sábado, maio 01, 2010

Que a decisão do STF não seja pretexto para reescrever o passado, igualando vítimas e algozes. Que tenha sido tomada em nome do futuro.

Em nome do futuro
Míriam Leitão
O GLOBO - Sábado, Maio 01, 2010
Torturadores do Brasil, descansem em paz. Essa foi a decisão da Justiça suprema. Os que mataram, torturaram, estupraram estão perdoados. Poderão envelhecer tranquilos, sem sobressaltos, ao lado dos netos. Decisão da Justiça é para ser cumprida. Seria bom, ao menos, que não houvesse o falso argumento de que a lei foi aceita por todos os lados. Era o ano de 1979. O último general estava chegando ao governo. Ainda ocorreria o Riocentro; os torturadores eram tão poderosos que tentariam explodir estudantes que estavam ouvindo música naquele centro de convenções. Cinco anos depois, o poder militar estaria ainda forte o suficiente para mobilizar seus áulicos e impedir a aprovação das eleições diretas. Não havia ambiente para mais nada a não ser aquela lei. Ela traria de volta todos os que tinham ido embora. Era deixá-los lá ou aceitar aquelas condições. Por isso, a mesma OAB que, um dia, negociou a lei da Anistia, agora propôs que ela seja revista. Não há contradição. Trinta e um anos depois, os advogados sugeriram uma revisão. É normal que tivessem dúvidas sobre a validade de uma lei que foi negociada sob um regime de exceção. A Justiça entendeu que a lei vale. Cumpra-se. Não seria bom, no entanto, que se subvertesse o sentido do slogan "Anistia ampla, geral e irrestrita" Ele nunca significou, no coração de quem o empunhou, o perdão aos torturadores. Que os historiadores não se confundam com o lema. O regime queria anistiar só alguns dos opositores. Os opositores queriam que a lei valesse para todos os perseguidos pelo regime. Por isso, se pedia que a anistia fosse "ampla, geral e irrestrita". As três palavras, meio redundantes, eram usadas para enfatizar o sonho de que ninguém fosse deixado para trás. Aquela foi alei possível, o passo possível, a negociação possível. Um dos lados ainda tinha armas empunhadas. Não foi uma negociação de iguais. Também não há comparação possível entre crimes dos dois lados. Em um dos lados estava o Estado — sustentado pelos impostos dos brasileiros, constituído pela Nação brasileira — usando o seu peso e poder de forma espúria. Do outro, pessoas que, se erraram, foram punidas dolorosamente: presas, torturadas, exiladas e condenadas por cortes marciais. Não foram alcançadas pelo devido processo legal. Não havia ordem constitucional. Foram, quando muito, defendidos nos retalhos do Direito, nos quais se agarravam os advogados dedicados à causa. O ideal seria que a decisão do STF não consagrasse a ideia injusta de que houve um embate em condições de igualdade e que nenhum dos lados foi punido. Foi uma guerra suja, desproporcional, desequilibrada. Só um lado pagou o preço do confronto: o mais fraco. Que a palavra final da Justiça repouse sobre o argumento mais robusto de que é preciso fazer a conciliação nacional. O Brasil tem uma agenda cheia pela frente. Precisa correr atrás dos seus sonhos de país mais justo, mais forte, com crescimento sustentado. O Brasil tem muitas mazelas. É convincente o argumento de que os esforços precisam se concentrar na construção do futuro. Que se deixe, então, o passado ser passado. Há o argumento de que feridas assim só são curadas quando expostas e tratadas. É um bom argumento, mas perturbador da ordem que a maioria dos ministros do Supremo preferiu defender. O Brasil sempre escolheu a fuga para a frente, em vez de encarar os erros. O STF foi coerente com esta compulsão nacional de esquecer o inesquecível. Dois ministros sustentaram a tese de que a tortura é crime hediondo, que não poderia ter sido alcançada pela anistia. Perderam a discussão, mas representaram democraticamente uma corrente discordante do pensamento majoritário. A maioria indicou ao país o caminho do silêncio sobre os crimes cometidos no aparelho do Estado contra seus cidadãos. Os ministros vencedores não devem se enganar sobre a natureza da escolha que fizeram: o não julgamento significará o silêncio. Não haverá informação oferecida de bom grado por quem a escondeu até hoje. Não se saberá o que se passou. As famílias não enterrarão seus mortos, os arquivos nacionais não terão os documentos necessários para se contar a história como a história foi. Continuará o pacto do silêncio que faz hoje uma nova geração das Forças Armadas encobrir o que foi feito pela geração anterior. Continuarão nos quartéis as comemorações de dias fúnebres como o 31 de março como se fossem datas cívicas. Os novos soldados serão ensinados que seus antecessores cumpriram o dever e defenderam a pátria. Assim quis a Justiça. Acate-se. Alguns ainda vão murmurar que só é possível evitar a repetição de um erro quando o erro é entendido plenamente, mesmo que isso seja um processo doloroso. Boa tese, mas minoritária na corte. É tentadora e reconfortante a ideia da concórdia nacional. Que o país feche então esse capítulo e siga seu caminho tirando o melhor dessa decisão do Supremo Tribunal Federal. Há uma série de problemas a enfrentar no Brasil. Que se aproveite o melhor do tempo presente, que o país se dedique a remover os obstáculos ao fortalecimento da democracia, à redução das desigualdades, ao aumento da eficiência da economia, à proteção ao patrimônio natural, ao combate à perturbadora chaga da corrupção. Que a decisão do STF não seja pretexto para reescrever o passado, igualando vítimas e algozes. Que tenha sido tomada em nome do futuro.

