sábado, outubro 16, 2010

Raízes do voto em Tiririca

Raízes do voto em Tiririca
Fabio Gomes – O Globo
Tiririca, em vestes civis.
A sociedade está distante da política. A frieza da relação do público com o processo eleitoral é sintomática de algumas evidências claras da cisão que se estabeleceu entre o público e o poder político. Dois aspectos fundamentais da democracia representativa estão ausentes na relação do meio político com a sociedade. Em primeiro lugar, há ausência do aspecto representativo na visão que os eleitores têm dos cargos legislativos. Os eleitores não percebem no Congresso e nas Assembleias Legislativas a essência representativa do interesse público. O segundo aspecto é a cisão que ocorre na comunicação dos eleitos com a sociedade: ausência do aspecto deliberativo, o diálogo dos representantes com os representados.
As ausências dos aspectos fundamentais produzem sintomas variados.
Cerca de 24 milhões de eleitores não compareceram às urnas, 18 em cada cem eleitores se abstiveram.
A ausência pode traduzir sentimentos variados. O eleitor se ausenta por não considerar seu voto um valor determinante para o processo democrático, uma vez que o impacto representativo de sua participação é irrisório. Assim, não participa esperando que os outros eleitores o façam.
O eleitor não comparece por não enxergar benefício direto em sua ação, uma vez que a possibilidade dos benefícios será alimentada pela participação dos demais. O eleitor pode se ausentar se outros compromissos forem priorizados, como viagens e férias.
Porém, o mais grave de uma ausência do eleitor é a não observância do dever cívico na ação de votar. Não percebendo os aspectos deliberativos e representativos, o eleitor não enxerga o seu papel social no arranjo democrático do processo eleitoral.
A cisão entre representantes e representados produz um campo de total desconhecimento do público sobre as funções de deputados e senadores.
Não conhecendo a função do cargo disputado, como o eleitor pode estabelecer critérios para escolha? O percentual dos votos não válidos traduz essa dissonância quando comparados entre os cargos. Na média nacional, o percentual de votos em branco e nulos para deputado estadual e distrital foi de 11,4%; para deputado federal, chegou a 12,2% — os votos nulos para deputados contemplam ainda os candidatos impugnados.
Para governador, o índice foi de 12,4%. Já para senador, função sobre a qual as p e s q u i s a s m o s t r a m maior desconhecimento dos eleitores, o índice de votos não válidos no Brasil foi de 23,8% — deve ser considerado aqui também o desconhecimento sobre a escolha de dois candidatos, que pode ter afetado os índices. Para presidente, o índice foi menor, 8,7% de votos não válidos.
Na disputa presidencial, os debates são mais claros, a dramaticidade da escolha mais presente, enfim, o conhecimento do eleitor sobre as razões do voto é mais elaborado por intermédio de informações mais sólidas que envolvem o cargo disputado.
A compreensão do sistema democrático como um arranjo de comportamentos, que envolve a percepção do público e as intervenções políticas, lança luz à relação fria do eleitorado com o processo eleitoral. A situação é preocupante. Não é raro observar um comportamento com indiferença dos eleitores quando se deparam com escândalos de corrupção envolvendo políticos. A pauta negativa da política e a ausência de comunicação positiva transformam o comportamento do cidadão em apatia no que se refere ao mundo político. O eleitor brasileiro entende a política como um espaço de convivência em que a corrupção é cotidianamente praticada sem pudor. Diante de um novo escândalo, a tendência do eleitor é dizer: “Política é assim mesmo.” Nesta eleição, chamou muito a atenção a votação expressiva do palhaço Tiririca, eleito deputado federal por São Paulo. Como se outros Tiriricas não tivessem já sido eleitos. O contingente eleitoral deu relevo ao caso.
Como se um Tiririca com 1,3 milhão de votos fosse mais grave do que 25 Tiriricas com 50 mil votos. Os críticos culpam os eleitores. Mas a culpa é dos políticos que não mostram seu valor. Que não se mostram como elementos cruciais da democracia. A culpa é da cisão comunicativa, da ausência da consciência de representatividade.
A lamentável eleição de Tiririca não foi fruto de um embuste eleitoral.
O candidato tocou na ferida dos políticos ao conquistar votos com um discurso que contorna o que representam os políticos no imaginário popular.
Mensagens do tipo “pior do que está não fica” traduzem a cisão entre eleitos e representados, dramatizada pela pauta negativa dos políticos.
Uma vez não enxergada a solução para o cenário que se estabeleceu, parte dos eleitores busca o voto-protesto, sem dimensionar as consequências de uma escolha mal feita. Afinal, sem a noção de representação e com a comunicação falha com os representantes, pior não fica.
Fabio Gomes é sociólogo

