A defensora pública Maria Cecília (à esq.), que pediu a prisão dos secretários de Saúde, e a pneumologista da UFRJ, Marina, que cuidou de Fabinho em seus últimos meses de vida. “Ele merecia uma vida mais digna”, diz a médica
terça-feira, setembro 14, 2010
R$ 520,00 por uma vida - Reportagem de Capa - Denúcia
R$ 520,00 por uma vida
A história absurda do menino de 14 anos que morreu porque as autoridades se recusaram – mesmo com ordem da Justiça – a fornecer um aparelho simples para ajudá-lo a respirar
Martha Mendonça, com Cristiane Segatto - Época
SAUDADE
Maria das Graças e Antônio na sala de casa coma foto de Fabinho. Eles sentem tristeza e revolta com a perda do filho
Eram 16h06 do dia 9 de agosto quando Fábio de Souza do Nascimento morreu de insuficiência respiratória. Ele viveu 14 anos, com os pais e a irmã mais velha, num condomínio popular de Jacarepaguá, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Gostava de pipa e videogame, de desenho animado e futebol. Torcia pelo Flamengo. Adorava churrasco e misto-quente. Sonhava em ser motorista de caminhão.
Um mês depois de sua morte, a pipa rosa que Fabinho gostava de empinar está presa na parede, na entrada da sala do sobrado humilde de seus pais. É o símbolo de uma vida interrompida, de um drama familiar – e também de um crime. Intimadas pela Justiça a fornecer a Fabinho um balão de oxigênio que poderia ter lhe salvado a vida, ao custo de R$ 520 por mês, autoridades dos governos federal, estadual e municipal discutiram, procrastinaram, ignoraram a determinação judicial até que fosse tarde demais.
O caso de Fabinho revela as falhas trágicas do sistema de saúde no Brasil, que pela lei deve garantir tratamento a qualquer cidadão, mas na prática tem de lidar com recursos escassos, que, em muitas ocasiões, levam ao descaso com as ordens judiciais. Submetido a um transplante de medula há quatro anos, ele desenvolveu uma doença pulmonar. Necessitava de um balão de oxigênio em casa. Seus pais conseguiram o equipamento na Justiça. Mas nunca o receberam. A União, o Estado e o município do Rio de Janeiro levaram seis meses empurrando a responsabilidade um para o outro. Aí ficou tarde demais.
Fabinho não teve uma vida fácil. A mãe – Maria das Graças Ferreira de Souza, mineira de Ponte Nova, uma dona de casa de 57 anos – e o pai – Antônio Serafim Nascimento, de 56, paraibano que faz bicos como pedreiro – se alternam ao contar sua história. De vez em quando param de falar para chorar. Outras vezes sorriem juntos com alguma lembrança. Com apenas 1 ano e 7 meses, o filho foi diagnosticado com câncer. Tinha linfomas pelo corpo e teve de passar por vários tratamentos. Até que aos 10 anos passou por um transplante de medula, no Instituto Nacional de Câncer (Inca). A irmã, Fiama, três anos mais velha, foi a doadora. A cirurgia, bem-sucedida, parecia ser o início de uma nova vida para ele.
Não foi.
Perto do Natal de 2006, quando Fabinho parecia ter pela primeira vez uma rotina normal de criança, começou a ter tosse constante e dificuldade de respiração. O diagnóstico: doença do enxerto contra-hospedeiro, uma reação do organismo às células recebidas no transplante. Ela pode atingir vários órgãos. No caso de Fabinho, foi o pulmão. Após alguns períodos de tratamento no Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, da UFRJ, os médicos recomendaram que ele tivesse em casa um aparelho concentrador de oxigênio. “Era uma forma de dar dignidade a sua vida e protegê-lo de crises respiratórias mais graves e fatais”, diz a pneumologista Marina Andrade Lima, que o atendeu nos últimos meses de vida e fez o laudo médico para a Justiça. Com o aparelho, as crises de Fabinho poderiam ser controladas, e, na avaliação dos médicos, ele tinha grandes chances de viver muitos anos.
