quinta-feira, janeiro 06, 2011

(In)feliz ano novo

(In)feliz ano novo
Francisco Bosco – O Globo
Neste réveillon, em meio à confraternização generalizada, à rara abertura que se coloca entre amigos e até desconhecidos, em meio à euforia também generalizada, através da qual aqui e ali se percebe um ricto revelador, em meio a tanta festa vi alguns casais brigarem, e brigarem feio. Nada de surpreendente: o réveillon é o momento mais perigoso do ano na vida de um casal. Vou tentar compreender aqui por que os casais estão especialmente propensos a se desamar na noite do 31 de dezembro.
O réveillon é um evento cósmico: aniversaria a Terra.
E, com a renovação da Terra, com o recomeço de suas estações, aniversariamos também nós, humanos, para quem tudo recomeça uma vez mais. O réveillon é o aniversário da Humanidade inteira, independente de credo, cor e classe social. Daí a confraternização irrestrita que se instaura: nessa noite, todos são irmãos, é um evento comum da Humanidade o que se comemora. Simbolicamente, trata-se, portanto de um renascimento. Esse sentido de renascimento, entretanto, quando misturado a outros ingredientes, típicos do tempo em que vivemos, forma com esses um coquetel explosivo.
É sabido que, hoje, um imperativo cultural implacável ordena que todos devem gozar.
Gozar sem parar, quanto mais melhor. Promove-se a sensação difusa de que todos estão gozando loucamente — menos nós. E então temos que nos esforçar para gozar à altura do suposto gozo dos outros. Essa situação produz uma inversão paradoxal no campo da culpa: não nos culpamos mais apenas por realizar ou desejarmos realizar algo que entra em conflito com os ideais culturais, mas também, e talvez, sobretudo, por não realizarmos os imperativos de gozo do ideal cultural.
Somos culpados por não gozar. Essa mudança radical corresponde às transformações do capitalismo. Na sociedade de consumo, gozar é uma condição capital do capitalismo.
Gozar perdeu em grande parte seu poder subversivo e virou uma engrenagem fundamental para a manutenção do status quo. Assim, como sintetiza Maria Rita Kehl, em seu livro “O tempo e o cão: a atualidade das depressões”, esse “imperativo do gozo se articula aos ideais de eficácia econômica.
Tal articulação subverteu os ideais de renúncia pulsional que oprimiam os contemporâneos de Freud, convocados a sacrificar suas modestas possibilidades de prazer em favor da produtividade, no período de consolidação do capitalismo industrial”.
Pois esse imperativo de gozo é um dos ingredientes do coquetel molotov que está prestes a explodir no réveillon.
Acrescente-se que a exigência de gozar é também a exigência de determinadas formas de gozo, correspondentes aos ideais do capitalismo de consumo. Aqui, pelo menos sob certos aspectos, o casamento aparece como uma forma anacrônica, um obstáculo aos modos de gozar do ideal cultural. O capitalismo de consumo requer substituição, acumulação, novidade. O casamento é, por definição, o avesso disso tudo. Pois bem, junte-se então o imperativo de gozar intensamente, mais os modos de gozar cujos ideais são os de novidade e substituição, mais o sentido de renovação inscrito na simbologia do réveillon, misture-se tudo e dê na mão do primeiro casal que passar todo de branco à sua frente: ele explodirá. A galopante expectativa de gozo já é um erro por si só, pois o acaso ainda é o regente imponderável da alegria humana.

A decepção provável com o acontecimento — como um gozo pode estar à altura dos fogos magníficos explodindo sobre nossas cabeças? — tem tudo para acabar na velha fórmula acusativa, típica da dinâmica de frustrações do casamento: “Todo mundo gozou, só eu não gozei, e por culpa sua.” Assim, não é que só os casais estejam expostos à exigência desmedida de gozo no réveillon, e à sua decepção provável: é que só alguém casado pode culpar o parceiro por não gozar como acha que deveria.
De minha parte, fui duplamente agraciado pelo acaso neste réveillon. Enquanto pensava em economizar minhas energias para gastá-las todas de noite, com os convidados, eu e Antonia, para um almoço na casa de nossos amigos Plínio e Paula.
De início evitei beber, para não queimar a largada, mas o almoço foi se tornando tão alegre, tão delicioso, que todo mundo deixou de calcular o gozo. Abriram-se garrafas, um peixe magnífico surgiu da cozinha pelas mãos de Karine e Juliana, a alegria se instalou a seu modo único: inesperada. O almoço virou festa, o cálculo foi pras cucuias e a largada virou o caminho, e ao caminho não importa a chegada.
Plínio colocava canções maravilhosas (é um DJ dos que eu gosto: só toca músicas que têm alma), todos dançavam, chegaram outros amigos. Saímos de lá faltando só duas horas para a meia-noite.
Mais tarde, a segunda obra do acaso. Fomos para a praia, na companhia de outros queridos amigos: Claudio, Renato, Isa, Luisa, Karla. O Arpoador, antes da meia-noite, estava ainda agradável, sem tanta gente.
Na hora da virada, brindamos e nos confraternizamos.
Meia hora depois, a praia já começava a lotar. Combináramos de ir a uma festa, mas as amigas que iam conosco se perderam de nós e estavam sem celular.
Assim, já de alma lavada e cansados pelo longo dia, eu e Antonia fomos para casa, felizes, com os votos mais do que nunca renovados, renascidos.
À minha família, aos meus amigos, a todos que eu amo, e aos leitores que me têm acompanhado nesse espaço ,um feliz ano novo.

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