O risco do debate na base do contra ou a favor

O risco do debate na base do contra ou a favor
Candidatos estão mais interessados em deixar mal o rival do que em dizer o que pensam
Editorial, Jornal do Brasil
O processo eleitoral é um dos aspectos positivos, e tem como mérito a capacidade de mobilizar uma grande parte da população em torno da discussão dos grandes temas nacionais. Mas como nada é perfeito, há um problema: na verdade, os temas são quase sempre impregnados pela emoção da campanha e acabam sendo discutidos na perigosa base do achismo, do “sou contra” ou “sou a favor”.
A questão do casamento gay e, principalmente, a do aborto ficam inteiramente deslocadas quando inseridas em um simples bate-boca – só que de candidatos à Presidência – onde os protagonistas estão muito mais interessados em deixar o oponente em situação difícil com o eleitorado do que em mostrar o que de fato pensam sobre esses temas, ou que propostas têm a respeito deles.
Quando temas polêmicos e complexos são tratados em campanhas eleitorais, maior é a chance de o eleitor não conhecer o candidato. Não é possível tratar questões profundas como aborto – ou eutanásia, ou qualquer tema relativo à fé e religião – de modo superficial. É um grande engano achar que uma única pessoa pode decidir que rumos um país tomará com relação a esses temas. Primeiro, porque jamais se chegará a um consenso. Segundo, porque questões que resvalam em leis devem ser tratadas por um colegiado de especialistas, ouvindo as várias vertentes, quiçá convocando a população a um plebiscito.
Os debates eleitorais, nos moldes em que se dão hoje em dia, estão no mesmo campo de análise. Não dá para ninguém conhecer o que um candidato pensa com alguma profundidade em dois minutos, com mais um ou dois para réplica e tréplica. E nem dá para questionar muito o modelo, porque o debate hoje é um dos poucos meios para que o eleitor menos informado possa ter alguma luz para iniciar sua opção de voto.
Há de chegar um dia em que os eleitores tenham a capacidade de pesquisar o que o candidato já fez, sua trajetória na política ou na vida pública. De saber qual é a posição dos partidos sobre os principais temas. Para, então, não depender de migalhas de informação – “eu acho isso” ou “sou a favor disso” ou “a favor daquilo” – para se votar com consciência.

Jorge Braga, para O Popular


O governo está uma bagunça Por Villas-Bôas Corrêa – Jornal do Brasil Online

O governo está uma bagunça
Por Villas-Bôas Corrêa – Jornal do Brasil Online
A última pesquisa do Ibope confirma a liderança de Dilma nesta reta final do segundo turno que leva às urnas de 31 deste mês, pela escassa diferença de seis pontos de vantagem sobre José Serra – 49% contra 43%. É uma vantagem significativa, embora escassa. Com a migração de 3% para o tucano, batemos de testa no virtual empate.
Restam ainda três ou quatro debates previstos nas redes de TV. Mas a lição da estreia na TV Bandeirantes está longe de comprovar a eficiência do bate-boca, com normas rígidas que descaracterizam o confronto de propostas e de críticas. E poucos, em porcentagem ínfima, têm paciência para perder horas de sono e despertar com o cantar dos galos.
Debates são espetáculos para auditórios vazios. E nesta reta final e decisiva, Dilma e José Serra precisam ajustar os seus esquemas, com a análise do primeiro turno. Atentos aos 20 milhões de votos do Partido Verde, da acreana Marina Silva, no primeiro turno, que ainda aguardam a decisão do partido. Mas, com a óbvia tendência da presidente e candidata no primeiro turno de não votar na candidata do presidente Lula.
São especulações que serão testadas nas urnas. Ou nas próximas pesquisas.
O presidente Lula andou sumido nos últimos dias e voltou com a urgência de salvador da sua candidata. Até lá, talvez possa atender à curiosidade de eventuais leitores uma análise sobre a arte de governar, com os exemplos da nossa história.
Vamos lá. Governar é despachar papéis, ensinava o meu saudoso amigo Prudente de Morais Neto, o Pedro Dantas, que foi um republicano com luminosa carreira na imprensa, comentarista político em vários jornais que já fecharam as portas, como O Diário Carioca e o Diário de Notícias.
É a mesma lição que se recolhe do Diário de Getulio Vargas, salvo do lixo pela diligência da sua neta, Celina Vargas, que encontrou os 13 cadernos esquecidos no fundo do armário no gabinete presidencial do Palácio do Catete, depois publicado com o capricho e a competência da historiadora de impecável ética. Sem cortes, na íntegra, incluindo os surpreendentes desabafos de sua paixão pela bela francesa Aimée de Haren, que durou pouco – de 17 de abril de 1937, “uma ocorrência sentimental de transbordante alegria” a 31 de janeiro de 1938 – “quando a amada não partiu, ficou para o dia seguinte e fui à noite despedir-me”.
Além do incandescente caso de amor, o Diário de Getulio registra a sua dedicação ao trabalho, da manhã até altas horas da madrugada, despachando processos, até o último da pilha.
Todo este passeio pela história vem a propósito da paralisação do governo Lula, justificada pelo segundo turno. Gavetas e armários do luxuoso gabinete presidencial no Palácio guardam o papelório acumulado, à espera que o presidente Lula encontre alguns minutos para assinar papéis, que não lê para não ter azia.
O que sobrar fará parte da herança do sucessor ou sucessora. E que reclamam urgência. Como o Orçamento para 2011, o aumento do salário mínimo que passará a vigor a partir de 1º de janeiro. No pior Congresso de todos os tempos – e que deve perder a liderança para o próximo, que se gratificou com a extensão do recesso branco parlamentar até o início de novembro – dorme o sono da irresponsabilidade o reajuste do salário mínimo, que terá que ser assinado pelo presidente Lula. As normas das boas maneiras recomendam que o presidente consulte o seu sucessor ou sucessora.
O governo não se afoba. O seu vice-líder no Congresso, deputado Gilmar Machado (PT-SP), teoricamente responsável pelas articulações do Orçamento, não tem nenhuma pressa. Avisa ao distinto público que só vai cuidar de tal maçada depois das eleições. Desculpa-se: é preciso considerar a questão do salário mínimo e dos aposentados. O que não se discute em pé, mas numa poltrona fofa. Para que ter pressa?

