faz com que indivíduos que tenham iguais atributos, mas relações sociais diferentes, tenham situações sociais distintas.
ÉPOCA – Mas a escola é importante? Marques – Certamente influencia a condição de vida, assim como outras coisas influenciam também. Meu argumento é que relações sociais cotidianas contribuem para a pobreza e a reprodução da pobreza. E isso está ausente do debate brasileiro.
ÉPOCA – As relações sociais de um indivíduo são determinantes para que ele seja pobre? Marques – Não são determinantes. Mas a variável que mais explica a chance de alguém ter emprego – num modelo que leve em conta atributos pessoais e a rede de relações – é justamente a rede. Mais que a escolaridade. Há quatro tipos de redes que explicam 93% dos casos das relações dos pobres. Há aqueles que têm redes pequenas, compostas de pessoas territorialmente próximas, em geral família, vizinhos ou amigos. O exemplo clássico são os idosos. Há aqueles com redes grandes, mas também com relações locais. Tipicamente, essa é a situação do soltador de pipa, que passa o dia todo na laje e cumprimenta todo mundo que passa. Há gente com redes médias com as mesmas características das anteriores. E, por fim, há as redes médias pouco locais e menos baseadas em família e vizinhos. Esse tipo de rede, que chamo de rede de “vencedor”, tem grande impacto na renda do indivíduo.
ÉPOCA – É possível medir isso? Marques – Constatei que, a cada ano a mais na escola, os pobres ganham, em média, R$ 7 a mais na renda per capita. Se alguém tem essa rede de “vencedor”, acrescenta R$ 59 à renda. É o correspondente a oito anos de estudos. É preciso fazer a ressalva de que os anos de estudos variam pouco entre os pobres, porque eles têm baixa escolaridade. Se levássemos a classe média em conta, a variável de anos de estudos talvez ganhasse efeito maior, porque variaria de 0 a 18 anos, enquanto entre os pobres vai até a 4ª ou 5ª série. As redes ainda trazem outros ganhos. Para quem tem emprego fixo ou aposentadoria, ter relações com quem também tenha rendimento estável aumenta a renda. Para os isolados territorialmente, quanto maior a quantidade de ambientes em que circulam (família, vizinhança, igreja, trabalho), maior a renda.
ÉPOCA – Por que isso acontece? Marques – Quanto mais ambientes diferentes alguém pode acessar, mais informação diferente pode receber. Essa é uma diferença fundamental entre as redes de classe média e as de pobre. As redes de classe média têm mais esferas de relações, grande predominância do trabalho e de contatos que vieram da vida escolar. Para os pobres, isso é menor.
ÉPOCA – Mas o que as redes fazem? Marques – As redes influenciam o acesso a bens e serviços. E também a apoios sociais que não são mediados por dinheiro. Há mecanismos que explicam por que as redes são como são e como os indivíduos as mobilizam. Cheguei à conclusão de que as redes de pobres não só são menores que as de classe média, como as relações dos pobres eram mais recentes. E isso porque há algo que chamo de economia dos vínculos. Criar vínculo e, especialmente, manter vínculo é custoso financeiramente, psicologicamente e em termos de tempo. Você tem de ligar, dar presente no aniversário, visitar, conversar. Os pobres jogam fora regularmente uma parcela grande de suas redes, diferentemente da classe média, pois não têm como fazer frente a esses custos. Há um segundo mecanismo interessante: a escolaridade. Quando olhávamos adolescentes de 16 anos pobres e de classe média, suas redes eram muito parecidas. Eram grandes, locais e de relações com pessoas muito parecidas com eles, família e amigos. Com 23, 24, 25 anos, as redes são completamente diferentes. O que acontece que as diferencia tão fortemente? Uma parcela grande da rede do adulto de classe média foi construída ao longo da trajetória profissional, que começou na faculdade. O curso superior faz com que ele construa uma transição suave para uma rede da idade adulta em que a profissão é forte. No caso dos pobres, não há transição. Isso porque o sujeito pode até chegar ao ensino médio, mas, quando acaba o estudo, sua rede é composta de família, vizinhos, amigos do bairro e da escola. Um vai ser pedreiro, o outro atendente da padaria, não tem especialização. A ausência da universidade na trajetória escolar dos pobres faz com que eles enfrentem um abismo nas relações e não consigam ter uma transição para uma rede adulta em que a profissão seja importante.
ÉPOCA – Como é possível implementar políticas públicas a partir das redes? Marques – Ninguém sabe. O gabinete do primeiro-ministro britânico tem uma unidade estratégica, a Social Exclusion Task Force (algo como Força-Tarefa contra Exclusão Social), que tenta basear suas políticas em redes. Há também tentativas da Policy Research Initiative (Iniciativa de Pesquisas em Políticas Públicas), do governo canadense. Um exemplo bem-sucedido é o baile da terceira idade. Ele é eficaz porque a questão do idoso é o isolamento. Para resolver o problema da pobreza, porém, não adianta criar baile da juventude carente. É preciso produzir relações de um novo tipo. Talvez cheguemos a uma política pública capaz de influenciar redes, mas estamos longe. Não é uma questão de dar dinheiro, mas de criar oportunidades de relações para os pobres.
ÉPOCA – Faria sentido sofisticar as contrapartidas do Bolsa Família? Marques – A existência de contrapartidas associadas à expansão dos serviços, como o aumento da quantidade de vagas em escolas, é uma boa estratégia para fazer as pessoas entrar nos serviços. Mas não acho que as condicionalidades devem ser expandidas porque elas podem ter o efeito perverso de isolar aquele menino que tira nota baixa, que falta mais na escola mesmo ameaçado de perder o benefício, porque tem de cuidar do irmão mais novo. Quem vai ficar de fora do programa é justamente quem mais precisa dele.

Skoob

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