A verdade documentada sobre uma das mais sombrias quadras de sua história recente, apesar dos rancores que poderá despertar, representará uma satisfação moral às famílias das vítimas da ditadura.

ANISTIA E ACESSO À VERDADE
EDITORIAL - O ESTADO DE S. PAULO - 1/5/2010
O noticiário sobre a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de manter inalterada a Lei da Anistia destacou que os 7 ministros contrários à revisão pleiteada pela Ordem dos Advogados do Brasil para permitir a abertura de processos contra acusados de torturar presos políticos durante a ditadura militar invocaram, todos, a dimensão política do ato de 1979. A anistia, apontaram eles com razão, resultou de um pacto entre o governo e as oposições, no Congresso e na sociedade, pela pacificação do País, inaugurando o processo de transição que desembocaria, 5 anos depois, no restabelecimento da democracia sem novos ciclos de violência. De fato, embora não fosse propriamente essa a prioridade da grande maioria dos grupos e organizações, entre os quais a Ordem dos Advogados do Brasil, que se articularam para criar o Movimento pela Anistia, na passagem do governo do general Ernesto Geisel para o de João Figueiredo? Mas libertar os encarcerados do regime e promover o retorno dos exilados? As forças oposicionistas que negociavam com os militares aceitaram que, para se consumar, o perdão "amplo, geral e irrestrito" fossem incluídos na anistia os "crimes conexos"? Codinome para os abusos de toda ordem, inclusive a tortura. E assim se deu. "A lei nasceu de um acordo de quem tinha legitimidade para celebrar esse pacto", avaliou o ministro Cezar Peluso, no seu primeiro julgamento como presidente do Supremo Tribunal Federal. Mesmo Ricardo Lewandowski, um dos dois juízes que se pronunciaram pela revisão da lei (o outro foi Ayres Britto), guardou-se de defender a quebra automática da anistia para todos os apontados como torturadores. Ele sustentou que a Justiça deveria decidir "caso a caso" para determinar se os crimes alegadamente cometidos foram políticos ou comuns. No entanto, a sucessão de manifestações no Supremo Tribunal Federal em favor da incolumidade da Lei da Anistia, por ter sido a reconciliação política o seu objetivo essencial? "A anistia foi aprovada para esquecer o passado e viver o presente com vistas ao futuro", sintetizou o ministro Gilmar Mendes, acabou deixando em segundo plano um argumento decerto ainda mais poderoso. Está contido no parecer do relator da ação, Eros Grau, ele próprio vítima do arbítrio nos anos 1970. "Nem mesmo o Supremo Tribunal Federal está autorizado a reescrever leis de anistia", apontou, depois de rever os casos anteriores do gênero no Brasil e em países vizinhos. "Só o Congresso Nacional (que aprovou a de 1979) poderia fazer isso." O raciocínio se casa com princípios de direito que também desautorizam a revisão judicial da medida tomada há 30 anos. Os partidários do julgamento dos torturadores afirmam que a legislação penal brasileira considera a tortura crime e que o Brasil é signatário de convenções internacionais que tornam o crime imprescritível. É fato. Mas quando a anistia foi promulgada, nem uma coisa nem outra haviam acontecido. Ambas datam de muito mais tarde. "A legislação não pode retroagir para punir quem quer que seja", observa o jurista Ives Gandra Martins. Leis só retroagem para beneficiar. Se a punição é impossível, a menos que o Congresso reedite a lei da anistia, como frisou Eros Grau, nem por isso deve se colocar uma laje sobre o que se passava nos porões da repressão. Para Celso de Mello, decano do Supremo Tribunal Federal, "a improcedência da ação (movida pela Ordem dos Advogados do Brasil) não impõe qualquer óbice à busca da memória". Não basta, portanto, o repúdio "a todas as modalidades de tortura, de ontem e de hoje, civis ou militares", nas palavras de Grau. As famílias dos mortos e desaparecidos têm inquestionável direito de conhecer as circunstâncias de seu padecimento e de dar sepultura digna aos seus restos. A verdade documentada sobre uma das mais sombrias quadras de sua história recente, apesar dos rancores que poderá despertar, representará uma satisfação moral às famílias das vítimas da ditadura. Mais que isso, preenchendo um lapso da história nacional, a revelação daqueles fatos permitirá que se cimentem as trincas que ainda dividem setores da sociedade, mesmo tendo-se passado um quarto de século. 