STF e CNJ entram em rota de colisão

STF e CNJ entram em rota de colisão
Luiz Orlando Carneiro – Jornal do Brasil Online - Brasília
O Supremo Tribunal Federal (STF) e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) estão, cada vez mais, em rota de colisão. Na quinta-feira, por unanimidade, os sete ministros presentes à sessão plenária do STF reafirmaram que o órgão de controle externo do Judiciário não tem poderes para exercer a fiscalização de atos de conteúdo jurisdicional, restringindo-se sua competência aos âmbitos administrativo, financeiro e disciplinar. E revalidaram mandados de segurança concedidos pelo Tribunal de Justiça do Maranhão a titulares de dois cartórios do interior do estado, afastados por decisões do corregedor do CNJ, que “tornou sem efeito” os acórdãos daquele tribunal.
 O relator dos recursos (agravos) interpostos pela União, ministro Celso de Mello – que já havia concedido liminares nos mandados de segurança em causa – relembrou, no seu voto, já ter proferido decisões em igual sentido, “advertindo que o CNJ – quer colegiadamente, quer mediante atuação monocrática de seus conselheiros ou do corregedor nacional de Justiça – não dispõe de competência para intervir em decisões emanadas de magistrados ou de tribunais, quando impregnadas de conteúdo jurisdicional”.
 Segundo o ministro Marco Aurélio, que acompanhou o relator, o CNJ tem desconhecido, em muitos casos, a sua destinação de órgão criado pela Emenda Constitucional 45/2004 para “o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes”.
 – O primeiro erro foi a inclusão topográfica do CNJ no artigo 92 da Carta, logo depois do STF e à frente do STJ, na relação dos “órgãos do Poder Judiciário”, dando a impressão de que se trata de um tribunal – comenta o ministro. – Mas é claro que o conselho não pode agir como órgão revisor de decisões judiciais.
 Marco Aurélio foi relator, no fim do ano passado, de um mandado de segurança do estado da Bahia contra ato do CNJ que reposicionou o precatório de duas senhoras octogenárias, modificando decisão do Tribunal de Justiça estadual. A maioria do plenário seguiu o seu voto, no sentido de que o conselho “extravasou, em muito, os limites simplesmente administrativos de sua competência” ao decidir sobre “aspectos substanciais de execuções contra a Fazenda Pública”.
 Outros casos Na última semana, o ministro Ayres Britto concedeu liminares em mandados de segurança, dispensando a realização de concurso público para o preenchimento das vagas de dois cartórios do Rio de Janeiro. As ações – cujo mérito ainda vai ser julgado pelo plenário do STF – foram ajuizadas pelos titulares do 13º Ofício de Notas e do 2º Ofício de Registro de Títulos e Documentos contra a decisão do CNJ, que determinou a realização de concursos públicos para o preenchimento de mais de 4 mil cartórios do país considerados vagos. Segundo um dos advogados das partes, José Rollemberg, as decisões provisórias do ministro Ayres Britto “abrem precedente importante para os demais notários que estão em situação semelhante”.
 Nos dois casos, os donos dos cartórios contestavam a determinação do corregedor nacional, que não teria levado em conta o fato de que, para assumir os cargos, eles tinham passado por “concurso de remoção”, em 1994.
 Ao conceder as liminares, Ayres Britto suspendeu os efeitos da decisão do corregedor nacional de Justiça, que inclura os dois cartórios do Rio de Janeiro “na lista definitiva de vacâncias”.

O cocota seco

Nelson Freire plays Nocturne in C minor, Op.48 No.1

Tropa de Elite 2 é humanista? (Três anos depois...)

