terça-feira, setembro 21, 2010

Filtros especiais

Filtros especiais
O Globo
Na arquitetura do regime republicano, a independência do Poder Judiciário é uma viga mestra. O magistrado tem de estar imune a qualquer pressão e não se deixar influenciar, a não ser pela letra da lei. Mas há sempre margem para interpretações, mesmo com base técnica, serem divergentes. O exemplo do momento é a Lei Ficha Limpa, aprovada pelo Congresso num processo histórico iniciado por ampla mobilização na sociedade, lastro de um projeto de origem popular— nos termos previstos pela Constituição —, subscrito por milhões de eleitores. Diante de grande ceticismo, o projeto tramitou e foi aprovado com alterações que não o deformaram.
 Pelo contrário, aperfeiçoaram-no. E há grande discussão jurídica em torno da lei.
Mesmo à espera de um veredicto final, a ser dado pelo Supremo Tribunal Federal provavelmente nesta quarta-feira, a Ficha Limpa, aceita pelo Tribunal Superior Eleitoral, tem sido aplicada, como deve ser, pelos tribunais regionais. O noticiário sobre figuras carimbadas do mundo da corrupção na política, cujo pedido de registro de candidatura tem sido negado, injetou na opinião pública um ânimo inédito nos últimos tempos. As seções de cartas dos jornais refletem a esperança que se passou a ter de uma efetiva faxina ética na vida pública. Pelo menos seu início, pois não será apenas a Ficha Limpa que dedetizará de vez a política.
Enquanto houver partidos nanicos de aluguel, por exemplo, ainda restará trabalho a fazer neste saneamento. É antiga a ideia, sensata, de se barrar a entrada de donos de fichas criminais na política, sem a exigência de pena transitada em julgado — ou seja, confirmada em último recurso. O preceito, na prática, dada a proverbial lentidão da Justiça brasileira, significava — ou significa, a depender do julgamento do STF —, reforçar uma das mazelas da nossa sociedade: a impunidade. Como essas pessoas têm caixa para contratar advogados competentes, o recurso de chicanas protelatórias as coloca a salvo de qualquer condenação definitiva, até a prescrição do crime de que são acusadas.
Daí a primeira versão da Ficha Limpa ter estabelecido como critério para a negação de pedido de registro de candidatura qualquer condenação, mesmo em primeira instância.
Nas negociações no Congresso, mudou-se a regra para condenação em colegiado de juízes, em segunda instância. Foi um aperfeiçoamento.
Incluem-se no rol de delitos passíveis de justificar a rejeição de candidatura os cometidos na administração pública, julgados por tribunais de contas. Nada mais justo. A lei passou no primeiro grande teste, no TSE: por não estabelecer alteração efetiva na legislação eleitoral — a nova lei apenas revê critério de aplicação desta legislação —, a maioria dos ministros da Corte concordou com que a Ficha Limpa vigorasse na eleição deste ano.
Outro ponto de controvérsia é se a Ficha Limpa contrariaria o preceito da não retroatividade da pena. Aqui também a Justiça eleitoral aceitou outro bom argumento, o de que o impedimento de candidatos não é uma pena, mas a aplicação de um critério de avaliação.
Estas são questões que estarão em julgamento pelo STF, do qual se espera a mesma clarividência demonstrada pelo TSE. Afinal, como está na própria Constituição, a vida pública requer predicados especiais, e por isso, conclui-se, deve ter também filtros próprios.
Até para se evitar a esdrúxula situação de que o fichado e condenado não pode ser funcionário público, mas tem condições de ir para o plenário de qualquer Casa Legislativa e ocupar gabinetes do Poder Executivo.

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