quinta-feira, fevereiro 03, 2011

Desastres naturais e desastres sociais


Desastres naturais e desastres sociais
OCTAVIO LUIZ MOTTA FERRAZ
Estudos nos mostram que os desastres "naturais" são moldados significativamente pelas mesmas desigualdades sociais que afetam o dia a dia
Desastres "naturais", como o que se abateu recentemente sobre o Rio de Janeiro, produzem reações psicológicas intrigantes.
Esse tipo de evento aguça nossa capacidade de empatizar com os outros e nos move a agir com generosidade ampliada, que outras situações com igual ou maior impacto em termos de sofrimento humano e número de vítimas não fazem.
Doações após o tsunami na Ásia são o exemplo mais claro e emblemático dos últimos anos. Em poucos dias, governos de todo o mundo haviam prometido doar quase US$ 5 bilhões para uma tragédia que, segundo estatísticas da Organização Mundial de Saúde, causou 32 mil mortes e afetou de alguma forma outras 500 mil pessoas.
Já o Fundo Global para o Combate à Aids, Tuberculose e Malária vai gastar esse ano cerca de US$ 20 bilhões (apenas quatro vezes mais), com medidas que beneficiarão 174 milhões de pessoas.
Mas essa reação psicológica diferenciada em face de desastres "naturais" se funda numa premissa enganosa (daí a utilização das aspas).
Embora os gatilhos dos desastres sejam eventos naturais (geralmente condições geológicas e atmosféricas), a magnitude de seus danos varia fortemente com as condições econômicas, sociais e políticas da região afetada.
Um recente estudo da ONU sobre desastres ocorridos no mundo de 1975 a 2007 conclui taxativamente: populações sujeitas a riscos similares em gravidade sofrem danos significativamente mais graves e extensos se morarem em países pobres e com governos corruptos e ineficientes. Japão e Filipinas são bons exemplos.
A probabilidade de mortes decorrentes de tufões nas Filipinas é 17 vezes maior do que no Japão, embora o número de pessoas sujeitas a esse evento natural seja similar!
(conforme "Risk and Poverty in a Changing Climate", 2009).
Como bem apontou a socióloga americana Kathleen Tierney ao analisar o evento do furacão Katrina em Nova Orleans, os desastres "naturais", ao contrário de outras mazelas sociais do dia a dia, geram "crises de consenso" (em oposição às "crises de conflitos"), de onde emergem "comunidades terapêuticas" que dão suporte às vítimas e ampliam o grau de coesão da comunidade ("Social Inequality, Hazards and Disasters", 2006).
Há várias explicações para esse comportamento incoerente. Fazemos distinção moral rígida entre os danos causados por forças naturais e os causados pela ação humana.
Nos primeiros, não temos dúvida de que as vítimas são inocentes e nossa capacidade de empatia é automática. Nos outros, nosso julgamento é ofuscado por dúvidas sobre causalidade e responsabilidade que nos paralisam na ação.
Outro fator explicativo é a frequência com que esses eventos ocorrem. Se desastres "naturais" ocorressem com muita frequência, provavelmente nossa capacidade de empatia com as vítimas diminuiria, em decorrência do fenômeno da "anestesia moral".
Precisamos refinar nossos julgamentos morais à luz dos estudos acima citados, que mostram que os desastres "naturais" são moldados significativamente pelos mesmos fatores de estratificação e desigualdades sociais que influenciam a vida das pessoas no dia a dia.
Se conseguirmos, com isso, responder aos desastres sociais da mesma forma como respondemos aos desastres "naturais", estaremos no caminho certo para a minimização de ambos.
OCTAVIO LUIZ MOTTA FERRAZ, 39, mestre em direito pela USP, doutor em direito pela Universidade de Londres, professor da Escola de Direito da Universidade de Warwick, Reino Unido.