Tropa de Elite 2 é humanista? (Três anos depois...)
A incrível transformação do sanguinário Capitão Nascimento num professor de ética e cidadania
Arnaldo Bloch – O Globo – Segundo Caderno
Arte de André Mello
A pergunta que dá título a esta crônica não tem resposta, como não tinha a que fiz três anos atrás: “Tropa de elite é fascista?” À época, eu assistira à estreia junto com jornalistas, cronistas etc. Desta vez não deu porque — de acordo com informantes aos quais não havia perguntado nada — a produção me limou da lista de convidados da cabine privê. Foi um coleguinha que veio buzinar:
— Eles não vão te convidar. Eu até sugeri, e disseram: “O Arnaldo não!” Mas se você quiser a gente dá um jeito de você ir...
— Tá maluco, parceiro? — eu respondi, meio incrédulo até, tamanho o ridículo da possibilidade de eu ter sido barrado por vingancinha ou para resguardar o coro dos contentes na semana da festa. Mas, igualzinho ao capitão — e agora tenente-coronel e subsecretário de segurança — Nascimento, sou obstinado e não me deixo inibir pelo sistema! Esperei passar o feriadão para, sorrateiramente, de volta da roça, ir a uma sessão pública no Odeon, às 13h30m de quinta-feira.
Gente, ainda estou sob impacto do que vi: a incrível transformação do sanguinário herói torturador num quase professor de moral e cívica. O didatismo do Nascimento renascido dá a impressão de que a equipe participou de um programa de reciclagem de ideias num desses hotéis-fazenda em Penedo só para dizer aos esquerdopatas maconheiros defensores de bandidos que, desta vez, fizeram o dever de casa sem deixar margem para vagabundo encontrar buraco ideológico. Em “Tropa 1” havia, conscientemente, ou, como diz um amigo, porque Padilha “errou na mão”, um discurso de sensualização da violência opressora escamoteado em naturalismo semidocumental. Já em “Tropa 2” as contradições do jogo bruto são minuciosamente dissecadas, como num seminário sobre direitos humanos. Em “Tropa 1”, Nascimento é um herói sofredor, produto da sociedade, enquanto estudantes da PUC, a burguesia da ZS, os militantes de direitos humanos e os consumidores de maconha eram mostrados (no que toca à dramaturgia) como um bando de imbecis. Já em “Tropa 2” não fica nenhuma dúvida de que só se alcança a cidadania (um bem em si) através da coragem de relativizar. Até a superlotação dos presídios entra em pauta. O deputado dos direitos humanos fala como ser humano!, contraponto válido à voz do narrador, que, de súbito, deixou de ser onisciente para fazer parte do todo.
O tráfico de drogas é chutado para escanteio e a culpa dos consumidores não é rediscutida. É como se, para denunciar a aliança entre poder público e banda podre das polícias florescendo em meio às milícias armadas, fosse necessário esquecer aquele inimigo número 1 difuso que o primeiro filme elegia para ser asfixiado em sacos de plástico ao som de música maneira, sob aplausos.
Na época em que fiz publicamente a tal perguntinha insidiosa sobre fascismo (palavra que aparece três vezes em “Tropa 2”), achando que ela ia se perder em meio ao oba-oba, aconteceu o contrário: Wagner Moura escreveu. Zuenir ensinou que aquela era uma “obra aberta”. Xexéo ensinou que eu estava confundindo personagem com autor. Citaram Francis Bacon e Gilles Deleuze para defender a fita. A “Folha” repercutiu. Cacilda! Se o filme era fascista ou não, sei lá; mas uma coisa era fato: eu havia tocado em algum ponto delicado, obscuro, que perpassava, ali, as almas da sociedade, do artista e de sua criação.
Agora, pergunto: “Tropa 2” é uma obra aberta? Este novo Nascimento está falando por si ou é títere de uma voz muito bem estruturada para ser policamente correta, esclarecedora, anti-obscurantista, amiga da civilidade, tipo assim... um discurso bem pluralista, antítese do monólogo que abre a saga? Se “Tropa I” era uma obra aberta, então Padilha, para ser coerente, deveria ter feito um “Tropa 2” tão naturalista quanto se dizia do primeiro. No bojo de suas ênfases, de seu formato, de seus dois pesos e duas medidas, “Tropa 1” tinha, sim, um discurso. A voz do autor (o ex-Bope Rodrigo Pimentel, parceiro no livro e no roteiro), através de Padilha, coincidia com a voz do personagem. Como diz uma amiga, quem já leu Monteiro Lobato aprende a decifrar polifonias.
Apesar de seu discurso paradidático, “Tropa 2” não consegue, nem assim, fechar uma tese coerente. Até agora não entendo a que se refere o tal do sistema ao qual Nascimento faz alusão o tempo todo, e que, de acordo com a tomada final do filme, tem sua resultante (ou seu nascedouro?) em Brasília. Se em “Tropa 1” o mal era o tráfico (junto com o consumidor-burguês-defensor-de-direitos-humanos-de-bandido), quem é o inimigo agora? Para o povão que ouvir as lições desse Nascimento, são os políticos, a PM e os interesses eleitorais.
Em seu discurso na CPI das milícias, Nascimento, em resposta a uma pergunta do filho (“Por que você mata gente, papai?”) responde: “Eu não sei.” É a velha história do mal externo ao indivíduo. Primeiro, são “os traficantes”. Agora, “a PM”, “as milícias”, “os políticos”, “o sistema”. Os políticos são extraterrestres gerados em Brasília, no Planeta Central. A PM é uma má corporação nascida de algum lodo virtual, alheio aos maus impulsos humanos, tão sórdida quanto os traficantes e os milicianos, diferentes da natureza dos que nascem para o bem. Como se Brasília, ou a PM, não fôssemos nós. Quem somos?
Vão perguntar se, afinal, gostei ou não do filme. Ora, “Tropa 2” é um ótimo filme de ação, como o era o primeiro. Talvez “Tropa 1” seja até mais fluido, mais sincero. Enquanto “Tropa 2”, com seu humanismo ululante, perde em potência narrativa. De qualquer maneira, de lá para cá, houve uma baita evolução na cartilha. Gostei. Afinal, parafraseando o macaco do Jô, a dialética tá ceeeeeeerta!

