sábado, novembro 06, 2010

Pelicanos brancos, Mississippi

Fotografia de Annie Griffiths, a National Geographic

Xalberto, para a Charge Online

A anatomia dos votos

A anatomia dos votos
Merval Pereira - O GLOBO - 06/11/10
A polêmica sobre a importância do voto nordestino para a eleição de Dilma Rousseff como presidente do país não resiste a uma análise dos mapas eleitorais. O cientista político Cesar Romero Jacob, da PUC do Rio, acostumado a analisar esses mapas para definir o que chama de "a geografia dos votos", explica com objetividade: Dilma foi eleita porque ganhou de muito nas áreas que lhe eram favoráveis, como no Norte e Nordeste, mas perdeu de pouco onde o ambiente político favorecia seu adversário tucano, José Serra.
Mesmo sem os votos do Norte e Nordeste, Dilma venceria Serra na soma dos votos do Centro-Oeste, Sul e Sudeste por míseros 275.124 votos, ou 0,25%. Já no Norte e Nordeste, Dilma tirou uma vantagem sobre Serra de espetaculares 11.777.817 de votos.
Na Região Sul, onde a oposição predomina, a diferença a favor de Serra foi de apenas 6 pontos. No Rio Grande do Sul, por exemplo, Serra perdeu no primeiro turno e ganhou de pouco no segundo.
Em Santa Catarina, o Oeste do estado sempre tende a votar mais à esquerda; Serra ganha bem, com a média nacional invertida - 56% a 44% a seu favor -, mas o estado não é dos maiores colégios eleitorais, o mesmo acontecendo no Paraná e no Mato Grosso do Sul.
No Centro-Oeste, a diferença foi de 2 pontos para Serra, com empates técnicos em Mato Grosso e em Goiás.
No Sudeste, a vantagem de Dilma foi de 4 pontos. A diferença entre PT e PSDB na Região Sudeste vem se reduzindo desde 2002.
Anteriormente, em 1994 e 1998, Fernando Henrique Cardoso havia ficado à frente de Lula nas vitórias no primeiro turno em até 5 milhões de votos em São Paulo, o que garantia a supremacia no Sudeste.
Embora Alckmin tenha vencido no primeiro turno de 2006 por uma pequena margem de cerca de 700 mil votos, graças à vantagem que tirou em São Paulo de 3,8 milhões de votos, no segundo turno Lula venceu por 12 pontos. Metade do que tivera em 2002 (25 pontos), e Dilma venceu agora por 4 pontos.
A média nacional invertida a favor de Serra em São Paulo, apesar de se tratar do maior colégio eleitoral do país, não foi suficiente para compensar Minas Gerais (11% do eleitorado) e Rio de Janeiro (9%), que juntos dão praticamente o estado de São Paulo (22%), destaca Romero Jacob.
Mesmo que, no conjunto de três estados do Sudeste (Rio, Minas e Espírito Santo), Dilma tenha tido uma redução de 8,5 pontos em relação à votação de Lula em 2006.
Ainda na Região Sudeste, a metade Norte do Rio foi a favor do Serra por causa da atuação do Garotinho. No Espírito Santo, houve também empate.
A vantagem final de Dilma se deveu à diferença obtida no Nordeste (38 pontos) e Norte (15 pontos). Mas, como destaca outro cientista político, Jairo Nicolau, a votação final de Dilma foi menor do que a obtida por Lula em 2006 em todas as regiões do país, com exceção da Região Sul, onde ela manteve o mesmo patamar de Lula em 2006: 44% dos votos.
Dilma perdeu 4 pontos percentuais no Centro-Oeste; 8 pontos no Norte; 6 pontos no Nordeste e 5 pontos no Sudeste.
No Nordeste, Lula em 2006 teve 77,2%, e Dilma obteve 70,6%; no Norte, Lula teve 65,5% e Dilma, 57,4%.
Romero Jacob analisa que, como estratégia para ganhar a eleição, o PT foi eficaz por que perdeu de pouco no Sul e Centro-Oeste e venceu no Sudeste.
Em uma análise do Brasil como um todo, lembra Romero Jacob, dá para ver nos mapas eleitorais que, no Nordeste, os pontos azuis (locais onde Serra venceu) são muito poucos, e no Sul e Centro-Oeste os pontos vermelhos são muitos (onde Dilma teve mais votos).
As eleições do segundo turno de 2010 praticamente repetiram o padrão territorial que começou no primeiro turno de 2006, manteve-se no segundo turno de 2006 e no primeiro turno de 2010.
Segundo Jairo Nicolau, comparativamente a Alckmin em 2006, Serra cresceu em quatro regiões: 3 pontos percentuais no Centro-Oeste (onde o PSDB passou a vencer); 9 pontos no Norte; 3 pontos no Sudeste. Na Região Sul, Serra obteve (51%) e repetiu a votação de Alckmin em 2006 (50%).
Dilma perdeu, no total, em 11 estados. "Nunca um presidente eleito perdeu em tantos estados", destaca Nicolau em seu blog.
O cientista político fez comparações entre as eleições de 2006 e 2010 e chegou a conclusões interessantes.
Quando comparado a Alckmin (2006), Serra obteve mais votos (em pontos percentuais) em 24 estados; manteve-se no mesmo patamar em dois (São Paulo e Mato Grosso do Sul) e diminuiu apenas em um (Rio Grande do Sul).
Quando comparada a Lula (2006), Dilma obteve menos votos (em termos percentuais) em 25 estados; e aumentou apenas em dois (Rio Grande do Sul e Pernambuco).
As eleições foram bastante competitivas (menos de 10 pontos de diferença) em 11 estados (São Paulo, Rio Grande do Sul, Paraná, Pará, Goiás, Espírito Santo, Mato Grosso, Alagoas, Mato Grosso do Sul, Sergipe e Rondônia) e no Distrito Federal.
Nos outros 15, um dos d o i s c a n d i d a t o s a b r i u uma grande diferença sobre o outro.
Cesar Romero Jacob, da PUC, considera que os mapas eleitorais deixam claro que não existe uma disputa ideológica, nem mesmo uma disputa de classes, mas uma votação movida muito mais por interesses econômicos, seja das classes mais abastadas - que votaram em Dilma em todo o Nordeste - ou dos eleitores das classes C, D e E que, embora tenham ascendido socialmente nos últimos anos, só votaram em massa na candidata do governo no Nordeste.
Em muitos casos, o apelo do candidato tucano José Serra pela melhoria dos serviços públicos atingiu esse eleitor, que agora quer mais do governo além da pura distribuição de renda. Quer melhor educação, melhores hospitais, maior eficiência da máquina pública.

