sábado, outubro 16, 2010

Tropa de Elite 2 é humanista? (Três anos depois...)

Tropa de Elite 2 é humanista? (Três anos depois...)
A incrível transformação do sanguinário Capitão Nascimento num professor de ética e cidadania
Arnaldo Bloch – O Globo – Segundo Caderno
Arte de André Mello
A pergunta que dá título a esta crônica não tem resposta, como não tinha a que fiz três anos atrás: “Tropa de elite é fascista?” À época, eu assistira à estreia junto com jornalistas, cronistas etc. Desta vez não deu porque — de acordo com informantes aos quais não havia perguntado nada — a produção me limou da lista de convidados da cabine privê. Foi um coleguinha que veio buzinar:
— Eles não vão te convidar. Eu até sugeri, e disseram: “O Arnaldo não!” Mas se você quiser a gente dá um jeito de você ir...
— Tá maluco, parceiro? — eu respondi, meio incrédulo até, tamanho o ridículo da possibilidade de eu ter sido barrado por vingancinha ou para resguardar o coro dos contentes na semana da festa. Mas, igualzinho ao capitão — e agora tenente-coronel e subsecretário de segurança — Nascimento, sou obstinado e não me deixo inibir pelo sistema! Esperei passar o feriadão para, sorrateiramente, de volta da roça, ir a uma sessão pública no Odeon, às 13h30m de quinta-feira.
Gente, ainda estou sob impacto do que vi: a incrível transformação do sanguinário herói torturador num quase professor de moral e cívica. O didatismo do Nascimento renascido dá a impressão de que a equipe participou de um programa de reciclagem de ideias num desses hotéis-fazenda em Penedo só para dizer aos esquerdopatas maconheiros defensores de bandidos que, desta vez, fizeram o dever de casa sem deixar margem para vagabundo encontrar buraco ideológico. Em “Tropa 1” havia, conscientemente, ou, como diz um amigo, porque Padilha “errou na mão”, um discurso de sensualização da violência opressora escamoteado em naturalismo semidocumental. Já em “Tropa 2” as contradições do jogo bruto são minuciosamente dissecadas, como num seminário sobre direitos humanos. Em “Tropa 1”, Nascimento é um herói sofredor, produto da sociedade, enquanto estudantes da PUC, a burguesia da ZS, os militantes de direitos humanos e os consumidores de maconha eram mostrados (no que toca à dramaturgia) como um bando de imbecis. Já em “Tropa 2” não fica nenhuma dúvida de que só se alcança a cidadania (um bem em si) através da coragem de relativizar. Até a superlotação dos presídios entra em pauta. O deputado dos direitos humanos fala como ser humano!, contraponto válido à voz do narrador, que, de súbito, deixou de ser onisciente para fazer parte do todo.
O tráfico de drogas é chutado para escanteio e a culpa dos consumidores não é rediscutida. É como se, para denunciar a aliança entre poder público e banda podre das polícias florescendo em meio às milícias armadas, fosse necessário esquecer aquele inimigo número 1 difuso que o primeiro filme elegia para ser asfixiado em sacos de plástico ao som de música maneira, sob aplausos.
Na época em que fiz publicamente a tal perguntinha insidiosa sobre fascismo (palavra que aparece três vezes em “Tropa 2”), achando que ela ia se perder em meio ao oba-oba, aconteceu o contrário: Wagner Moura escreveu. Zuenir ensinou que aquela era uma “obra aberta”. Xexéo ensinou que eu estava confundindo personagem com autor. Citaram Francis Bacon e Gilles Deleuze para defender a fita. A “Folha” repercutiu. Cacilda! Se o filme era fascista ou não, sei lá; mas uma coisa era fato: eu havia tocado em algum ponto delicado, obscuro, que perpassava, ali, as almas da sociedade, do artista e de sua criação.
Agora, pergunto: “Tropa 2” é uma obra aberta? Este novo Nascimento está falando por si ou é títere de uma voz muito bem estruturada para ser policamente correta, esclarecedora, anti-obscurantista, amiga da civilidade, tipo assim... um discurso bem pluralista, antítese do monólogo que abre a saga? Se “Tropa I” era uma obra aberta, então Padilha, para ser coerente, deveria ter feito um “Tropa 2” tão naturalista quanto se dizia do primeiro. No bojo de suas ênfases, de seu formato, de seus dois pesos e duas medidas, “Tropa 1” tinha, sim, um discurso. A voz do autor (o ex-Bope Rodrigo Pimentel, parceiro no livro e no roteiro), através de Padilha, coincidia com a voz do personagem. Como diz uma amiga, quem já leu Monteiro Lobato aprende a decifrar polifonias.
Apesar de seu discurso paradidático, “Tropa 2” não consegue, nem assim, fechar uma tese coerente. Até agora não entendo a que se refere o tal do sistema ao qual Nascimento faz alusão o tempo todo, e que, de acordo com a tomada final do filme, tem sua resultante (ou seu nascedouro?) em Brasília. Se em “Tropa 1” o mal era o tráfico (junto com o consumidor-burguês-defensor-de-direitos-humanos-de-bandido), quem é o inimigo agora? Para o povão que ouvir as lições desse Nascimento, são os políticos, a PM e os interesses eleitorais.
Em seu discurso na CPI das milícias, Nascimento, em resposta a uma pergunta do filho (“Por que você mata gente, papai?”) responde: “Eu não sei.” É a velha história do mal externo ao indivíduo. Primeiro, são “os traficantes”. Agora, “a PM”, “as milícias”, “os políticos”, “o sistema”. Os políticos são extraterrestres gerados em Brasília, no Planeta Central. A PM é uma má corporação nascida de algum lodo virtual, alheio aos maus impulsos humanos, tão sórdida quanto os traficantes e os milicianos, diferentes da natureza dos que nascem para o bem. Como se Brasília, ou a PM, não fôssemos nós. Quem somos?
Vão perguntar se, afinal, gostei ou não do filme. Ora, “Tropa 2” é um ótimo filme de ação, como o era o primeiro. Talvez “Tropa 1” seja até mais fluido, mais sincero. Enquanto “Tropa 2”, com seu humanismo ululante, perde em potência narrativa. De qualquer maneira, de lá para cá, houve uma baita evolução na cartilha. Gostei. Afinal, parafraseando o macaco do Jô, a dialética tá ceeeeeeerta!

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Skoob

BBC Brasil Atualidades

Visitantes

free counters