Paixão, em Gazeta do Povo


O Brasil acerta ao pedir voz em questões globais

O Brasil acerta ao pedir voz em questões globais
Fareed Zakaria – Revista ÉPOCA
Você pode contar com algumas coisas na anual Assembleia Geral das Nações Unidas. O trânsito em Nova York vai ficar ruim, os discursos vão valer a pena (ainda que alguns sejam um pouco chatos) – e o presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, vai dizer algum absurdo. Neste ano, sugeriu que os Estados Unidos orquestraram os ataques de 11 de setembro para salvar Israel e “reverter a economia em declínio”. (Ele notou o efeito real da guerra ao terror no estado fiscal dos EUA?).
Infelizmente, continua sendo uma pena que uma civilização como o Irã seja representada por um personagem desses. Em outros aspectos, no entanto, a atmosfera deste ano foi contida. Perguntei ao presidente israelense, Shimon Peres, que vem a esse tipo de reunião há décadas, sua leitura do clima. “Há mais preocupação do que costumava haver”, disse. Ele descreveu um clima de inquietude, no qual emergentes disputam influência. “Não acho que os EUA estejam decaindo. O mundo é que ficou mais complicado.”
Houve muita preocupação sobre as atividades de países como o Brasil e a Turquia, com muitos americanos argumentando que os dois países se tornaram causadores de problemas, fazendo acordos com Ahmadinejad e virando as costas para os EUA. Precisamos, porém, entender a dinâmica que está alterando o status desses países. Vinte anos atrás, o Brasil lutava para se livrar de um legado de ditadura, hiperinflação e dívida. Hoje, é uma democracia estável, com uma administração fiscal impressionante e um presidente loucamente popular. Sua política externa reflete o desejo de se livrar de velhas amarras.
Num discurso em Genebra em 11 de setembro, o inteligente e ambicioso ministro das Relações Exteriores do Brasil, Celso Amorim, explicou que, até oito anos atrás, os Estados Unidos absorviam 28% das exportações do Brasil; agora, compram apenas 10%, ultrapassados que foram pela China. A África também passou a ser um parceiro comercial importante para o Brasil. Ao explicar o novo interesse do país pelas questões do Oriente Médio, Amorim afirmou que os 12 milhões de imigrantes e descendentes de árabes do Brasil constituiriam a quarta ou a quinta maior nação árabe do mundo. Em outro discurso, conclamou o Brasil a ser ousado em seus interesses. “É comum ouvir que os países deveriam agir de acordo com seus meios”, disse ele. “O maior erro que alguém poderia cometer, porém, é subestimar (o potencial do Brasil).”
É uma democracia estável, com um líder popular.
Mas, para ser ator global, deve se expor mais em certos temas
Considere-se, então, a Turquia. Vinte anos atrás, também era vista como uma economia dependente da prodigalidade americana e buscando mansamente a aprovação da Europa. Agora, tem uma economia florescente e uma democracia confiante. Está crescendo mais rapidamente do que qualquer país europeu, e seus títulos são mais seguros do que os de muitos países do sul da Europa. A política externa turca está se tornando não tanto islâmica, mas otomana, restabelecendo uma esfera de influência que teve por 400 anos. Abdullah Gül, o presidente turco, diz que, ao mesmo tempo que a Turquia continua sendo parte do Ocidente, é cada vez mais influente no Oriente Médio, na Ásia Central e além. “A Turquia está se tornando uma fonte de inspiração para outros países da região”, disse-me ele em Nova York.
As potências recém-emergentes – China, Índia, Brasil – corretamente insistem em estar mais envolvidas nas tomadas de decisão globais. Quando se lhes dá a oportunidade, porém, elas atuam como grandes potências, com interesses amplos? Sobre comércio? Uso de energia? Mudanças climáticas? Não. Muitos querem ter deferência em matéria de paz regional e estabilidade, mas continuam a buscar seus interesses de modo zeloso. Talvez o exemplo mais claro seja a África do Sul, que insiste na ideia de ser líder natural da África. Só que o país se ausentou vergonhosamente de socorrer o povo do Zimbábue e do Sudão das tragédias locais. Diz Shimon Peres: “Você pode chamar a si mesmo de tomador de decisões. Mas, se não estiver preparado para sacrificar vidas e assumir riscos, então isso é mais uma impressão do que realidade”.
FAREED ZAKARIA é colunista e editor-chefe da edição internacional da revista Newsweek e escreve quinzenalmente em ÉPOCA

