sábado, outubro 16, 2010

Jessica Stern: "Transformei o medo em curiosidade"

Jessica Stern: "Transformei o medo em curiosidade"
A especialista americana conta em livro como um estupro na adolescência a ajudou a entrevistar terroristas
Kátia Mello – Revista ÉPOCA
A americana Jessica Stern é uma das maiores especialistas do mundo em terrorismo. Ela entrevistou centenas de terroristas cristãos, judeus e islâmicos em países como Paquistão, Israel, Líbano, Índia e Indonésia. Jessica também trabalhou como diretora do Conselho de Segurança Nacional no governo Bill Clinton. O que ninguém sabia é que a ex-professora de Harvard também foi vítima de uma forma íntima de terror. Nesta entrevista, feita por telefone de sua casa em Boston, Jessica fala sobre seu novo livro, Denial: a memoir of terror (Negação: uma memória do terror), que acaba de ser lançado nos Estados Unidos, em que ela conta como uma experiência pessoal traumática – um estupro aos 13 anos, junto com sua irmã – a ajudou a entender os terroristas.
ENTREVISTA - JESSICA STERN
QUEM É Jessica Stern, de 52 anos, é especialista em terrorismo e armas de destruição em massa. Foi professora da Universidade Harvard. Mora em Boston e acaba de ingressar na Faculdade de Psicologia. Tem uma filha de 9 anos
O QUE FEZ Foi diretora do Conselho Nacional dos Estados Unidos no governo Bill Clinton
O QUE PUBLICOU É autora do livro Terror em nome de Deus: por que os militantes religiosos matam (Editora Barcarolla)
ÉPOCA – O que a fez escrever um livro em que relata seu próprio estupro?
Jessica Stern – Entrei na terapia. É comum pessoas que sofreram estupro, incluindo as que foram molestadas por membros do clérigo, tentar entender em algum momento de sua vida o que aconteceu com elas. Eu estava escrevendo meu terceiro livro em que falaria sobre a relação entre terror e medo. Nele, eu contava uma pequena história sobre como é se sentir aterrorizado. Quando meu editor a leu, ele me disse que esse relato era muito mais interessante do que todo o resto do livro.
ÉPOCA – O caso de seu estuprador estava arquivado, mas sua investigação para descobrir a identidade dele fez com que a polícia reabrisse o processo. Como foi isso?
Jessica – O estuprador ficou 18 anos na prisão, condenado por três estupros. Depois que saiu, cometeu suicídio. Quando eu decidi investigar o assunto, eu não sabia que ele estava morto. Consegui levantar toda a papelada sobre o caso. Quando a polícia reabriu o caso, ficou claro que o homem que me violentou cometia estupros em série. Ao todo foram 44 meninas violadas no início da década de 70. Vinte desses ataques aconteceram próximo à Universidade Harvard. Uma das meninas, Amy Vorenberg, era filha de um dos mais renomados professores da Faculdade de Direito da Universidade Harvard. Soube do caso dela ao conhecer sua madrasta em uma festa. Quando falei a ela sobre o que estava escrevendo, essa mulher me disse que sua afilhada também tinha sido vítima do cara que me violentou. No começo, achei isso impossível. Mas depois, Amy reconheceu o estuprador em meus arquivos. Eu não tinha o nome das vítimas, mas uma lista dos locais e das horas dos estupros que aconteceram na região de Harvard. Ao lerem o livro, outras vítimas entraram em contato comigo.
ÉPOCA – Como foi escrever sobre uma experiência tão traumática ?
Jessica – Escrever esse livro foi muito difícil. Não é um livro típico sobre minhas memórias. É como se eu tivesse entrado em um estado de sonho, de transe, em que falo sobre meu trauma. Basicamente, eu quase enlouqueci nesse processo. Durante o tempo em que escrevi o livro, minha vista ficou embaçada e eu não conseguia nem dirigir. Também me tornei supervigilante. Toda vez que eu conversava com uma vítima do mesmo estuprador, eu revivia minha experiência. Em apenas cinco páginas, descrevo a violência que sofri. Foi muito difícil deparar com minha própria raiva. Transformei meu medo em curiosidade. Essa foi uma maneira que encontrei para lidar com meu trauma. Alguns dos leitores me perguntaram se essa é a melhor forma de encarar seu estuprador, indo atrás dele, querendo saber quem ele é. Eu diria que não, claro que não. Confesso que foi um processo muito difícil de encarar. Mas, no final, valeu a pena.