Um fenômeno da fé pelo rádio

Um fenômeno da fé pelo rádio
A jornalista americana Krista Tippett faz sucesso nos Estados Unidos com um programa que discute a religiosidade sem se ligar a igrejas
Humberto Maia Junior – Revista ÉPOCA
SUCESSO
Krista Tippett, cujo programa de rádio é transmitido
por 240 emissoras nos EUA.
Seus críticos dizem que ela é “sem sal”
Todo domingo de manhã, cerca de 600 mil americanos ligam o rádio para ouvir uma mulher de 49 anos, voz suave e acolhedora, entrevistar cientistas, filósofos e pesquisadores de diversas áreas sobre espiritualidade. Ouvem uma conversa informal. Não há debates acalorados, muito menos pregações com tom messiânico ou fundamentalista – comuns em setores religiosos da mídia americana. O que ela tenta é buscar respostas para questões como: o que significa sermos humanos? O que é o amor? Qual é nosso papel no mundo? Como a religiosidade e a espiritualidade podem nos ajudar no dia a dia? O programa se chama Being (algo como Existindo) e é transmitido por 240 emissoras, além do podcast na internet, que registra 1,3 milhão de downloads por mês. A apresentadora se chama Krista Tippett e se torna cada vez mais popular no país. Recentemente, o jornal The New York Times a classificou como um fenômeno. “Religião é um assunto delicado, que nos permite entrar no cerne da identidade de uma pessoa”, diz Krista.
Apesar da popularidade, no mês passado Krista entrou em polêmica por causa da mudança do nome do programa, que surgiu como Speaking of faith (Falando de fé). A troca de nome desagradou aos fãs. Em seu blog, ela diz que a mudança foi feita para atrair pessoas que associam a palavra “fé” à filiação a alguma igreja.
Porque ela evita temas extremistas e polêmicos, alguns consideram Krista “chatinha” e um tanto quanto “sem sal”. Krista diz não se preocupar. “O que a religião faz, e nossa cultura não, é nos convidar a procurar significado em momentos de vulnerabilidade e incerteza. Isso não é uma experiência ordinária. Precisamos levá-la a sério”, afirma. Ela diz que a ciência não pode ser detentora de toda a verdade. “Nós temos uma noção muito estreita e prejudicial sobre conhecimento e verdade. Nós sabemos, e os cientistas sabem, que há verdades que só podem ser expressas por meio de poesia ou arte. As pessoas estão acordando para o fato de que ser humano é mais do que fato e conhecimento, é experiência.”
Krista cresceu em Oklahoma, região central dos Estados Unidos. Seu avô era pastor da Igreja Batista, e ela fazia parte do coral da congregação. Era uma típica caipira americana quando entrou na faculdade de história da Universidade Brown, no começo dos anos 80. No meio acadêmico, diz ter se surpreendido ao encontrar pessoas para quem a religião pouco ou nada significava. Em 1983, conseguiu uma bolsa da Fulbright, uma fundação que financia intercâmbios estudantis, para estudar a Guerra Fria em Bonn (então capital da Alemanha Ocidental, capitalista). Trabalhou como correspondente de jornais e revistas americanos até se tornar assistente do embaixador americano no país. Respirando política, afastou-se completamente de sentimentos religiosos. “Cresci numa cultura conservadora. Mais tarde, tornei-me muito politizada e passei a acreditar nessa forma de ver o mundo. Quanto mais me aprofundava nesses valores, menos via relevância na religião.”
Um ano antes da queda do Muro de Berlim, abandonou tudo e se mudou para a Ilha de Maiorca, na Espanha. Diz que queria “meditar sobre a vida” e que sentiu reconforto rezando. Em paz com a religião, voltou para os EUA e matriculou-se no mestrado em estudos religiosos da Universidade Yale. Concluiu os estudos em 1994. Passou a frequentar a Igreja Episcopal. Nessa época, foi contratada por monges beneditinos da cidade de St. John, em Minnesota, para fazer entrevistas com pessoas de várias crenças. Daí surgiu a ideia de um programa que conversasse sobre religiões em geral. “Via um buraco negro na cobertura de assuntos religiosos.”
Krista se recusa a entrevistar os “novos ateístas”, como Richard Dawkins e Christopher Hitchens