Essa rua


Essa rua
LUIS FERNANDO VERISSIMO - O GLOBO - 03/02/11
Quando Gamal Abdel Nasser e outros jovens oficiais tomaram o poder do rei Farouk em 1952, substituindo uma monarquia teocrática corrupta por uma república laica e progressista, foi com escasso apoio da Irmandade Muçulmana, que acabou rompendo com a revolução. Em vez de uma aliança religiosa na região, Nasser propunha uma pan-Arábia anti-imperialista, e era isso que assustava o Ocidente, então. Hosni Mubarak foi (se é que já se foi) um autocrata, mas seu DNA político vinha direto do Nasser. Era um Nasser despótico, acomodado com o Ocidente, mas um sucessor assim mesmo. E agora o medo do Ocidente é que sua derrubada leve fundamentalistas islâmicos ao poder no Egito, apesar da evidência de que sua participação no levante não é predominante. E o Ocidente sente saudade do Nasser que combateu há quase 60 anos.
Mais uma da velha senhora irônica, a História.
De qualquer maneira, esse negócio vai ficar interessante mesmo quando a revolta chegar ao outro grande centro do poder árabe na região, uma das últimas monarquias absolutas, e certamente a mais repressora do mundo, a Árabia Saudita. Essa “rua” sublevada que começa na Tunísia e passa por Argélia, Egito, etc.
ou também passa pela Arábia Saudita ou não leva a nada muito novo.
BINDU
Se fizessem um plebiscito, você escolheria viver num Universo em expansão ou num Universo em contração? Não faria muita diferença a curto prazo, pois os efeitos das duas possibilidades – um Universo que continuará a se expandir como vem fazendo desde o Grande Pum ou um Universo que começará a se contrair até eventualmente voltar ao ponto de origem – só serão conhecidos daqui a alguns bilhões de anos. São duas possibilidades reais. A expansão provada do Universo significará que eventualmente as galáxias que hoje observamos aqui da nossa desaparecerão, pois a luz das suas estrelas não chegará nem ao melhor telescópio concebível, e os astrônomos do futuro só conhecerão o Universo que hoje vemos de ouvir falar. No caso da contração – bem, todos nos encontraremos de novo no lugar do primeiro estouro, que pode muito bem se repetir e ser a origem de outro Universo.
Na filosofia tântrica existe a palavra “bindu”, o ponto onde o espaço interno e o externo se encontram, onde tudo tem sua origem e tudo termina. O Universo pode ser apenas uma encenação do “bindu”, o que dispensa maiores explicações. Como a linguagem simbólica da Bíblia, o movimento das galáxias também seria simbólico. Ou imaginemos que seja construído um supercomputador capaz de decifrar todos os mistérios do cosmos e que ele seja alimentado com tudo que se sabe e se especula sobre o Universo. No fim de alguns minutos perguntam ao computador se ele chegou a uma resposta. “Sim”, responde o computador.
E qual é? O computador hesita, depois diz:
– Vocês não entenderiam...