Ponta dos Seixas, João Pessoa, Paraíba, Brasil


A moral progride com a história? Moral da história

A moral progride com a história?
Moral da história
MARCELO LEITE – Folha de São Paulo
Leia este relato de experimentos realizados na década de 1940 por "cientistas" de uma nação "civilizada" noutro país sob sua influência:
Os experimentos iniciais com sífilis do estudo empregaram trabalhadoras do sexo intencionalmente infectadas com Treponema pallidum como fonte de infecção para presidiários do sexo masculino. Naquele tempo, trabalhadoras do sexo eram admitidas nas prisões. Quando as taxas de transmissão fêmea-macho se mostraram baixas, a abordagem de pesquisa mudou para a inoculação direta de presidiários e pacientes no hospital psiquiátrico. A maioria dos experimentos envolveu injeção subcutânea de T. Pallidum ou exposição do prepúcio peniano a material infeccioso. A maioria dos sujeitos de pesquisa foi tratada com penicilina, embora os registros disponíveis do estudo não documentem terapia ou finalização da terapia para todos os participantes; alguns receberam só tratamento parcial.
Um sujeito de investigação, paciente com histórico grave de epilepsia, morreu de "status epilepticus" por ocasião do tratamento com penicilina. Embora mortes adicionais tenham ocorrido durante a condução do estudo no hospital psiquiátrico, foram muito provavelmente relacionadas com altas taxas de doenças anteriores, como tuberculose. Os pesquisadores forneceram alguns itens de apoio institucional, como medicamentos anticonvulsivantes e refrigeradores para estocar vacinas, e ofereceram cigarros como incentivo para os sujeitos de pesquisa. Os arquivos não fornecem indicação de que os indivíduos tenham entendido que participavam de pesquisas.
A maior parte dos experimentos com gonorreia e cancro foram conduzidos com soldados. Enquanto os estudos iniciais envolviam contato sexual dos soldados com trabalhadoras do sexo que haviam sido infectadas com gonorreia, participantes subsequentes foram infectados por meio de inoculações intrauretrais de Neisseria gonorrheae e inoculações cutâneas de Haemophilus ducreyi, e depois tratados com penicilina e sulfa, respectivamente.
Experimento com sífilis em Tuskegee, Arizona (EUA)
Violações da ética nesse estudo incluem as seguintes: (1) os participantes eram membros de populações vulneráveis, inclusive pessoas com doença mental e institucionalizadas, presidiários e soldados (que não poderiam dar consentimento informado válido); (2) indivíduos foram intencionalmente infectados com patógenos que podiam causar graves enfermidades; e (3) usou-se de mentira na condução de experimentos. A correspondência entre pesquisadores e seus superiores também reconhece a natureza não ética do trabalho. Uma carta escrita em 1948 assinala: "Estou um pouco, na verdade mais que um pouco, inquieto com o experimento com as pessoas insanas. Elas não podem dar seu consentimento, não sabem o que está acontecendo, e, se alguma organização boazinha farejar o trabalho, levantará um bocado de poeira". O estudo nunca foi publicado.
O primeiro impulso de muita gente seria concluir que se trata de experimentos realizados por nazistas na Polônia, mas não foi o caso. O autor da carta mencionada ao final é R.C. Arnold, supervisor do médico e pesquisador John Cutler, que conduziu os experimentos na Guatemala entre 1946 e 1948. Depois, portanto, do final da Segunda Guerra Mundial e da exposição dos horrores dos campos de concentração alemães e da obra de carniceiros como Josef Mengele. Arnold e Cutler trabalhavam para o Serviço de Saúde Pública dos Estados Unidos.
Os documentos sobre essas pesquisas bárbaras foram descobertos por Susan Reverby, do Wellesley College dos EUA. Ela buscava documentos de outro experimento desumano com sífilis, este em solo norte-americano (Tuskegee), mas deu com a carta de Arnold e outros papéis acabrunhantes sobre o caso guatemalteco. A descoberta de Reverby está disponível na rede, e o relato acima foi traduzido do artigo de reconhecimento - quase um pedido de desculpas - escrito por Thomas R. Frieden e Francis S. Collins, diretores respectivamente dos Centros para Controle e Prevenção de Doenças (CDC) e dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH), ambos dos EUA. O comentário foi publicado no periódico da Associação Médica Americana ("Jama").
Não escrevo sobre isso para demonizar os americanos, embora sempre seja útil relativizar a admiração pelos altos padrões vigentes nos órgãos de pesquisa biomédica dos EUA. Faço-o para pôr o dedo numa ferida mais dolorida, que parece cicatrizada, mas oculta um abscesso intocado: a historicidade do mal, ou o fato incômodo de que os padrões morais e éticos variam com o tempo.
Afinal, em que pese o desconforto do missivista, não seriam poucas as pessoas daquela década que talvez considerassem legítimas as pesquisas deletérias com pessoas "objetivamente" inferiores como aquelas - prostitutas, loucos e bandidos, ainda por cima de uma República das Bananas.
Parece inconcebível, hoje. Mas não me canso de lembrar que minha avó paterna, dona Sinhá, nascida em 1885, chegou a ter mucama negra, não sei se escrava. Os efeitos da escravidão no Brasil não são tão remotos quanto querem fazer crer ideólogos da inexistência de racismo entre nós. Em meados do século 20, a eugenia ainda era doutrina corrente na medicina, e não só nos EUA, na Alemanha, ou no Brasil.
Felizmente, evoluímos. A exposição de horrores como os dos campos de concentração, ou os do Gulag soviético, ou os do Cambodja de Pol Pot, ou a simples visão dos instrumentos de punição de negros fugidos no Brasil (para não falar da matança de índios no Oeste paulista em pleno século 20), conduzem quase inevitavelmente a uma ampliação do círculo da moralidade. Seres antes dados como inferiores adquirem dignidade e direitos - negros, mulheres, assassinos, fetos, índios, estrangeiros, crianças, adúlteros, quem sabe até animais.
A lição que poucos extraem dessa história é que não existe um ótimo predeterminado em matéria de moralidade. Tendemos a considerar nossas próprias convicções como as mais universais e válidas, mas elas também terminarão por alterar-se. Basta dar tempo ao tempo.
Se a Igreja Católica mudou como mudou, e até os mitos de populações indígenas se alteram para incorporar experiências históricas (como o contato com os europeus), por que seriam imutáveis as noções atuais de direitos humanos?
Em lugar de "mutáveis", porém, deveria dizer "expansíveis". Não tem cabimento mudar os conceitos de dignidade e direitos para deles excluir seres, ou aceitar que eles, além de históricos, sejam culturalmente dependentes.
A matança de judeus e ciganos na Segunda Guerra é odiosa agora como no passado - na Alemanha, no Irã ou na França. A vingança travestida de punição pela pena de morte será um dia universalmente reconhecida como repulsiva _nos Estados Unidos, no Irã, em Israel ou na China.
Por ora, temos de nos contentar com o fato de que experimentos como os de Tuskegee, Guatemala ou Auschwitz já são vistos como obviamente criminosos e infames. É mais um passo - e está longe de ser o último.
MARCELO LEITE é repórter especial da Folha, autor dos livros "Folha Explica Darwin" (Publifolha) e "Ciência - Use com Cuidado" (Unicamp) e responsável pelo blog Ciência em Dia (Ciência em dia). Escreve às quartas-feiras neste espaço. cienciaemdia.folha@uol.com.br

