domingo, abril 18, 2010

Escrever como arte.

Laços - Manoel Carlos
Eu ainda me surpreendo com alguns livros. Às vezes, vadiando pelas livrarias, um título atrai minha atenção. E, ainda que ignore o conteúdo do livro e jamais tenha ouvido falar no nome do autor, o título, por si só, retém meu interesse. Quando isso acontece, pego o volume, folheio, leio as orelhas, vejo quem traduziu, se o original não for brasileiro nem português, quem prefaciou. São informações básicas para avaliar — precariamente, claro — se o livro me interessa. Se convém investir nele o dinheiro cobrado e, principalmente, o tempo necessário para a sua leitura. Já acertei muitas vezes e errei outras tantas.
Eu me lembro do deslumbramento que me assaltou quando descobri, por exemplo, Laços (Knots, no original), do psiquiatra britânico R.D. Laing. Foi há mais de quarenta anos. Eu já ouvira — vagamente — o nome do autor, mas aquele livrinho de menos de 100 páginas, apresentado como “psicanálise em versos”, caiu nas minhas mãos e nas mãos de grande parte da minha geração, como um precioso esforço de nos revelar a grandeza e a pequeneza humana. Na época, muita gente sabia de cor o primeiro dos poemas de Laços, inclusive eu. Leiam os versos, na tradução de Mário Pontes:
Eles estão jogando o jogo deles.
Eles estão jogando de não jogar um jogo.
Se eu lhes mostrar que os vejo tal qual eles estão,
quebrarei as regras do seu jogo
e receberei a sua punição.
O que eu devo, pois, é jogar o jogo deles,
o jogo de não ver o jogo que eles jogam.
Conheci pessoas que recitavam esse pequeno poema nas festas a que compareciam. Todos amavam essas palavras, pediam cópias e informações sobre o livro e sobre Laing, ainda que muitas vezes não entendessem o significado do poema. O que acontecia — e ainda acontece — é que o seu último verso contém uma carga de sedução que atrai a atenção, em qualquer língua, pelo seu ritmo. Os meus possíveis leitores ficarão, certamente, com essa música em seus ouvidos: “O jogo de não ver o jogo que eles jogam”. 
Nunca mais bati os olhos nesse livro, em minhas andanças pelas livrarias. Parece-me também — li isso em algum lugar — que Laing saiu de moda. E ao morrer, em 1989, aos 61 anos, já era contestado e posto num certo ostracismo, mas acre-dito que tenha sido mais pela coragem das teses que defendeu vida afora. Ousar, sabemos, tem um preço. E um preço alto.
Vinte anos depois, li do mesmo autor uma longa entrevista que ele deu à psicóloga Roberta Russell, que resultou no livro Lições de Amor, igualmente interessante e inovador e que tem uma dedicatória também atraente: “Dedicado aos corajosos que estão dispostos a destinar seu nível mais refinado de atenção e inteligência à aventura de amar outro ser humano”.
O que me levou a fazer esta crônica foi ter encontrado, aqui em casa, entre os meus livros, espremido entre dois volumosos títulos, essa publicação magrinha, numa brochura modesta. E, ao fazer uma nova leitura, senti todo aquele encantamento da descoberta voltar também, trazendo-me amigos que já morreram, uma época que já não ecoa, em que a informática dava seus primeiros passos e a internet — tal como a conhecemos hoje — não existia. É, na verdade, uma crônica de saudade.
O título do livro que atraiu tanto minha atenção, tantos anos atrás, segundo o doutor Laing, poderia também se chamar laçadas, nós, labirintos, impasses, disjunções, redemoinhos, ligaduras.
Ou Laços, como acabou ficando.
Publicado na Veja Rio – 21/04/2010

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