No início, só encontrou ceticismo entre os executivos das rádios. Como fazer um programa ecumênico sobre um assunto tão segmentado? Naquela época, a maior parte dos programas religiosos, no rádio e na TV americanos, era controlada por pastores como o conservador Jerry Falwell e o ativista racial Jesse Jackson – que, ao contrário de Krista, eram bem claros em suas posições, consideradas por ela extremistas.
Em 1999, Krista conseguiu US$ 500 para produzir seu primeiro programa de rádio, que não tinha periodicidade. Até que, no dia 11 de setembro de 2001, terroristas islâmicos derrubaram o World Trade Center. Sem entender muito bem os motivos dos integrantes da Al-Qaeda, o público americano passou a se interessar mais por religião. Speaking of faith entrou na onda e ganhou periodicidade mensal. Mais dois anos e se tornaria semanal. Em 2008, o programa (ainda com o nome Speaking of faith) ganhou o Prêmio Peabody, um dos mais importantes da mídia americana. Hoje tem orçamento anual de US$ 1,3 milhão e outras premiações. Os ganhadores do Nobel da Paz Elie Wiesel, Wangari Maathai e Desmond Tutu foram alguns dos entrevistados, que falam sobre temas variados, como a disputa entre ciência e religião.
Embalada pelo sucesso, ela publicou dois livros. O primeiro levou o nome original do programa. O segundo, lançado no começo do ano, Einstein’s God – Conversations about science and the human spirit (O Deus de Einstein – Conversas sobre a ciência e o espírito humano), entrou para a lista de best-sellers do The New York Times. Quando lhe perguntam se seu programa é um “ministério”, ela responde: “Se for, é um ministério de ouvir, não de falar”.
Papo rápido > Krista Tippett
A jornalista diz que rejeita entrevistar ateus em seu programa de rádio
A senhora acredita que as pessoas estão se tornando mais ligadas à espiritualidade?
Krista Tippett – Vivemos uma época em que as coisas são muito fluidas. Isso nos leva a nos questionar “o que significa sermos humanos”. Estamos redescobrindo a espiritualidade e a religiosidade. Não como uma reação ou fuga da complexidade de nossos tempos, mas como uma forma de lidarmos melhor com essas questões.
A senhora entrevistaria ateus famosos, como Richard Dawkins, Sam Harris ou Christopher Hitchens?
Krista – Nunca os entrevistei. O que tento fazer em meu programa é me afastar dos extremistas. Nunca entrevistei essas “novas vozes ateístas” nem religiosos fanáticos. Prefiro pessoas interessadas em conversar até com quem discorda deles. Hitchens, da mesma maneira de Jerry Falwell (pastor fundamentalista, morto há três anos), se limita a atacar o que ele não aceita e as pessoas com quem ele não concorda. Não apresenta algo construtivo.
Mas uma pessoa não pode ter moral e ética mesmo não acreditando em Deus?
Krista – Sim. Muitas pessoas que não são religiosas e levam uma vida ética podem fazer isso com muito mais sinceridade do que uma pessoa que segue a moral porque acha que, fazendo isso, está seguindo uma ordem de Deus.
O que a senhora aprendeu a partir das entrevistas?
Krista – Eu aprendi a me sentir mais à vontade com os mistérios e respeitá-los. Uma das coisas mais bonitas que vi nas melhores pessoas que entrevistei é sua capacidade de terem força e fraqueza, ou vulnerabilidade e poder, ao mesmo tempo.