Solda, para O Estado do Paraná


Jessica Stern: "Transformei o medo em curiosidade"

Jessica Stern: "Transformei o medo em curiosidade"
A especialista americana conta em livro como um estupro na adolescência a ajudou a entrevistar terroristas
Kátia Mello – Revista ÉPOCA
A americana Jessica Stern é uma das maiores especialistas do mundo em terrorismo. Ela entrevistou centenas de terroristas cristãos, judeus e islâmicos em países como Paquistão, Israel, Líbano, Índia e Indonésia. Jessica também trabalhou como diretora do Conselho de Segurança Nacional no governo Bill Clinton. O que ninguém sabia é que a ex-professora de Harvard também foi vítima de uma forma íntima de terror. Nesta entrevista, feita por telefone de sua casa em Boston, Jessica fala sobre seu novo livro, Denial: a memoir of terror (Negação: uma memória do terror), que acaba de ser lançado nos Estados Unidos, em que ela conta como uma experiência pessoal traumática – um estupro aos 13 anos, junto com sua irmã – a ajudou a entender os terroristas.
ENTREVISTA - JESSICA STERN
QUEM É Jessica Stern, de 52 anos, é especialista em terrorismo e armas de destruição em massa. Foi professora da Universidade Harvard. Mora em Boston e acaba de ingressar na Faculdade de Psicologia. Tem uma filha de 9 anos
O QUE FEZ Foi diretora do Conselho Nacional dos Estados Unidos no governo Bill Clinton
O QUE PUBLICOU É autora do livro Terror em nome de Deus: por que os militantes religiosos matam (Editora Barcarolla)
ÉPOCA – O que a fez escrever um livro em que relata seu próprio estupro?
Jessica Stern – Entrei na terapia. É comum pessoas que sofreram estupro, incluindo as que foram molestadas por membros do clérigo, tentar entender em algum momento de sua vida o que aconteceu com elas. Eu estava escrevendo meu terceiro livro em que falaria sobre a relação entre terror e medo. Nele, eu contava uma pequena história sobre como é se sentir aterrorizado. Quando meu editor a leu, ele me disse que esse relato era muito mais interessante do que todo o resto do livro.
ÉPOCA – O caso de seu estuprador estava arquivado, mas sua investigação para descobrir a identidade dele fez com que a polícia reabrisse o processo. Como foi isso?
Jessica – O estuprador ficou 18 anos na prisão, condenado por três estupros. Depois que saiu, cometeu suicídio. Quando eu decidi investigar o assunto, eu não sabia que ele estava morto. Consegui levantar toda a papelada sobre o caso. Quando a polícia reabriu o caso, ficou claro que o homem que me violentou cometia estupros em série. Ao todo foram 44 meninas violadas no início da década de 70. Vinte desses ataques aconteceram próximo à Universidade Harvard. Uma das meninas, Amy Vorenberg, era filha de um dos mais renomados professores da Faculdade de Direito da Universidade Harvard. Soube do caso dela ao conhecer sua madrasta em uma festa. Quando falei a ela sobre o que estava escrevendo, essa mulher me disse que sua afilhada também tinha sido vítima do cara que me violentou. No começo, achei isso impossível. Mas depois, Amy reconheceu o estuprador em meus arquivos. Eu não tinha o nome das vítimas, mas uma lista dos locais e das horas dos estupros que aconteceram na região de Harvard. Ao lerem o livro, outras vítimas entraram em contato comigo.
ÉPOCA – Como foi escrever sobre uma experiência tão traumática ?
Jessica – Escrever esse livro foi muito difícil. Não é um livro típico sobre minhas memórias. É como se eu tivesse entrado em um estado de sonho, de transe, em que falo sobre meu trauma. Basicamente, eu quase enlouqueci nesse processo. Durante o tempo em que escrevi o livro, minha vista ficou embaçada e eu não conseguia nem dirigir. Também me tornei supervigilante. Toda vez que eu conversava com uma vítima do mesmo estuprador, eu revivia minha experiência. Em apenas cinco páginas, descrevo a violência que sofri. Foi muito difícil deparar com minha própria raiva. Transformei meu medo em curiosidade. Essa foi uma maneira que encontrei para lidar com meu trauma. Alguns dos leitores me perguntaram se essa é a melhor forma de encarar seu estuprador, indo atrás dele, querendo saber quem ele é. Eu diria que não, claro que não. Confesso que foi um processo muito difícil de encarar. Mas, no final, valeu a pena.