Maria das Graças e Antônio procuraram a Defensoria Pública da União no Rio de Janeiro para entrar com uma ação. A Justiça lhes deu ganho de causa em dois dias: a União, o Estado ou o município do Rio deveriam fornecer o equipamento – imediatamente. Dois meses depois, em abril, a Defensoria telefonou para os pais de Fabinho. O aparelho não chegara. A União se defendia na Justiça dizendo que o Sistema Único de Saúde (SUS) descentraliza esse tipo de demanda, e quem devia pagar o aparelho era o Estado ou o município. O Estado apresentara decisões judiciais anteriores que dirigem ao município a atribuição. O município alegava que, por se tratar de um fornecimento de “alto custo” e “média complexidade”, era de responsabilidade estadual (leia o quadro abaixo) . Um aparelho desse tipo custa R$ 3.800. Ele requer um cilindro de alumínio, que custa R$ 50. É no cilindro que fica a carga de oxigênio, que deve ser renovada todo mês, a um custo de R$ 40. O Poder Público em geral não compra aparelhos, aluga-os. O preço, nesse caso, seria de R$ 520 por mês.
A Defensoria recorreu, pedindo o sequestro da verba necessária ao aluguel do equipamento e a prisão dos secretários que não cumpriram a ordem da Justiça. Dado o jogo de empurra entre as autoridades, o juiz da 10ª Vara da Justiça Federal, Fábio Tenenblat, decidiu que o município deveria dar o aparelho a Fabinho em 48 horas. Três meses depois, em agosto, Fabinho ainda não tinha o equipamento. E estava mais debilitado. Tinha falta de ar e cansaço. O nebulizador ficava ligado quase ininterruptamente, mas já não funcionava como paliativo. Antônio levou o filho ao Inca para receber oxigênio. Precisou carregá-lo nas costas, da Central do Brasil, onde o ônibus vindo de Jacarepaguá os deixou, até a Praça da Cruz Vermelha, onde fica o hospital – a 1 quilômetro e meio de distância.
No dia seguinte, a crise voltou, e Antônio foi de novo à Defensoria, revoltado. A advogada Maria Cecília Lessa da Rocha fez nova comunicação à Justiça no dia 5 de agosto, uma quinta-feira. No fim de semana seguinte, a família de Fabinho teve um Dia dos Pais ruim. Ele mal andava e estava sem fome. Algo raro, segundo a mãe. Mesmo nas crises, Fabinho sempre fora boa boca. A madrugada foi de terror, diz Maria das Graças. Às 4 horas, Fabinho tentou levantar-se e desmaiou. A mãe chamou uma ambulância, que chegou em meia hora. Ainda na porta de casa, o menino teve uma parada cardíaca. Foi reanimado, mas sua resistência havia caído muito. Morreu no meio da tarde, no Inca, de insuficiência respiratória.
APOIO
A defensora pública Maria Cecília (à esq.), que pediu a prisão dos secretários de Saúde, e a pneumologista da UFRJ, Marina, que cuidou de Fabinho em seus últimos meses de vida. “Ele merecia uma vida mais digna”, diz a médica
A defensora pública Maria Cecília (à esq.), que pediu a prisão dos secretários de Saúde, e a pneumologista da UFRJ, Marina, que cuidou de Fabinho em seus últimos meses de vida. “Ele merecia uma vida mais digna”, diz a médica
De acordo com o artigo 330 do Código Penal, a desobediência de ordem judicial é crime, com previsão de detenção de 15 dias a seis meses e multas. “O juiz determinou a tutela antecipada. O aparelho deveria ter sido fornecido imediatamente e o mérito julgado depois. Primeiro se atende, depois se discute”, diz o advogado sanitarista Tiago Farina. Também especializada em Direito Sanitário, a professora da Unicamp Lenir Santos afirma que o caso é de crime por omissão. “Se os médicos indicaram e a Justiça mandou, é uma obrigação dos entes públicos cumprir o que foi determinado.” O presidente do Sindicato dos Médicos do Rio de Janeiro, Jorge Darze, diz que, além de crime, houve uma clara violação do Estatuto da Criança e do Adolescente. “Os menores têm prioridade absoluta neste país, segundo o artigo 227 da Constituição. O que aconteceu foi uma demonstração de que o Poder Público se considera acima da lei e do direito”, afirma.
Em parte, essa situação decorre da falta de clareza sobre a responsabilidade da União, do Estado ou do município na saúde. O SUS descentralizou o atendimento, mas deixou muitas lacunas para casos como o de Fabinho. Só na Defensoria Pública do Rio de Janeiro há cerca de mil processos aguardando decisão sobre quem deve arcar com a demanda de saúde. Em quase todos os pedidos, as contestações têm texto praticamente idêntico, um forte indício de que “o simples descumprimento da ordem judicial está se tornando uma regra”, como diz o chefe da Defensoria, Ariosvaldo Costa Homem.