O que faltou na fala de Lula

O que faltou na fala de Lula
EDITORIAL - O Estado de S. Paulo - 06/11/10
Pode ter soado como uma manifestação de grandeza - ou de cavalheirismo em relação à sua sucessora Dilma Rousseff - o apelo que o presidente Lula fez à oposição na entrevista conjunta de ambos, esta semana. A coletiva, aliás, foi convocada às pressas, na tentativa de pôr um freio de arrumação nas especulações sobre o futuro Ministério e a interferência do presidente na sua formação. Daí o seu empenho em avisar aos interessados que "somente ela pode dizer quem quer e não quer".
Perguntado sobre o que espera de agora em diante da oposição, Lula pediu que ela virasse a página. "A Dilma é uma outra pessoa", assinalou. Contra ele mesmo, "não tem problema, podem continuar raivosos do jeito que sempre foram". Mas, depois que ela assumir, aconselhou, a oposição deveria ter a compreensão de não fazer o que chamou "política do estômago, da vingança, do trabalhar para não dar certo". E completou com uma referência ao imperativo de ser "a mais harmoniosa possível" a relação entre a União e os governos estaduais, 10 deles em mãos oposicionistas.
Tomada pelo seu valor de face, a exortação seria convincente ou, melhor ainda, prova de que Lula completou o percurso da atitude de confrontação furiosa, com que ingressou na vida pública, à aceitação da civilidade como ideal a ser buscado no relacionamento entre as forças de cada lado da divisa política. Pena que não tenha aproveitado o momento para reconhecer que ninguém superou o seu partido, sob o seu inconteste comando, em matéria do que agora diz condenar. Movido a vingança, o PT de Lula fez tudo, durante 8 anos, para que o governo Fernando Henrique não desse certo.
À omissão, ele adicionou uma contrafação. A história da era Lula está aí para que se esqueça que a oposição sofreu não poucas críticas pela falta de contundência com que se comportou diante do primeiro homem do povo a dirigir o País. Quaisquer que tenham sido os seus motivos, o PSDB e o então PFL ensarilharam as armas - a rogo de interlocutores do Planalto - quando o marqueteiro Duda Mendonça contou na CPI dos Correios, em agosto de 2005, que os R$ 10,5 milhões que cobrou por seus serviços na campanha petista de três anos antes foram pagos com dinheiro de caixa 2 em conta secreta no exterior.
Das evidências surgidas no escândalo do mensalão, nenhuma outra atingiu Lula tão frontalmente, e, ainda assim, a oposição "maneirou". Talvez tenha até feito a coisa certa, para evitar uma crise que no limite seria institucional. Seja como for, falta ao presidente autoridade política, que dirá moral, para pôr o dedo no nariz da oposição, acusando-a de uma conduta que foi, isso sim, dele, dos seus companheiros de legenda e das organizações a ela vinculadas. "A oposição que Lula teve é a que todo presidente pede a Deus", resume o vice-líder do PSDB no Senado, Álvaro Dias.
Como diria a então candidata Dilma antes de ser advertida para não falar difícil, o presidente tergiversou também quando lhe perguntaram se a ampliada maioria governista no Congresso deixará a sucessora menos refém de "oligarquias do Nordeste". Diante dessa alusão à fraternal relação de Lula com o soba maranhense José Sarney, ele deitou falação sobre o que seria "a lógica do jogo" - as servidões da política que obrigam os governantes a se entender com quem o eleitorado mandou para o Legislativo e não com quem eles gostariam que tivessem mandado.
Pondo a mão no ombro de Dilma, disse que "ela vai ter que conversar com o companheiro do PC do B e com o Tiririca", como se exemplificassem os oligarcas a que se associou gostosamente, a pretexto da "governabilidade", para consolidar o seu poder e fazer a sucessora. Outra falácia conveniente a que recorreu foi a de que "o Congresso é a cara, a síntese da sociedade". Todo Parlamento é uma das caras possíveis de uma nação. A face que prevalece resulta em ampla medida do sistema eleitoral. As suas regras podem ampliar ou, como no Brasil, restringir a representatividade - só 35 dos 513 novos deputados federais se elegeram com os próprios votos.
Se assim não fosse, a reforma política que Lula defende seria desnecessária. Mas cobrar coerência dele já é demais.