Duke


Mudança de rumo

Mudança de rumo
MERVAL PEREIRA - O GLOBO - 03/02/11
A onda de revolta que está abalando os países árabes está também colocando em discussão a complacência com que as maiores potências ocidentais lidam com os ditadores da região, a pretexto de prevenir a ascensão de governos radicais islâmicos. Nas ruas do Egito ou da Tunísia, ou da Jordânia, ou do Iêmen, os protestos encontram ressonância numa juventude que aparentemente nada tem de radical e se espelha nas democracias ocidentais, ajudada por uma rede de relacionamento social que não tem fronteiras no Facebook ou no Twitter.
Também começa a tomar corpo, nos meios políticos e intelectuais de países como a França, a ideia de que não há mais condições de aceitar apoiar governos que não levem em consideração os direitos humanos como valor universal.
O editorial do "Le Monde" de ontem, por exemplo, vai direto ao ponto: "É preciso chamar um ditador de ditador", é seu título, que reflete esse debate que se instala nos países responsáveis pela sustentação política de ditaduras como as de Mubarak no Egito.
Diz o jornal francês: "Por ter se recusado a apontar publicamente a natureza do regime tunisiano - uma cleptocracia brutal - a França pagará um preço na Tunísia do futuro. Por ter sustentado o regime de Hosni Mubarak, os Estados Unidos estarão na defensiva no Egito de amanhã".
Os jornais estampam, cheios de culpa, as mansões que a família Ben All tem na França, em especial o "hotel particulier" no 16° distrito, ou a da família Mubarak em flandres, como já o fizeram com vários outros ditadores nos últimos anos, provas da leniência com que têm sido tratados nos últimos anos pelos governos europeus e dos Estados Unidos.
Há uma especulação de que o presidente americano Barack Obama poderá aproveitar a ocasião para reafirmar a política de direitos humanos que foi implantada pelo ex-presidente democrata Jimmy Carter, retirando dos republicanos radicais a bandeira de criticar a relação do governo com ditaduras árabes ou a China.
O novo governo brasileiro, por seu turno, está assumindo uma posição de acordo com essa tendência Internacional, que deve se aprofundar dependendo do desfecho da revolta popular no Egito.
A proposta oficial brasileira para que a ONU passasse a tratar os países que violam os direitos humanos com mais condescendência, evitando críticas públicas aos regimes autoritários, não foi levada em consideração por aquele organismo internacional e, pelo visto, será abandonada pela nova gestão do Itamaraty, embora o chanceler Antonio Patriota, como secretário-geral da antiga administração, não possa ignorar a iniciativa.
Ele mesmo, no Fórum Económico de Davos, questionado sobre o fato de que o governo brasileiro nunca havia levantado questões sobre a transgressão dos direitos humanos em países "amigos" como Cuba ou Venezuela, alegou que em alguns momentos agir nos bastidores é mais efetivo, a mesma justificativa da gestão de Celso Amorim.
Mas, como a demonstrar que alguma coisa mudara, Patriota ressaltou que, quando for necessário, o Brasil não se negará a reagir de público contra a transgressão aos princípios democráticos em qualquer país.
A própria presidente Dilma Rousself afirmou recentemente que não terá nenhum problema em criticar Cuba em caso de violação dos direitos humanos, que ela considera um ponto inegociável para seu governo. Ao usar, e permitir que o governo use, seu exemplo pessoal de ex-torturada para garantir que não transigirá nessa matéria, a presidente Dilma Rousself está se empenhando pessoalmente nessa diretriz de nossa política externa.
Precisa ainda comprovar suas palavras com ações em relação a Cuba e a Venezuela, mas em relação ao Irã ela já deu provas de que não se deixará levar pelos interesses puramente políticos na questão dos direitos humanos.
A aproximação com o governo de Barack Obama, que visitará o país em março, também demonstra uma mudança de ventos no Itamaraty.
Muito mais que decisões pragmáticas, se abster em votações contra Cuba com relação à violação dos direitos humanos ou mesmo votar contra uma condenação do governo do Sudão sobre Darfur, onde um conflito étnico matou mais de 200 mil pessoas, fazia parte de uma política de Estado que o governo Lula vinha adotando, mudando um padrão de votação no Conselho de Direitos Humanos da ONU, seguindo geralmente interesses geopolíticos e comerciais.
O respeito aos direitos humanos como condição preliminar para o diálogo entre as nações é consensual entre intelectuais e acadêmicos de várias partes do mundo, e prevalece a tese de que eles não podem ser entendidos como instrumentos de dominação ocidental, como muitos governos, como o da China e vários países árabes, tentam caracterizá-los.
A Identidade coletiva é uma característica do mundo atual, e o sociólogo Renato Janine Ribeiro chama a atenção para o fato de que a necessidade de pertencimento a um grupo está muito presente hoje, e, mais do que significar uma escolha individual, significa que a identidade coletiva precede toda forma de liberdade.
Em vez do cartesiano "penso, logo existo", a definição seria "nós somos, logo eu sou". Ou "eu pertenço a esse determinado grupo porque livremente o escolhi".
Seria esse o renovado conceito de relações sociais trazido pelos novos meios de comunicação que viabilizou as manifestações em diversos países do mundo árabe, o que caracterizaria a origem espontânea, fora dos partidos políticos tradicionais, das revoltas da Tunísia e do Egito.
O difícil é Identificar neste momento se esse movimento espontâneo terá força política suficiente para levar adiante a mudança, e se dele surgirá um líder que possa negociar com as demais forças políticas.
Ou se os movimentos políticos mais organizados se aproveitarão do momento para assumir o vácuo de poder que uma eventual saída de Mubarak deixará. Por isso, os países europeus, e principalmente os Estados Unidos, querem controlar uma translação política, para ter garantias de que a substituição não mudará os rumos do Egito no Oriente Médio.