ÉPOCA – Por que a senhora diz que o fato de ter vivido um trauma lhe permitiu entrevistar mais de 100 terroristas?
Jessica – Quando as pessoas vivem traumas, elas acabam se tornando capazes de enfrentar o terror com grande calma e eficiência. E era assim que eu me sentia, muito tranquila. E foi isso que me permitiu entrevistar tantos terroristas. Eu não reconhecia meu medo como um temor. Não que eu não tivesse consciência sobre os perigos por que passei. A entrevista em que corri mais riscos foi com a que fiz com Fazlur Rahnan Khalil (líder de grupo xiita paquistanês), em uma das partes mais remotas e perigosas de Islamabad, no Paquistão. Eu fui até a casa dele. Não tive medo dos homens armados que estavam com ele. Fiquei com um medo bobo de morrer envenenada com um chá escuro e sujo que me serviram.
Toda vez que falava com uma vítima do mesmo estuprador,
eu revivia minha experiência. Quase enlouqueci"
ÉPOCA – No livro, a senhora cita os abusos sexuais cometidos por vários líderes religiosos, islâmicos e católicos. O que acontece com uma criança que é molestada por um desses líderes?
Jessica – Falo sobre os abusos sexuais que acontecem nas madrassas (escolas islâmicas) no Paquistão e as violações sexuais de meninos no Afeganistão, especialmente nas noites de quinta-feira, conhecidas como o dia de amar os homens (nas sextas-feiras, dia santo, eles seriam perdoados). Também há um capítulo em que escrevo sobre a história de um homem molestado repetidas vezes por um padre. Eu acredito que meu estuprador tenha também sofrido abusos sexuais por um líder católico. Na região em que ele cresceu, havia muitos padres pedófilos. O fato de ele ter sofrido abusos sexuais na infância não justifica o que ele fez, mas ajuda a explicar. Se você nunca teve essa experiência, fica quase impossível entender o trauma de uma criança estuprada por alguém que se diz estar a serviço de Deus. Esses são crimes inconcebíveis. Os religiosos que cometem abusos sexuais manipulam as crianças e aniquilam sua fé. Foi o que aconteceu com esse personagem de meu livro. Um padre roubou sua fé. A Igreja para ele era um lugar de conforto e hoje não é mais.
ÉPOCA – Como a senhora vê as declarações do papa sobre os abusos sexuais cometidos por membros da Igreja?
Jessica – O papa age de maneira muito morosa. Ele deveria ser muito mais rigoroso em relação a esses crimes. A Igreja Católica não se mexe para punir os que cometem abusos. Mais do que isso, ela acoberta os criminosos e permite que esses homens continuem tendo acesso às crianças. Esses padres não matam as crianças, mas arruínam a vida delas para sempre. Espero que essas pessoas sejam punidas, encarceradas e que nunca mais possam ver uma criança.
ÉPOCA – A senhora foi assessora de Bill Clinton em assuntos sobre o terrorismo. Na semana passada, um paquistanês naturalizado americano foi condenado à prisão perpétua por tentar cometer o atentado na Times Square há cinco meses. O que mudou no terrorismo na última década?
Jessica – O terrorismo está constantemente mudando. Novos grupos se formam, outros se desintegram, outros se juntam. Hoje, o objetivo do grupo terrorista Al-Qaeda é recrutar ocidentais e, para isso, ele apresenta sua missão de diversas maneiras. Dependendo da audiência e do público, o Al-Qaeda emite um tipo de mensagem. No Paquistão, eles se aproveitaram da situação caótica das últimas enchentes como uma oportunidade para recrutar gente para o terrorismo. Isso porque eles conseguiram ser mais eficazes que o governo paquistanês na ajuda às pessoas carentes, e, em moeda de troca, pediram apoio da população. Esse apoio se deu de várias maneiras, como a realização de atividades ilegais, ajuda financeira ou apenas a permissão das famílias para que suas crianças ingressem nas organizações terroristas.

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