Sade - Why Can't We Live Together

Pater, para A Tribuna


Estado laico e pluralista e as Igrejas

Estado laico e pluralista e as Igrejas
Leonardo Boff
A descriminalização do aborto e a união civil de homossexuais, temas suscitados na campanha eleitoral, ensejam uma reflexão sobre a laicidade do Estado brasileiro, expressão do amadurecimento de nossa democracia. Laico é um Estado que não é confessional, como ocorre ainda em vários países que estabelecem uma religião, a majoritária, como oficial. Laico é o Estado que não impõe nenhuma religião, mas que respeita a todas, mantendo-se imparcial diante de cada uma delas. Essa imparcialidade não significa desconhecer o valor espiritual e ético de uma confissão religiosa. Mas por causa do respeito à consciência, o Estado é o garante do pluralismo religioso.
Por causa dessa imparcialidade não é permitido ao Estado laico impor, em matéria controversa de ética, comportamentos derivados de ditames ou dogmas de uma religião, mesmo dominante. Ao entrar no campo político e ao assumir cargos no aparelho de Estado, não se pede aos cidadãos religiosos que renunciem a suas convicções religiosas. O único que se cobra deles é que não pretendam impor a sua visão a todos os demais nem traduzir em leis gerais seus próprios pontos de vista particulares. A laicidade obriga a todos a exercer a razão comunicativa, a superar os dogmatismos em favor de uma convivência pacífica e diante dos conflitos buscar pontos de convergência comuns. Nesse sentido, a laicidade é um princípio da organização jurídica e social do Estado moderno.
Subjacente à laicidade há uma filosofia humanística, base da democracia sem fim: o respeito incondicional ao ser humano e o valor da consciência individual, independente de seus condicionamentos. Trata-se de uma crença, não em Deus como nas religiões que melhor chamaríamos de fé, mas de crença no ser humano em si mesmo, como valor. Ela se expressa pelo reconhecimento do pluralismo e pela convivência entre todos.
Não será fácil. Quem está convencido da verdade de sua posição, será tentado a divulgá-la e ganhar adeptos para ela. Mas está impedido de usar meios massivos para fazer valê-la aos outros. Isso seria proselitismo e fundamentalismo.
Laicidade não se confunde com laicismo. Este configura uma atitude que visa a erradicar da sociedade as religiões, como ocorreu com o socialismo de versão soviética ou por qualquer motivo que se aduza, para dar espaço apenas a valores seculares e racionais. Este comportamento é religioso ao avesso e desrespeita as pessoas religiosas.
Setores de Igreja ferem a laicidade quando, como ocorreu entre nós, aconselharam a seus membros a não votarem em certa candidata por apoiar a descriminalização do aborto por razões de saúde pública ou aceitar as uniões civis de homossexuais. Essa atitude é inaceitável dentro do regime laico e democrático que é o convívio legítimo das diferenças.
A ação política visa a realização do bem comum concretamente possível nos limites de uma determinada situação e de certo estado de consciência coletivo. Pode ocorrer que, devido às muitas polêmicas, não se consiga alcançar o melhor bem comum concretamente possível. Neste caso é razoável, também para as Igrejas, acolher um bem menor ou tolerar um mal menor para evitar um mal maior.
A laicidade eleva a todos os cidadãos religiosos a um mesmo patamar de dignidade. Essa igualdade não invalida os particularismos próprios de cada religião, apenas cobra dela o reconhecimento desta mesma igualdade às outras religiões.
Mas não há apenas a laicidade jurídica. Há ainda uma laicidade cultural e política que, entre nós, é geralmente desrespeitada. A maioria das sociedades atuais laicas são hegemonizadas pela cultura do capital. Nesta prevalecem valores materiais questionáveis como o individualismo, a exaltação da propriedade privada, a lassidão dos costumes e a magnificação do erotismo. Utilizam-se os meios de comunicação de massa, a maioria deles propriedade privada de algumas famílias poderosas que impõem a sua visão das coisas.
Tal prática atenta contra o estatuto laico da sociedade. Esta deve manter distância e submeter à crítica os "novos deuses". Estes são ídolos de uma "religião laica" montada sobre o culto do progresso ilimitado, da tecnificação de toda vida e do hedonismo, sabendo-se que este culto é política e ecologicamente falso porque implica a continuada exploração da natureza já degradada e a exclusão social de muita gente.
Mesmo assim não se invalida a laicidade como valor social.