Procurados por ÉPOCA, o Ministério da Saúde e as secretarias estadual e municipal do Rio enviaram notas de esclarecimento. A Secretaria de Estado do Rio diz que a responsabilidade é do município, mas que, ainda assim, estavam abrindo licitação para a compra do aparelho – “porém, antes de sua conclusão, o paciente foi a óbito”. A Secretaria Municipal disse também ter aberto processo para a aquisição do equipamento e que uma empresa chegou a ser contratada – “no entanto, ao contatar a família, o paciente havia falecido”. Maria das Graças e Antônio dizem que jamais receberam telefonema de nenhuma das secretarias. Por causa desse caso, o juiz Tenenblat mudou os procedimentos na 10ª Vara Federal. Instaurou um esquema de monitoramento das ordens judiciais.
Professora de Direito Administrativo, a procuradora Raquel Carvalho avalia que o primeiro erro do caso de Fabinho foi o equipamento de que ele precisava não estar disponível no SUS – o que desafogaria a Justiça. Ela afirma que é preciso repensar a política pública de saúde. “Quem fica de fora recorre ao Judiciário, e isso desestrutura a política de saúde. A judicialização da saúde, cada vez maior, acaba impedindo essa abrangência.”
A maioria dos que recorrem à Justiça pede remédios modernos que não fazem parte das listas do SUS ou só estão disponíveis no exterior. Entre 2003 e 2009, o país teve cerca de 50 mil ações desse tipo, segundo o Ministério da Saúde. E elas estão ficando mais caras. Em 2008, o governo federal gastou R$ 47 milhões para cumprir 2.273 decisões judiciais. Em 2009, com menos casos (1.780), gastou quase o dobro: R$ 83 milhões. É um valor ainda pequeno em relação ao gasto total com a compra de medicamentos (em 2009, o Ministério da Saúde empregou R$ 6,4 bilhões, cerca de 12,5% do orçamento geral da pasta). Mas a tendência preocupa, porque entrega aos juízes decisões que deveriam estar na esfera dos médicos.
O cerne da questão é que a judicialização da saúde cria distorções. O tratamento de um único paciente pode custar milhares de reais por mês. O orçamento da Secretaria de Saúde é finito. Se o juiz obriga o secretário de Saúde a gastar muito dinheiro com um único paciente, o gestor deixa de cumprir outros programas para atender à ordem da Justiça. A tentativa de prolongar a vida de um paciente de câncer terminal pode comprometer a distribuição de remédios contra a hipertensão, que poderiam salvar centenas de pessoas. Em pequenos municípios do Nordeste, uma ordem judicial para a compra de um remédio importado contra o câncer costuma consumir o orçamento total destinado à saúde na cidade. Qual interesse deve ser respeitado: o da coletividade ou o do indivíduo?
Não há resposta fácil. No ano passado, o Supremo Tribunal Federal organizou três dias de audiências públicas e ouviu representantes do Ministério da Saúde, das secretarias estaduais, médicos e associações de pacientes para coletar informações que podem guiar os juízes em processos que cheguem à Suprema Corte.
Segundo o Ministério da Saúde, o Brasil vive uma “epidemia” de ações judiciais. Ela é sintoma de dois problemas. O primeiro: como a Constituição diz que saúde é dever do Estado, abre caminho para qualquer pedido: drogas caríssimas, experimentais, que só existem no exterior (e de eficácia duvidosa), fraldas (quando um dos sintomas da doença é diarreia), iogurtes (quando a dieta é recomendada pelo médico)... O segundo problema: a lista de medicamentos oferecidos no SUS não é atualizada há quase uma década. Nesse período, foram lançados muitos remédios de eficácia comprovada, úteis no tratamento do câncer e de outras doenças graves, mas eles não estão disponíveis no SUS. O Senado aprovou um projeto de lei que obriga o Ministério da Saúde a atualizar as tabelas de remédios e procedimentos do SUS pelo menos uma vez por ano. O projeto, apoiado pelo próprio ministério, está em tramitação na Câmara dos Deputados.
Fabinho, no entanto, não era um desses casos de dilema da Saúde. Seu tratamento era relativamente barato; ele era uma criança, que deve ter preferência na alocação de recursos. O descaso no cumprimento da ordem judicial, aí, é sintoma de um problema grave: a falta de clareza na política de saúde está levando a um comportamento cínico, desleixado, que custa vidas. “O que aconteceu com Fabinho dá desânimo a quem cuidou dele”, diz a pneumologista Marina Andrade Lessa. “Nosso trabalho é refém do poder público.”
