quinta-feira, março 24, 2011

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O prazer e a culpa


O prazer e a culpa
CONTARDO CALLIGARIS - FOLHA DE SÃO PAULO - 24/03/11
Os jovens são levados a pensar que é só frustrando seus próprios desejos que ganham o amor dos adultos
ADMIREI A reação dos japoneses diante do desastre -terremoto, tsunami, contaminação nuclear. Nas declarações oficiais e nas palavras das vítimas, a catástrofe é apenas um acidente: pode haver responsáveis por falhas na prevenção, na segurança ou nos socorros, mas a catástrofe em si não tem sentido algum. Será que nós, ocidentais, seríamos capazes da mesma atitude? Não sei.
A peste assolou repetidamente a Europa do século 14 ao 18. A primeira grande epidemia, de 1347 a 1352, matou um quarto da população europeia. Para que o horror não induzisse ninguém a pensar que o universo era sem sentido, duas reações populares: 1) perseguir judeus e bruxas, supostamente responsáveis pelo contágio, 2) juntar-se aos flagelantes, penitentes que erravam pelo continente se fustigando até o sangue.
Para o flagelante, a peste era um castigo pelos pecados do mundo; portanto, punir-se por eles talvez fosse o jeito de tornar a peste desnecessária.
Naqueles quatro séculos, a Europa se cobriu de igrejas que eram construídas como oferendas para que a epidemia se acalmasse; nelas, homens e mulheres faziam promessas, pedindo para serem poupados.
Ainda hoje, na calamidade e no medo, a promessa que acompanha o pedido feito a Deus ou aos santos sempre propõe uma renúncia: o pedinte se engaja a se privar de algo, do sexo ao chocolate. Funciona assim: 1) meu prazer e meu gozo são sempre culpados, 2) portanto, qualquer mal que me assole se explica como punição de minhas culpas, 3) a renúncia aos meus prazeres pode me redimir e estancar a punição.
Como chegamos a fazer esse estranho uso dos prazeres, ou melhor, da renúncia aos nossos prazeres? Três respostas, não excludentes (e insuficientes).
1) Bem ou mal, educar implica conter, impor frustrações e renúncias. Com isso, a aprovação dos educadores sempre parece proporcional à aceitação das renúncias pelos educandos. Ou seja, os jovens podem ser levados a pensar que é só frustrando seus próprios desejos que eles ganham o amor dos adultos.
2) No fim do primeiro milênio, cada vila europeia vivia no medo de bandos errantes. Quando eles se aproximavam, o povo se reunia na igrejinha e rezava. Isso não impedia nem saques nem estupros. O que pensar quando os bandidos iam embora? Deus não nos protege porque não existe? Deus existe, mas não dá a menor para a gente? Devia triunfar a versão que conciliava o desastre com a existência de Deus: o próprio Deus mandou os bandidos para nos punir de nossos pecados.
3) Talvez seja menos angustiante viver num mundo que faz sentido do que num mundo que não teria sentido algum. Por exemplo, como é que você aguentaria o pensamento da morte futura sem o conforto da ideia de que ela está incluída numa ordem cósmica ou num plano divino?
Infelizmente, esse conforto tem um custo alto, pois o jeito mais fácil de garantir a existência de um sentido do mundo consiste em me atribuir a culpa por todos os males. Ou seja, minha culpa e meu esforço para me redimir "provam" que existe uma ordem (justamente, a que eu ofendia quando me entregava a meus prazeres).
Corolário: se meus prazeres culpados são a causa dos males, não preciso responder "adequadamente" às calamidades, bastará modificar minha conduta de modo que minhas ofensas sejam perdoadas.
Além de dar sentido ao meu mundo, a culpa me oferece a ilusão de agir de maneira eficaz: como o flagelante, posso esperar que minha renúncia ao prazer suspenda a punição. De repente, doenças e catástrofes talvez parem diante de minha conduta meritória. Em vez (ou além) de procurar as condições de prevenir um terremoto ou de debelar um câncer resistente, rezarei noite e dia e me fustigarei em penitência. Se, de qualquer forma, o terremoto vier ou o câncer triunfar, será porque não me açoitei o suficiente.
Pois bem, não acredito que, em nossa cultura, esse bizarro uso dos prazeres e da culpa tenha mudado substancialmente nos últimos sete séculos. Continuamos fundamentalmente inimigos do nosso prazer.
Prova disso: há, hoje como no século 14, bandos errantes que denunciam nossos tempos "hedonistas" e nossa voracidade por prazeres e gozos. São os flagelantes verbais: criticam o prazer para fomentar a culpa. É o jeito (custoso) que eles acharam para dar sentido ao mundo.

