domingo, abril 25, 2010

A cada Crônica Fernanda Torres se supera.

Crônica
Fernanda Torres – Revista Veja Rio - 28/04/2010

Minha última crônica aqui na revista falava de uma crise de riso da qual fui acometida em cena há algumas semanas. Escrevi o artigo em um domingo de sol, no mesmo dia o enviei para o editor e fui dormir com o barulho dos trovões que anunciavam a chegada de uma frente fria. As águas de março caíram em abril. Na terça (6), quando acordei, meu filho veio me dizer entre feliz e alarmado que não haveria aula porque o Rio estava em estado de alerta por causa da tempestade forte, e o prefeito Eduardo Paes aconselhava a população a ficar em casa. Como a quase totalidade dos poucos cariocas que tiveram a sorte de estar com luz e em segurança, passei o dia com a família atenta às imagens inacreditáveis que se multiplicavam na TV. Alagamentos, ruas interditadas e alguns deslizamentos. Sem saber dos desdobramentos e achando que se tratava de uma chuva um pouco mais violenta, não de uma hecatombe nuclear, não mudei o que escrevi. Na quinta (8), despertei com a tragédia do Morro do Bumba. Talvez devesse ter mandado às pressas outro texto, mas não o fiz. Uma crônica não tem o peso de uma reportagem, não é presa aos acontecimentos recentes e tem o direito de falar de assuntos alheios ao noticiário. Quando abri o jornal e vi a imagem de um bombeiro chorando no ombro do pai de um menino de 9 anos cujo corpo jazia no fundo do quadro, senti, além de um enorme pesar, um calafrio por causa do que havia escrito. Mas aí a edição já estava praticamente fechada e não dava mais tempo de mudar. No sábado, a capa de VEJA RIO trazia estampada a foto do mesmo pai e do mesmo bombeiro no instante em que tiravam o corpo do menino dos escombros. Na última página, lá estava eu, falando dos prazeres do frouxo de riso em cena. Parecia piada de mau gosto, descaso e alienação.
O fim de semana seguido ao horror contou com o cancelamento de muitos espetáculos na cidade por falta de público. Voltou a chover na sexta, bem na hora em que as pessoas estariam saindo de casa, e muitos desistiram de arriscar qualquer programa. Não havia clima, interno e externo, nenhuma função para o entretenimento. O desespero humano dos últimos dias tirava da minha profissão a própria razão de existir. Fui para o teatro com um distanciamento enorme e agradeci profundamente às quase 400 pessoas que milagrosamente se dispuseram a estar ali naquele dia. O teatro é suscetível a qualquer mudança: o fim do mês com o dinheiro mais contado, Copa do Mundo e eleição (neste ano teremos os dois eventos na agenda), e especialmente revoluções e tragédias. E não é preciso que barrancos caiam para que a arte seja posta em dúvida, basta morar em uma cidade como o Rio, onde a desigualdade social esfrega sua dureza todos os dias na nossa cara, para se perguntar qual o sentido de assistir a um espetáculo, admirar uma pintura ou dançar ao som de uma música. A impressão é que apenas o trabalho social deve existir, que a estética é um artigo de luxo reservado a países que resolveram seus problemas de saneamento básico. Esse, aliás, é o título de um filme que fiz, com roteiro afiado de Jorge Furtado, no qual se discute exatamente esse paradoxo que é fazer poesia em um lugar que não tem esgoto. Sou uma cigarra, uma cigarra que trabalha como formiga, mas não tenho um engajamento social e mais profundo. Passei a semana olhando para a capa e a contracapa de VEJA RIO, cujo título era “Colapso!”, pensando nos gregos e nas duas máscaras que representam meu ofício: a tragédia e a comédia. Apesar de ainda incomodada com a infeliz coincidência, achei que a edição falava muito da situação de todos nós, seres demasiado humanos que precisam não só de comida, mas de comida, diversão e arte. E escola, e água encanada, e transporte, e saúde, e creche, e hospital, e política habitacional.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Skoob

BBC Brasil Atualidades

Visitantes

free counters