quarta-feira, maio 12, 2010

Sentimento de vergonha - E isso acontece com um médico!

Sentimento de vergonha
THELMAN MADEIRA DE SOUZA - O Globo - 12/05/2010

Um sistema de saúde eficiente, capaz de prestar uma assistência médica de qualidade a quem a ele recorre, pressupõe a existência de uma rede pública de saúde ajustada a um sistema de hospitais privados, ambos sob os olhares vigilantes do Estado, na sua função reguladora e fiscalizadora. No entanto, a realidade está muito distante do que deveria ser o sistema que a nossa Constituição Federal prescreve. Na prática, vemos a saúde, enquanto política pública relevante, se deteriorando, dia após dia, transformada numa anarquia sem solução. De um lado, as autoridades da área de saúde mostram-se incompetentes, desinteressadas e, em alguns casos, até coniventes com a corrupção que sangra impiedosamente um setor tão exigente de recursos, o que gera o sucateamento dos hospitais públicos e por consequência o atendimento precário e desumano ao público. Junte-se a isso a ganância desmedida de alguns empresários proprietários de algumas casas de saúde de excelência e dos planos de saúde que dominam o mercado. Teremos, então, todos os ingredientes capazes de dar um nó cego no sistema, inviabilizando-o de vez. Nessas circunstâncias, pagam um alto preço o povo humilde que busca o hospital público da mesma maneira que a classe média, na busca de uma clínica de ponta, através de um plano de saúde — que oferece o que não pode oferecer, em retribuição a uma mensalidade, quase sempre, elevada. Diante da incompetência administrativa, dos desvios de recursos públicos, do descumprimento de contratos geradores de uma prestação de serviços médicos, a quem recorrer? À Agência Nacional de Saúde; aos Conselhos Regionais de Medicina; ao Poder Judiciário. Infelizmente, buscar ajuda junto a essas instituições de pouco adiantará: ou porque são omissas ou retardatárias. A única coisa passível de ser feita, para alguns, é apostar na sorte; para outros, crentes num poder superior, rezar com toda a força disponível nos momentos de dor. Foi no confronto com essa cruel realidade que assisti, desesperado, à minha querida mãe no dia 14/04/10, às quatro horas da manhã, aguardar por uma ambulância, para removê-la para um hospital relacionado em seu plano de saúde que eu, por ser médico, entendia como o mais qualificado para recebê-la. Para minha tristeza e surpresa, a clínica da minha escolha atenderia a emergência, mas em seguida a transferiria para outro hospital, alegando não internar as emergências que atende. Essa situação, no mínimo esdrúxula, encerra um paradoxo: atende emergência, mas não interna emergência, o que à luz da lei penal configura um crime de omissão de socorro. Sem opções e diante de uma situação hostil à minha mãe e seus filhos, eu e minha irmã fomos obrigados a chamar um táxi e levá-la para um hospital que não fora o da nossa escolha, em face da grande possibilidade de ela vir a falecer sem um socorro médico.
Neste hospital minha mãe permaneceu internada no Centro de Tratamento Intensivo (CTI) por dezessete dias, vindo a falecer no dia primeiro de maio às dez horas da manhã. Registre-se que apesar do grande porte e pertencer a um plano de saúde, este hospital não possui um aparelho de ressonância magnética, de grande valia para doentes graves, internados em CTI. O que, ora, expressei, movido pela dor da perda, está longe de ser um libelo acusatório. Está mais próximo de uma advertência que se faz necessária, pois traduz as dificuldades de um médico de internar um ente querido — o que permite inferir, sem dificuldade, o sofrimento pelo qual pessoas humildes, sem inserção na área de saúde, passam na busca de assistência médica para seus pais e filhos.
Hoje, só me resta uma coisa a fazer: chorar a morte de minha mãe e curtir um sentimento de impotência e de vergonha por ser médico.

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