O porrete

O porrete
LUÍS FERNANDO VERISSIMO
“Fale suavemente mas carregue um porrete” era a receita do presidente (1901 a 1909) americano Theodore Roosevelt para o sucesso na política externa. Barack Obama fala suavemente, como se viu na sua visita recente ao Brasil, mas não descartou o porrete como arma política que herdou dos seus antecessores, apesar de tê-lo criticado para se eleger. Tudo se repete na Líbia, a começar pela hipocrisia da indignação seletiva: alguns tiranos antes tolerados, quando não abertamente apoiados como o Saddam, passam a ser inaceitáveis e atacáveis enquanto o porrete poupa outros, que ainda servem. Depois virão as baixas civis denunciadas por um lado e negadas pelo outro, as fotos de crianças mutiladas, as discussões sobre a eficiência ou não dos ataques aéreos “cirúrgicos”, etc. E teremos mais um exemplo dessa contribuição moderna às táticas de guerra, a estranha doutrina do bombardeio humanitário.
TESES CHOCANTES
Cristopher Hitchens e Alexander Cockburn se alternavam numa página da revista americana The Nation, uma semana um, uma semana outro. Até que Hitchens surpreendeu leitores e editores da Nation com sua posição a favor da intervenção americana no Iraque, uma posição que até hoje ele é obrigado a defender da perplexidade geral quando se apresenta em público. A revista não o demitiu mas Hitchens acabou pedindo para sair. Ficou Cockburn, que continua, apesar de também destoar da linha da revista, no seu caso sendo às vezes até mais radicalmente esquerdista do que ela. Mas Cockburn também teve seu momento Hitchens, expondo uma opinião inesperada que chocou todo o mundo. Sua tese é que toda a questão ambiental, do aquecimento global e dos males do combustível fóssil é na verdade uma campanha da indústria nuclear, que quer nos assustar para monopolizar o fornecimento de energia no planeta. Segundo Cockburn o mundo não está esquentando, os polos não estão derretendo, os rios não estão morrendo, há petróleo de sobra para mais alguns milhares de anos e quando o petróleo acabar teremos o etanol e outras fontes naturais renováveis. E o vento. E a energia solar.
 Cockburn é um jornalista respeitado. Suas posições progressistas o credenciam para os leitores da Nation que, no entanto, na sua provável totalidade, não tem dúvida sobre os estragos da poluição ambiental negados por Cockburn. É previsível que as cartas de leitores incrédulos atacando Cockburn diminuam depois das notícias do desastre ecológico na usina nuclear de Fukushima, mas ele não vai conseguir convencer muita gente. E será interessante ver o que Cockburn escreverá sobre Ann Coultern, a boneca loira do reacionarismo americano, que há dias propôs na TV outra tese chocante, a de que a radioatividade faz bem às pessoas.