Humberto, para o Jornal do Commercio


O preconceito das Mayaras

O preconceito das Mayaras
RUTH DE AQUINO - REVISTA ÉPOCA
RUTH DE AQUINO
é diretora da sucursal
de ÉPOCA no Rio de Janeiro
raquino@edglobo.com.br
“Nordestino não é gente. faça um favor a São Paulo, mate um nordestino afogado”, escreveu a estudante de Direito Mayara Petruso em seu perfil no Twitter. O show de preconceito de Mayara foi uma reação irritada e burra à vitória de Dilma Rousseff no Nordeste. Além de perder seu estágio e ser processada pela OAB de Pernambuco, Mayara conseguiu outra façanha. Despertou uma onda de comentários de ódio e preconceito contra os paulistas. O que não falta hoje na rede é gente como a gente, intolerante e racista.
Euclides da Cunha em Os sertões escreveu que “o nordestino é antes de tudo um forte”. Alguém duvida disso? A seca, a separação de parentes pela migração, a falta de terra, a renda menor, a oportunidade cavada à base de luta e provação, tudo isso faz deles resistentes. Não estão apenas no Nordeste. Os nordestinos estão nas portarias, construções e nos restaurantes do Rio de Janeiro e de São Paulo. A convivência no “Sul maravilha” é intensa e enriquecedora. Música, comida, festas, danças, crenças, literatura, quantas trocas podem ser feitas entre o povo de cá e de lá, todos brasileiros falando a mesma língua?
Do Nordeste veio o baiano Jorge Amado. O alagoano Graciliano Ramos. O pernambucano João Cabral de Melo Neto. A cearense Rachel de Queiroz. O paraibano José Lins do Rego. Vieram Caetano, Gal e Bethânia. É sem fim a contribuição cultural dos nordestinos.
Mas o preconceito existe na cabeça de muitas Mayaras por aí. Um sentimento escondido que essa moça escancarou. Numa eleição em que o presidente Lula estimulou a rixa e a animosidade entre ricos e pobres, sul e norte, é normal que os ânimos continuem acirrados. Anormal é todo esse ódio e desprezo de uma estudante, e logo de Direito. Em seu perfil no Twitter, ela escreveu: “Deem direito de voto pros nordestinos e afundem o país de quem trabalhava pra sustentar os vagabundos que fazem filho pra ganhar o bolsa 171”. É ofensivo, triste e dá vergonha.
Mesmo assim, muitos outros internautas se animaram com Mayara e pediram “câmaras de gás no Nordeste matando geral” ou então sugeriram “separar o Nordeste e os bolsas vadio do Brasil”. É xenofobia em alto grau. O significado original de “xenofobia” é preconceito com estrangeiros, mas se aplica a esse caso. Essa turma parece considerar os nordestinos um povo estranho e inferior.
Os comentários da estudante de Direito no Twitter são um crime contra os nordestinos
Mayara tampouco sabe fazer conta. Mesmo sem os votos do Nordeste, Dilma seria a nova presidente do Brasil. Entre os paulistas, ela teve uma votação expressiva e ganhou no Rio de Janeiro e em Minas Gerais. Para os tucanos fanáticos, porém, o recado do Nordeste nesta eleição foi um acinte: Dilma teve mais de 70% dos votos, uma vantagem de 10,7 milhões somente nessa região. E isso representa quase toda a diferença obtida no país. Por isso, Mayara partiu para cima dos nordestinos e virou a antiestrela da maior diversão atual na rede: achincalhar, caluniar, difamar (leia mais).
O lado bom é que o gesto parece não ter ficado impune. A estudante responderá por crime de racismo e de incitação a homicídio, segundo a OAB de Pernambuco. E a pena é de dois a cinco anos de prisão, mais multa. Mayara talvez precise ser advogada em outro país. Na Inglaterra pode ficar difícil, pois o caso foi parar em detalhe num dos jornais mais importantes de Londres, o Daily Telegraph.
O lado ruim é que detonou uma campanha de ódio contra os paulistas. Não sei até que ponto a Justiça reage com a mesma presteza contra quem demonstra preconceito contra ricos e brancos. Mas os paulistas estão sendo chamados de “bestas” e “gente que não trabalha” e “vota em palhaço”. Chega desse besteirol étnico. A eleição terminou.
Vamos deixar que o espetáculo pobre fique por conta dos políticos, em sua guerra por cargos e boquinhas. Tão excitados estão os parlamentares – paulistas, cariocas, nordestinos, nortistas e sulistas – que deixaram às moscas e sem quorum, na semana passada, os salões do Congresso Nacional. Isso sim vale uma campanha no Twitter. Voltem ao trabalho, congressistas!