Iguais a nós


Iguais a nós
Demétrio Magnoli - O Estado de S. Paulo - 03/02/11
Existe um mundo árabe? "Revolução, revolução, como um vulcão, contra Mubarak, o covarde", cantavam os manifestantes de Alexandria, há uma semana. Da Tunísia ao Egito, uma tempestade de areia deu a resposta à indagação. Em 17 de dezembro, na cidade tunisiana de Sidi Bouzid, o vendedor de rua Mohamed Bouazizi imolou-se em fogo para protestar contra o confisco de seu carrinho de vegetais. O martírio de Bouazizi deflagrou um levante popular que, quase um mês depois, arrancou os dentes da polícia e do exército, provocando a fuga do ditador Zine Ben Ali. Dias mais tarde, jovens dançavam diante dos tanques nas cidades egípcias, enquanto Hillary Clinton lamentava a garantia que dera na véspera, ao proclamar a "estabilidade" do regime de Hosni Mubarak.
Poucas coisas são mais poderosas que a experiência histórica compartilhada. Em 1989, a abertura da fronteira entre Hungria e Áustria, em maio, prenunciou a queda do Muro de Berlim, em novembro, e a extinção do "socialismo real". A derrubada de Ben Ali exerce, entre os povos árabes, uma influência similar à da remoção das barreiras húngaras de arame farpado na esfera de poder soviético. O mundo árabe ergue-se sobre uma língua e uma literatura comuns, uma tradição que atravessa fronteiras. Bouazizi não é um nome, mas uma experiência, para os cidadãos de Túnis, do Cairo, de Argel, de Aman, de Sanaa, de Cartum e até de Riad.
Abusa-se do conceito de cultura. Mundo árabe, na visão de Bernard Lewis, é uma coleção de valores arraigados, que derivam do Islã e conflitam com a tradição ocidental. O "príncipe dos orientalistas" enxergou um defeito irremediável na cultura árabe-muçulmana: uma resistência visceral à mudança, que condenaria os árabes à exclusão da modernidade. "A doutrina ocidental do direito de resistir a um mau governo é estranha ao pensamento islâmico", assegurou Lewis no estilo categórico que lhe granjeou uma reputação imerecida. Hoje, na larga faixa que se estende da África do Norte ao Oriente Médio, árabes muçulmanos exigem liberdade, democracia, direitos, respeito à coisa pública. "Eles" são, no fim das contas, iguais a "nós".
Lewis é um intelectual engajado, o inventor da noção de "choque de civilizações" e o inspirador da ocupação americana do Iraque. Do seu teorema principal ele extraiu o corolário de que os árabes só poderiam ser resgatados para a modernidade pela negação de sua própria cultura. O significado político disso é que o Ocidente teria a missão de libertar os árabes das amarras do "pensamento islâmico", conduzindo-os - pela força, se preciso - até a colina das Luzes. Sob o influxo de tais ideias, os EUA continuaram a sustentar as ditaduras pró-ocidentais no mundo árabe, que se apresentam como paliçadas defensivas contra o avanço do fundamentalismo islâmico. A revolução em curso é uma evidência de que Lewis está errado: nas ruas do Cairo reivindica-se a liberdade, não o retorno do Profeta.
A revolução árabe desenvolve-se nas brechas abertas por um cenário mundial em mutação. Ben Ali caiu não só porque os "de baixo" se insurgiram, mas também porque os "de cima" se cindiram quando ficou patente que a França se esquivava de salvar seu regime. Há menos de dois anos, na Universidade do Cairo, Barack Obama delineou uma nova política dos EUA para o mundo árabe-muçulmano. O presidente rejeitou os dogmas do orientalismo, apontou as contribuições da civilização islâmica para a Renascença e as Luzes, tocou cuidadosamente nas teclas da liberdade e da democracia. O discurso de Obama pode ter sido esquecido no Ocidente, mas continua a reverberar no Egito, tanto entre os "de cima" quanto entre os "de baixo".
O Egito é o núcleo do mundo árabe. A primeira, frustrada, revolução árabe começou lá, mais de meio século atrás, com a ascensão de Gamal Abdel Nasser. No Cairo, de uma costela da Irmandade Muçulmana surgiram os arautos originais do jihadismo de Osama bin Laden. A estratégia geral dos EUA para o Grande Oriente Médio foi definida pela decisão de Anuar Sadat de romper com Moscou para firmar uma aliança com Washington, após a segunda derrota militar ante Israel. Mubarak não é um ditador secundário, como Ben Ali, mas um dos pilares da ordem geopolítica regional. Há razões para Hillary Clinton insistir ainda numa transição controlada, sob a égide de um "diálogo nacional". Mas curvando-se a tais razões Obama renegará seu discurso do Cairo e posicionará os EUA no lado errado da história.
Nenhuma corrente islâmica está à frente da revolução árabe. Os levantes emanam da sociedade civil, especialmente das organizações de advogados e de estudantes e das centrais sindicais. A oportunidade para os fundamentalistas surgiria de uma violência repressiva prolongada. Na Tunísia, a dissolução acelerada da unidade do exército propiciou a queda de Ben Ali. Algo parecido está ocorrendo no Egito, desde o dia em que os chefes militares rejeitaram a ordem de matar seus compatriotas. A revolução árabe não obedece à cartilha de Osama bin Laden nem reproduz a trajetória da revolução iraniana de 1979.
Mohamed ElBaradei, um dos líderes da oposição egípcia, acertou duas vezes: ao clamar pela saída incondicional do ditador e ao firmar um pacto democrático com a Irmandade Muçulmana, uma corrente perseguida que renunciou ao terror há quatro décadas e condena sistematicamente a violência jihadista. "Obama precisa entender que se continuar com essa política perderá credibilidade diante de toda a população do Oriente Médio", alertou ElBaradei. Ele poderia reforçar seu argumento convidando o presidente americano a olhar atentamente para as imagens dos manifestantes que tomaram as cidades árabes. Aquelas pessoas não são diferentes dos poloneses, alemães orientais, checos e húngaros de 1989, nem dos iranianos de 2010. São iguais a nós - apenas falam e rezam em outra língua.
SOCIÓLOGO E DOUTOR EM GEOGRAFIA HUMANA PELA USP.

Skoob

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