A segurança pública é, por todas as razões conhecidas, área sensível e complexa no Rio de Janeiro.

NA SEGURANÇA NÃO PODE HAVER RECUO
EDITORIAL - O GLOBO - 1/5/2010
A segurança pública é, por todas as razões conhecidas, área sensível e complexa no Rio de Janeiro. Desde o delegado que, na letra do samba de Donga, do início do século XX, avisava pelo telefone que havia uma roleta para se jogar na Carioca, ao bandido Lúcio Flávio Lírio, da década de 70, refratário a qualquer proximidade com os chamados agentes da lei — “polícia é polícia, bandido é bandido” —, o setor funciona como demolidor de biografias. Sejam pessoais ou profissionais. Da malandragem de navalha na Lapa, em que pontificava Madame Satã, dono do pedaço, ao crime organizado conduzido por grupos armados com fuzis e granadas, a segurança pública carioca e fluminense se converteu em uma questão de fama mundial.Até há pouco tempo, tratava-se de um problema sem solução. Mesmo pontos cardeais na geografia da violência no planeta, como Cáli e Medellín, na Colômbia, o maior produtor de cocaína, conseguiam avanços inimagináveis na perspectiva da região metropolitana carioca. O cenário, porém, tem mudado para melhor devido a um trabalho de equipe conduzido pelo secretário de Segurança, José Mariano Beltrame. Ontem, o secretário conseguiu algo inédito: completou 1.212 dias no cargo, recorde de permanência no talvez mais espinhoso posto da administração pública fluminense. A situação da Secretaria de Segurança chegara a um nível tão baixo que qualquer melhora no padrão ético na condução da área já seria um progresso incomensurável Afinal, não é sempre que um diretor de polícia sai do cargo e vai para a penitenciária, junto com auxiliares diretos. O caso de Álvaro Lins e inspetores de sua confiança, os tais “inhos”, flagrados como protetores de máfias caça-níqueis infiltrados na alta cúpula da polícia, é de filme de ficção. O uso de técnicas de administração usuais no setor privado, mas revolucionárias na área pública — planejamento, trabalho por metas, remuneração variável em função do alcance de objetivos —, tem produzido resultados positivos inesperados. E, como o baixo clero da política fluminense deixou de influenciar na nomeação de delegados e comandantes de batalhões da PM, passou a existir amplo espaço para um trabalho sério, no qual se destaca o projeto das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). As estatísticas da violência mostram o avanço do trabalho. Em fevereiro, houve no Estado do Rio o menor número de homicídios, neste mês, desde 1991 — 473, uma redução de 14,9% em relação a fevereiro de 2009. Na cidade do Rio, a queda foi ainda maior — 37%, com 141 assassinatos contra 224 no ano anterior. Houve diminuição em várias outras modalidades de crimes. O que parecia impossível, acontece. A polícia passa a ocupar favelas de maneira definitiva, liberta milhares de pessoas da ditadura do crime, e permite a chegada às comunidades de serviços públicos essenciais. Mas, em administração, ainda mais na segurança pública, não há vitórias permanentes. É um equívoco fazer projeções mecânicas de dados positivos de redução da violência. Métodos de gestão exitosos, montados à custa de longo e duro trabalho, podem cair como castelo de cartas se não houver o cuidado constante de preservar o terreno conquistado. Será trágico, não apenas para cariocas e fluminenses, se não for consolidada a cultura do combate profissional à criminalidade. 

Skoob

BBC Brasil Atualidades

Visitantes

free counters