Paixão, em Gazeta do Povo


Se aprovarem, será o ‘antiajuste'

Se aprovarem, será o ‘antiajuste'
Paulo Bernardo diz que ordem é evitar aprovação de aumento de gastos no Congresso
ENTREVISTA Paulo Bernardo - Luiza Damé e Eliane Oliveira BRASÍLIA
Cotado para assumir a Casa Civil e já escolhido como um dos coordenadores da equipe de transição, o ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, chamado de Paulinho pela presidente eleita, Dilma Rousseff, chegou a seu gabinete no fim da manhã de sexta-feira, onde recebeu O GLOBO, com uma determinação taxativa do presidente Lula: o governo deve tentar impedir, a todo custo, que sejam incluídos no Orçamento de 2011 recursos extras para atender demandas pendentes no Congresso e que provocariam um impacto financeiro de mais de R$ 100 bilhões.
Lula presidiu ontem uma reunião da Junta Orçamentária, que reúne Fazenda, Planejamento e Casa Civil, e disse que devem ser preservados os investimentos do PAC no Orçamento, e que nenhum problema, como novos gastos, deve ser criado para Dilma.
O GLOBO: Qual foi a orientação do presidente Lula sobre o Orçamento?
PAULO BERNARDO: Levamos para ele as polêmicas, as dúvidas e as incertezas. Se votarmos o que estava programado (no Congresso) em junho, vamos ter que fazer um monte de ajustes. Se aprovarem metade do que está lá, será o antiajuste. O presidente foi muito firme na reunião.
Disse que não podemos colaborar para nada que deixe Dilma em uma situação ruim.
Qual o tamanho do rombo?
PAULO BERNARDO: Passa de R$ 100 bilhões. O reajuste do Judiciário é em torno de R$ 7 bilhões, mas tem o Ministério Público, o que dá quase R$ 8 bilhões. Isso é apenas a ponta do iceberg. Se isso passar, a Polícia Federal vai achar que tem que ter reajuste de 56%, e todos os grupos de carreira vão querer. Você aumenta o salário dos servidores estaduais e manda a conta para o governo federal? Cadê o dim-dim para pagar isso?
O que disse Lula sobre esses projetos?
PAULO BERNARDO: Para nos posicionarmos contra todos esses pontos. Não pode ser desse jeito, temos que chamar os líderes e conversar.
Todo o Orçamento precisa de ajustes.
Este ano, fizemos dois ajustes. No Brasil sempre se faz isso: aumentam os gastos correntes em detrimento dos investimentos. A ordem é preservar os investimentos.
E como é que fica essa briga política no Congresso?
PAULO BERNARDO: O Congresso tem, via de regra, muita abertura para discutir isso com tranquilidade.
Mas tem sensibilidade também aos pleitos. Tinha um clima pré-eleitoral, onde qualquer grupo de pressão ia lá e acabava conseguindo.
Eu acho que quando você põe a bola no chão e fala: vamos conversar de novo, muda de figura.
A Dilma pode entrar, se precisar, nessa negociação?
PAULO BERNARDO: Com certeza.
O que estamos programando, e na segunda-feira tem a primeira reunião, é que o governo vai fazer interlocução com o Congresso e uma interlocução permanente com a equipe de transição.
O que o senhor acha que vai ser mais difícil no período de transição, o ajuste de contas ou a composição política?
PAULO BERNARDO: Até onde eu sei, isso sequer começou. Não pode ser gente do atual governo que vai discutir o novo governo. Senão vai parecer que a gente tem uma carteirinha para garantir lugar. Nós vamos cuidar, primeiro, de encerrar o ano, e acompanhar e interagir com o Congresso para aprovar o Orçamento.
Agora, eu aconselharia os governadores, especialmente os novos ou os reeleitos, a olharem a pauta do Congresso para verem as coisas que estão sendo debatidas lá. Seria prudente.
Há assuntos que não nos dizem respeito.