É um desvio do sistema que as decisões vitais para pacientes como Fabinho dependam de ações, recursos e burocracia. Elas devem ser tomadas por quem tem contato com as pessoas. “Fabinho tinha os olhos mais lindos do mundo”, diz Marina. A assistente social do Inca, Claudia Leivos, lembra-se dos últimos meses em que conviveu com Fabinho. “Ele estava orgulhoso porque foi escolhido como capa de uma cartilha nossa.” O desenho de Fabinho estampa a cartilha dos direitos dos pacientes de câncer do Inca – uma escolha que hoje soa irônica. “Ele dizia que agora era artista e que distribuiria autógrafos pelo hospital. Mas a última vez que o vi parecia muito cansado”, afirma Claudia.
“Fabinho era feliz”, diz a mãe, apesar da rotina de hospitais e remédios. Quando estava em casa, brincava com os vizinhos, andava de bicicleta, chegou a jogar bola com o cateter no peito. Apegava-se a todo mundo. No sobrado de Jacarepaguá, Maria das Graças procura o que fazer. “Eu vivi em torno dele. Agora ando pela casa sem função. Ele era minha vida.” O pai chora, conta algumas travessuras e repete sempre, com seu sotaque nordestino: “Ele era demais”.
Os problemas de saúde não deixaram Fabinho estudar direito. Aprendeu mais em casa, e com professoras que iam aos hospitais. Tinha uma curiosidade espontânea. Gostava de consertar eletrodomésticos, e às vezes conseguia, segundo o pai. Também colecionava fotografias e informações sobre ônibus e caminhões. No computador da irmã, fez um arquivo sobre como dirigi-los.
No último aniversário, entre o Natal e o Ano-Novo passados, os pais lhe fizeram uma festa surpresa. “A gente se virava para dar uma festinha, os vizinhos ajudavam, porque ele merecia, por passar por tanta coisa”, diz Maria das Graças. Seus 14 anos foram cercados dos amigos e parentes mais próximos e amigos da vizinhança. Depois do bolo e das fotografias em que sempre saía fazendo caretas, jogou videogame com os meninos da rua.
No condomínio Cesar Maia, com suas quadras numeradas e ruas batizadas com letras, o menino da casa 37 da Rua F suscitava um misto de pena e admiração. Sua luta pela vida fazia dele uma espécie de herói e símbolo de superação. Cada vez que ele sumia, para tratamentos, surgia uma incerteza sobre sua volta. “Era uma felicidade vê-lo de novo brincando na rua depois de um sumiço. Ele dava esperança para a vida da gente”, diz a vizinha da casa 69, a dona de casa Rosemary Gonçalo da Silva. No mês passado, Fabinho deixou a todos preocupados quando desapareceu numa ambulância de manhãzinha. E, desta vez, não voltou.
Fabinho era um adolescente típico de muitas maneiras – a paixão por música e jogos eletrônicos. A irmã, Fiama, diz que fica com saudades do irmão quando vê novelas. “Ele adorava e sabia todas as músicas. Tinha uma memória incrível.” Também sonhava em ter um quarto só para ele, já que, desde pequeno, dormia com os pais. Mas Fabinho era bem diferente em outros aspectos. Tantos tratamentos e remédios frearam seu desenvolvimento. Tinha 14 anos, mas corpo de 10. Na vizinhança, muitos garotos que eram seus amigos quando mais novos passaram a rejeitá-lo. Nos últimos anos, ia menos à rua. “Ele me contou que alguns estavam chamando ele de esquisito”, diz a mãe. Dos que continuaram fiéis, se destaca Iúri da Silva, de 12 anos. Os dois viviam um na casa do outro. Com a piora na saúde de Fabinho, Iúri passava horas na casa 37, para longas maratonas de videogame e brincadeiras com carrinhos de ferro.
Já no fim, as alegrias de Fabinho foram escasseando. Andava poucos metros e já ficava cansado ou começava a tossir. Passou a ir à pracinha apenas para ficar sentado nos bancos vendo as outras crianças brincar. Depois, nem isso. Tinha de recorrer à nebulização e muitos copos d’água para conter a tosse. Adeus bicicleta, futebol e pique na rua. “Ele passou por quase tudo sem reclamar. Mas na semana que morreu me disse que estava cansado demais. Ele tinha crises de tosse tão fortes que ficava com a boca e as unhas roxas”, diz a mãe. De tudo, Maria das Graças tem apenas um arrependimento: não ter deixado Fabinho tomar banho de chuva. Ele sempre quis, mas ela, preocupada com sua saúde, proibia. “Agora fico imaginando meu filho correndo na chuva, molhado e feliz.”
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