ÉPOCA – Por que a senhora diz que o fato de ter vivido um trauma lhe permitiu entrevistar mais de 100 terroristas?
Jessica – Quando as pessoas vivem traumas, elas acabam se tornando capazes de enfrentar o terror com grande calma e eficiência. E era assim que eu me sentia, muito tranquila. E foi isso que me permitiu entrevistar tantos terroristas. Eu não reconhecia meu medo como um temor. Não que eu não tivesse consciência sobre os perigos por que passei. A entrevista em que corri mais riscos foi com a que fiz com Fazlur Rahnan Khalil (líder de grupo xiita paquistanês), em uma das partes mais remotas e perigosas de Islamabad, no Paquistão. Eu fui até a casa dele. Não tive medo dos homens armados que estavam com ele. Fiquei com um medo bobo de morrer envenenada com um chá escuro e sujo que me serviram.
Toda vez que falava com uma vítima do mesmo estuprador,
eu revivia minha experiência. Quase enlouqueci"
ÉPOCA – No livro, a senhora cita os abusos sexuais cometidos por vários líderes religiosos, islâmicos e católicos. O que acontece com uma criança que é molestada por um desses líderes?
Jessica – Falo sobre os abusos sexuais que acontecem nas madrassas (escolas islâmicas) no Paquistão e as violações sexuais de meninos no Afeganistão, especialmente nas noites de quinta-feira, conhecidas como o dia de amar os homens (nas sextas-feiras, dia santo, eles seriam perdoados). Também há um capítulo em que escrevo sobre a história de um homem molestado repetidas vezes por um padre. Eu acredito que meu estuprador tenha também sofrido abusos sexuais por um líder católico. Na região em que ele cresceu, havia muitos padres pedófilos. O fato de ele ter sofrido abusos sexuais na infância não justifica o que ele fez, mas ajuda a explicar. Se você nunca teve essa experiência, fica quase impossível entender o trauma de uma criança estuprada por alguém que se diz estar a serviço de Deus. Esses são crimes inconcebíveis. Os religiosos que cometem abusos sexuais manipulam as crianças e aniquilam sua fé. Foi o que aconteceu com esse personagem de meu livro. Um padre roubou sua fé. A Igreja para ele era um lugar de conforto e hoje não é mais.
ÉPOCA – Como a senhora vê as declarações do papa sobre os abusos sexuais cometidos por membros da Igreja?
Jessica – O papa age de maneira muito morosa. Ele deveria ser muito mais rigoroso em relação a esses crimes. A Igreja Católica não se mexe para punir os que cometem abusos. Mais do que isso, ela acoberta os criminosos e permite que esses homens continuem tendo acesso às crianças. Esses padres não matam as crianças, mas arruínam a vida delas para sempre. Espero que essas pessoas sejam punidas, encarceradas e que nunca mais possam ver uma criança.
ÉPOCA – A senhora foi assessora de Bill Clinton em assuntos sobre o terrorismo. Na semana passada, um paquistanês naturalizado americano foi condenado à prisão perpétua por tentar cometer o atentado na Times Square há cinco meses. O que mudou no terrorismo na última década?
Jessica – O terrorismo está constantemente mudando. Novos grupos se formam, outros se desintegram, outros se juntam. Hoje, o objetivo do grupo terrorista Al-Qaeda é recrutar ocidentais e, para isso, ele apresenta sua missão de diversas maneiras. Dependendo da audiência e do público, o Al-Qaeda emite um tipo de mensagem. No Paquistão, eles se aproveitaram da situação caótica das últimas enchentes como uma oportunidade para recrutar gente para o terrorismo. Isso porque eles conseguiram ser mais eficazes que o governo paquistanês na ajuda às pessoas carentes, e, em moeda de troca, pediram apoio da população. Esse apoio se deu de várias maneiras, como a realização de atividades ilegais, ajuda financeira ou apenas a permissão das famílias para que suas crianças ingressem nas organizações terroristas.

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