A equipe econômica será anunciada primeiro para tranquilizar o mercado?
PAULO BERNARDO: Acho que os mercados estão bem tranquilos. Nós temos aí oito anos de tranquilidade.
Esse ser etéreo chamado mercado estava todo engajado na campanha do Serra. Eles fizeram a opção.
Até onde vai o teto do governo na questão do mínimo?
PAULO BERNARDO: Nós temos uma política de reajuste e, até onde eu sei, ninguém
quer mudá-la. No ano passado, o crescimento foi zero e não satisfez ninguém. Não dá para ter um critério que é bom, mas quando o ano é ruim, a gente muda. Temos de falar francamente com as centrais, explicar o nosso ponto de vista, sabemos que é uma questão política. Vamos resolver até o fim do ano, porque o presidente Lula vai assinar (o reajuste).
E os aposentados terão aumento real?
PAULO BERNARDO: Com toda a sinceridade, nós temos de manter uma política que preserve o valor real das aposentadorias. Há uma reclamação de que o índice não acompanha o custo de vida dos velhinhos.
Mas aumento real (acima da inflação), eu não defendo. A única forma de as aposentadorias terem o mesmo índice do salário mínimo é o mínimo ter só a inflação.
Perspectiva de mais aumento para o servidor público?
PAULO BERNARDO: Os servidores tiveram o poder aquisitivo bem aumentado nos últimos anos. Algumas categorias que ganhavam salários irrisórios hoje ganham três vezes mais.
De maneira geral, fizemos um realinhamento.
Agora é manter o poder aquisitivo e fazer pequenos ajustes.
A presidente eleita defende a definição de critérios para reajuste do Bolsa Família. Há estudo para isso?
PAULO BERNARDO: Estudo, sim, mas não tem definição do que vai ser feito no ano que vem. Essa é uma política bem-sucedida e temos que consolidar.
Hoje é unanimidade. Tanto que o Serra queria radicalizar. No início, eles tinham uma visão muito crítica do Bolsa Família. Depois virou o pai do Bolsa Família.
Haverá um índice específico?
PAULO BERNARDO: Deve ter um critério, se será o INPC ou o IPCA, e em qual época. A presidente Dilma quer isso. Se houver um critério estabelecido em lei, ninguém pode dizer “fizeram isso para ganhar eleição”.
A CPMF vai voltar?
PAULO BERNARDO: A Dilma já disse que não vai mandar essa proposta ao Congresso. Se você olhar o que acontece hoje, o governo federal cumpre o que diz a Constituição. Nosso gasto é de R$ 57 bilhões por ano.
Boa parte dos estados não cumpre integralmente o que diz a Carta. Tem muita gente que acha que tem de ter mais dinheiro. De onde vamos tirar? Se falassem: a gente precisa mais R$ 1 bi por ano, estava resolvido. O problema é que se fala em R$ 15 bilhões, R$ 20 bilhões. Quando começar o ano, pode escrever aí: vai ter uma reunião de governadores com o governo federal. Os governadores virão discutir os problemas financeiros.
Tem outra solução que não seja criação de imposto?
PAULO BERNARDO: Podemos cortar de outras áreas. Só temos que discutir onde.
O momento não é bom para extinguir ministérios?
PAULO BERNARDO: Se você fizer um enxugamento enorme da máquina, pode economizar quanto? R$ 800 milhões, R$ 1 bilhão... Você vai fazer o que com o servidor? Vai passar para outro ministério e vai economizar o salário do ministro.
Nem a conta de luz economiza, porque o prédio continua lá. Não tiro o mérito desse debate, mas a ordem de grandeza para discutir a saúde é outra.
E a reforma tributária?
PAULO BERNARDO: Nós achávamos que a reforma tributária seria aprovada. O que aconteceu? Os governadores a bloquearam, porque eles preferem fazer guerra fiscal.

Skoob

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