segunda-feira, abril 12, 2010

Escreva a coisa certa - Guilherme Fiuza

Escreva a coisa certa
Guilherme Fiuza, O Globo, 10/04/10
O ministro dos Direitos Humanos desistiu de comprar uma cama para seu gabinete com dinheiro público.
Abriu mão desse direito sobrehumano.
Mas só desse.
A missão de controlar a verdade, por exemplo, segue firme. Para Lula e seu estado-maior, a verdade é um bem precioso demais para ficar à mercê do homem comum — especialmente se esse homem comum for jornalista. O governo popular não quer cercear a liberdade de imprensa.
Só quer dar uma organizada nessa bagunça de gente escrevendo sobre o que quiser, onde quiser, quando quiser. As pessoas acabam escrevendo “as coisas erradas”, como disse Lula em recente discurso.
É confortante ter um presidente que sabe quais são as coisas certas a serem escritas.
Paulo Vannuchi, o ministro que liberou o contribuinte de fazer sua cama, já avisou: releu diversas vezes seu Programa Nacional de Direitos Humanos e não viu nada contra a imprensa livre. Está sendo sincero.
Vannuchi, Lula e todos os ideólogos petistas da comunicação e da cultura realmente não desejam a censura. Só querem auxiliar a liberdade de imprensa com algumas rédeas, para salvá-la de expressar “as coisas erradas”.
São bem intencionados. Em 1964, os militares também sabiam quais eram as coisas certas para proteger a democracia. E, para que ninguém os tirasse do bom caminho, fizeram a ditadura.
A livre circulação da informação é de fato um perigo, pode virar um antro de mal- entendidos. A morte de Orlando Zapata, prisioneiro político da ditadura cubana, por exemplo. Em três meses de greve de fome, o preso foi morrer logo na chegada de Lula para abraçar Raúl e Fidel Castro. Paulo Vannuchi sintetizou a tragédia: foi muito azar do presidente brasileiro. Para o ministro dos direitos humanos, o problema de Zapata foi virar manchete na hora errada.
Não há quem aguente governar com manchetes tão imprevisíveis.
O presidente prepara com todo carinho o PAC 2, pede a seus cenógrafos para montarem a tal alegoria de 1 trilhão, e lá vem notícia ruim: Marcos Valério terá que devolver 37 milhões de reais ao Banco do Brasil conforme laudo da Polícia Federal mostrando o duto de dinheiro público para o PT. A imprensa é mesmo muito desagradável.
Pessoalmente, Lula é o símbolo máximo da liberdade de expressão no país. Ninguém como ele jamais pôde dizer publicamente tudo que lhe desse na telha de forma tão desinibida.
Comparou presos políticos cubanos com bandidos paulistas, afagou o tarado atômico do Irã, disse que um dia o Brasil será uma democracia como a Venezuela, afirmou que seu governo controlou a inflação, declarou que caixa dois todo mundo faz, ironizou as multas que recebeu por campanha eleitoral fora de hora, e por aí foi.
O povo continuou adorando-o, como a nenhum outro antecessor. Ou seja: ele deve estar dizendo as coisas certas. E decidiu convidar o povo a fazer como ele: não ler jornais.
Ou, pelo menos, duvidar do que lê, do que ouve, do que assiste na mídia. “Fico me deleitando com a distância entre o que vi e o que está escrito”, exclamou Lula, ao empossar seus novos ministros. Uma semana antes, em solenidade do programa Territórios da Cidadania, referiuse às vocações na imprensa para a mentira e a desgraça: “Quando o cidadão (jornalista) quer ser de má-fé, não tem jeito.” O técnico da seleção brasileira, Dunga, tem uma concepção parecida de democracia. Não entende por que os jornalistas perguntam-lhe sobre Ronaldinho Gaúcho, se ele já decidiu não convocá-lo. Lula também já decidiu criar Dilma Rousseff à sua imagem e semelhança, e se incomoda com a imprensa interferindo em sua transfusão eleitoral. Ele já disse ao povo que Dilma é Lula, deveria bastar.
Mas o Plano Dilma vem aí para corrigir esses ruídos, essas linhas cruzadas na comunicação do governo popular com o Brasil. Como avisou o ministro Vannuchi em recente palestra na USP, a mídia “vai ter que entrar na roda” dos sistemas de controle.
Em lugar dessa liberdade bagunçada, conselhos de estirpe estatal farão a distinção entre as coisas certas e as coisas erradas.
Na 2ª Conferência Nacional de Cultura, Lula foi didático. Mostrou como é fácil para os verdadeiros defensores do povo decidir que tipo de conhecimento deve circular.
Ele mesmo sabe o que é melhor para a programação das TVs: “Imaginem se as pessoas, em vez de ficarem vendo aqueles filmes da década de 40, estivessem assistindo a um programa feito ali na sua região, com debate local.” Segundo Lula, assim “este país seria muito mais rico”. Tem razão.
Um país descoberto em 2003 não tem nada que ficar vendo filme dos anos 40.
GUILHERME FIUZA é jornalista. Publicado no jornal O Globo

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