A limitada resposta humana


A limitada resposta humana
Flávia Piovesan – O Globo
A natureza desabafa dando máximo sinal de alerta no início de 2011. À tragédia do Japão somam-se dezenas de outras, em geografias diversas, a compor um mosaico de dramas socioambientais, incluindo no Brasil as centenas de mortes na Região Serrana do Rio, as fortes inundações no Sul e as vorazes tempestades em São Paulo.
A Cruz Vermelha estima que há no mundo hoje mais pessoas deslocadas por desastres ambientais do que por guerras. Até 2010, a ONU contabilizava 50 milhões de refugiados ambientais. Qualquer situação de refúgio é por si só reflexo de um grave padrão de violação a direitos humanos. Os danos ambientais têm gerado um crescente fluxo migratório, com o deslocamento forçado de pessoas compelidas a lutar por novas condições de vida em outras regiões e países.
A comunidade científica converge em concluir que as mudanças climáticas estão a ocorrer e resultam, sobretudo, da ação humana. O Conselho de Direitos Humanos da ONU reconhece que as transformações ambientais impactam a realização dos direitos humanos direta e indiretamente, sendo os grupos mais vulneráveis seu alvo preferencial.
Nos países em desenvolvimento a maioria dos problemas ambientais está relacionada à pobreza e à exclusão social (à falta de acesso à moradia, à saúde, à educação e à higiene adequadas). No caso brasileiro, constata-se que 70% das internações junto ao SUS resultam de problemas decorrentes de falta de acesso à água potável, negligenciado a 42% dos brasileiros. Já nos países desenvolvidos, os problemas ambientais são consequência fundamentalmente da industrialização e do desenvolvimento tecnológico.
Os danos ambientais transcendem os limites de espaço e tempo. Uma poluição marítima causada por derramamento de óleo poderá disseminar-se por águas territoriais de diferentes países, afetando várias comunidades, em virtude de seu alcance internacional. Os danos ambientais podem ainda produzir efeitos no presente e no futuro, por vezes, não havendo como prever o impacto temporal. Por isso, o direito ao meio ambiente demanda um pacto entre as presentes e futuras gerações, o que fomenta a noção de desenvolvimento sustentável, como o "desenvolvimento que atende às necessidades do presente, sem comprometer a capacidade de as futuras gerações atenderem às suas próprias necessidades", na definição da Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Daí o desafio de uma nova ética sustentável, que vise a compatibilizar o desenvolvimento econômico, o desenvolvimento social e a preservação ambiental.
É neste contexto que se insere o polêmico caso Belo Monte, envolvendo a construção de usina hidrelétrica no Pará, por seus graves riscos e impactos socioambientais, especialmente em relação às comunidades tradicionais da bacia do Xingu, que pode vir a ficar praticamente sem água com o desvio do rio. No local há 30 terras indígenas com 24 povos e línguas diferentes. O Movimento Xingu Vivo para Sempre, aliado a 40 entidades, submeteu o caso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a fim de que seja suspenso o processo de licenciamento ambiental relativo a Belo Monte, evitando a grave violação a direitos de comunidades afetadas. Ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal do Pará também questiona na Justiça as irregularidades da concessão da inusitada licença de instalação "parcial" da usina, sem que condições prévias fossem atendidas - isto porque o licenciamento ambiental no Brasil dá-se mediante a concessão de três tipos de licença: licença prévia; licença de instalação; e licença de operação. Alega-se, ainda, a violação ao princípio da necessária participação das comunidades atingidas. Por determinação da OEA, em 11 de março último, caberá ao Estado Brasileiro prestar informações sobre a outorga da licença e os procedimentos de consulta prévia e participação das populações afetadas.
O legado socioambiental de 2011 em suas dramáticas lições requer do Estado brasileiro o compromisso ético-jurídico de honrar a legislação nacional e internacional em matéria ambiental, respeitando plenamente seus princípios e comandos, de forma a preservar direitos fundamentais de populações vulneráveis. Afinal, a comunidade científica já atestou que os devastadores fenômenos "naturais" têm como causa maior a intervenção humana, sendo urgente "desnaturalizar" as graves tragédias ambientais contemporâneas, cujos ilimitados efeitos ultrapassam em muito a limitada resposta humana.
A autora é advogada, professora universitária.

Skoob

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