quinta-feira, maio 06, 2010

O cartão que virou cartolina

O cartão que virou cartolina
O projeto do governo federal para criar o cartão eletrônico do SUS consumiu R$ 418,6 milhões sem produzir benefícios para os pacientes
Marcelo Rocha e Murilo Ramos com Naiara Lemos
Um programa lançado há dez anos pelo governo federal prometia modernizar o atendimento da rede pública de saúde, reduzir filas em hospitais e facilitar o planejamento do setor. Uma das principais inovações do programa seria a criação de um cartão magnético nacional para os usuários do Sistema Único de Saúde (SUS). O cartão daria acesso em tempo real a informações sobre o atendimento prestado a cada paciente desde o nascimento. Teria registros de consultas, exames e da medicação prescrita durante toda a vida. Ambiciosa para seu tempo, a ideia se mostrou cara e inviável diante de obstáculos impostos por diferenças regionais, suspeitas de fraudes em licitações e resistência dos profissionais da saúde. O que deveria melhorar a vida dos brasileiros se transformou em um caso explícito de desperdício do dinheiro público.  Entre 2000 e 2009, o projeto consumiu R$ 418,6 milhões. Os primeiros gastos para a implantação do cartão magnético começaram em 2000, no governo Fernando Henrique Cardoso, quando o ministro da Saúde era José Serra, hoje candidato do PSDB à Presidência da República. E foi mantido por todos os ministros que lhe sucederam, nos governos FHC e Lula, até o atual, José Temporão. No coração do programa, o Ministério da Saúde selecionou 44 cidades em 11 Estados, 31 delas no Paraná, para participar do projeto piloto. Empresas foram contratadas para desenvolver e colocar o sistema em funcionamento, emitir cartões magnéticos, treinar funcionários e fornecer terminais de atendimento, chamados de TAS. O atendimento era estimado em 13 milhões de usuários na primeira fase.  Uma das intenções dos gestores federais era montar um cadastro nacional dos usuários do SUS, um gigantesco banco de dados com o perfil da saúde de quase toda a população brasileira. Serviria também como uma câmara de compensação financeira para que os repasses de dinheiro fossem feitos para os municípios de acordo com os atendimentos, e não proporcionalmente ao número de habitantes, como é hoje. A partir de 2001, o ministério distribuiu 10 mil terminais de atendimento e contratou serviços para o treinamento de 13 mil funcionários públicos.  A capital de Mato Grosso do Sul, Campo Grande, foi uma das cidades escolhidas para o projeto piloto. A prefeitura da cidade desenvolvia, havia sete anos, um cadastro único dos usuários do SUS, e o governo federal resolveu aproveitar a experiência. Em setembro de 2002, Campo Grande recebeu do Ministério da Saúde uma remessa de 500 mil cartões magnéticos e 200 terminais de atendimento. Passados oito anos, os terminais estão estocados numa sala da Secretaria de Saúde da prefeitura. Não se sabe quantos usuários da cidade ainda mantêm os cartões. Os documentos ainda existentes, embora eletrônicos, têm a mesma função de um cartão de papel, pois não há equipamentos que façam a leitura.  Situações semelhantes se repetem nas outras cidades onde o sistema foi testado. Hoje, os 10 mil terminais entregues pelo ministério viraram sucata. A defasagem tecnológica impede o aproveitamento futuro dos equipamentos. O treinamento realizado com 13 mil funcionários públicos se perdeu, e o governo federal não consegue sequer calcular quantos cartões foram emitidos. Todo o investimento feito no programa teve como único resultado um banco de dados com nomes de usuários recolhidos dos arquivos do PIS-Pasep da Caixa Econômica Federal e informações enviadas pelas secretarias de Saúde estaduais e municipais.  O programa do Ministério da Saúde teve problemas desde o início da tentativa de implantação. Uma licitação internacional escolheu as empresas Hypercom e Procomp para desenvolver o sistema e fornecer os equipamentos. Suspeitas de direcionamento da concorrência chegaram ao Ministério Público Federal, a partir de denúncia enviada em maio de 2001 pelo gabinete do então ministro José Serra. O MPF acionou os procuradores que atuam no Tribunal de Contas da União (TCU). O TCU não abriu uma investigação, com a justificativa de que era preciso resolver antes um processo judicial em que um dos consórcios derrotados na licitação questionava o processo. A pendência tramita até hoje nos tribunais. Em todo esse tempo, o ministério continuou a fazer repasses financeiros para o programa.  À medida que o sistema era implantado, começaram a surgir outros entraves. As empresas deveriam desenvolver programas de computador para interligar as diversas unidades espalhadas pelas cidades do projeto piloto. Esse trabalho não foi realizado como deveria. De acordo com o Ministério da Saúde, os problemas decorreram principalmente de questões de infraestrutura, como deficiências de redes elétricas e de transmissão de dados. ÉPOCA teve acesso a uma apresentação em PowerPoint do Ministério da Saúde, feita em janeiro deste ano, com outras razões do fracasso. De acordo com o documento, a expansão do serviço não foi planejada, a emissão de cartões centralizada pelo ministério não funcionou e houve incapacidade de integração das unidades do sistema.  “Os terminais foram um presente de grego”, diz Sônia Maria Machado, da gerência de tecnologia da informação da Secretaria de Saúde de Santa Catarina. Segundo Sônia, houve uma tentativa de devolver os TAS enviados para Florianópolis, uma das cidades do projeto piloto, mas o ministério não os recebeu de volta.  Uma auditoria realizada pelo TCU descreve que o sistema do cartão do SUS “se transformou apenas num cadastro de usuários e seus domicílios”. O banco de dados não garante ao cidadão o registro de todas as informações do atendimento que lhe é prestado na rede de saúde. O TCU conclui que houve desperdício de recursos públicos. Os auditores da Controladoria-Geral da União também realizaram inspeções no Departamento de Informática do Ministério da Saúde, o Datasus, e identificaram problemas semelhantes.
O Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) produziu no ano passado um diagnóstico sobre o cartão do SUS. Segundo o documento, houve resistências dos profissionais da saúde, principalmente dos médicos, que reclamaram de dificuldades na operação dos equipamentos e do aumento de trabalho em decorrência da necessidade de lançar dados em dois sistemas, o antigo e o novo. “As características locais e a falta de tecnologia mais avançada travaram o processo”, diz a coordenadora do cartão do SUS da Secretaria de Saúde de Campo Grande, Luzia Alencar, que participou de reuniões no ministério que definiram o projeto piloto. “O ponto positivo do projeto é a criação do banco de dados único”, afirma Luzia.  O resultado da má gestão do programa pode ser observado em locais muito próximos ao Ministério da Saúde. ÉPOCA esteve no Hospital Regional da Asa Norte, em Brasília, distante apenas 1 quilômetro da Esplanada. Os usuários carregam um cartão impresso em cartolina que traz nome, data de nascimento e o número de inscrição do SUS. “Um dia, mostrei no ambulatório e disseram que estava vencido e tinha de renovar”, disse a recepcionista Selma Alves Garcia, de 50 anos. Selma providenciou no mês passado um novo cartão, idêntico ao que portava desde 2004, também de cartolina.  Somente em 2006, quando os gastos com o cartão atingiam as cifras dos R$ 300 milhões, o governo federal percebeu que era preciso mudar. Passou-se, então, a incentivar a criação pelas prefeituras e pelos Estados de cadastros descentralizados. Mas são sistemas isolados, que não se comunicam. A cidade de São Paulo não participou do projeto piloto, mas desenvolveu base de dados própria, onde é possível identificar o histórico de atendimentos dos pacientes e saber se eles participam de programas assistenciais da prefeitura. A secretaria segue a numeração do SUS fornecida pelo Ministério da Saúde, mas o paulistano não tem acesso a suas informações se busca atendimento em outro Estado. Existem, segundo a Secretaria de Saúde, 19 milhões de pessoas cadastradas em São Paulo.  Procurado por ÉPOCA, o ministério informou que, a partir de um diagnóstico, o programa do cartão do SUS foi “redimensionado”. Uma das medidas tomadas, diz o ministério, foi a suspensão do pagamento às empresas da última parcela do contrato, no valor de R$ 10 milhões, porque não houve “aceitação final do produto contratado”. O ministério diz que o objetivo agora é construir um banco nacional, com informações sobre o histórico clínico dos pacientes, que permita a integração de bases já existentes em Estados e municípios e possa ser acessado pelos profissionais de saúde e usuários do SUS em tempo real em qualquer parte do país. Ou seja, praticamente igual à ideia original. Com essa nova filosofia, o governo continuou a liberação de recursos. Recentemente, o Ministério da Saúde firmou convênio de R$ 25 milhões com a prefeitura de Belo Horizonte para serem investidos em sistemas vinculados ao cartão do SUS.   Apesar das alegações do Ministério da Saúde de que providências foram tomadas para corrigir o programa, há ceticismo entre os profissionais em relação ao êxito das medidas. “O problema é que o governo está no fim, e não saberemos se uma solução será encontrada até lá”, afirma o presidente do Conselho Nacional de Saúde, Francisco Batista Júnior. “A situação torna-se ainda mais grave porque muito dinheiro já foi investido no cartão do SUS sem que o retorno tenha sido alcançado.” Batista diz que, para piorar, ninguém foi punido pela má aplicação dos R$ 418,6 milhões.  O cartão do SUS é um projeto ousado, que começou no governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e foi mantido no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mas ainda não ficou de pé. Agora, às vésperas de uma nova mudança no comando do país, o Ministério da Saúde anuncia um novo sistema, que aparentemente não será concluído até o fim do ano. A primeira tentativa de implantação do cartão do SUS não deu certo. Espera-se que essa nova tentativa seja mais bem-sucedida.
Selma Garcia, em frente a um hospital em Brasília. O cartão do SUS deveria ser magnético, mas é de papel 
Deu em nada
O projeto de Cartão Nacional do SUS consumiu R$ 418,6 milhões, mas não vingou
O QUE ERA PARA SER
Um cartão magnético com dados do usuário, facilitando a identificação do cliente, a marcação de consultas e exames. As informações ficariam num grande banco de dados
O QUE VIROU
Um grande cadastro de nomes e endereços com 171 milhões de registros, mas nenhuma funcionalidade. Em alguns lugares, como Brasília, o cartão usado pelo SUS é uma fichinha de papel

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