Ânsia por moralidade
Merval Pereira
Mesmo antes da sanção pelo presidente Lula da lei do Ficha Limpa, anunciada ontem, ela já entrara na campanha eleitoral, numa clara manifestação de que deve vigorar já para esta próxima eleição. Caberá ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a definição de sua vigência e, sobretudo, a interpretação de seu alcance, depois que emenda de redação do Senado modificou a expressão “os que tenham sido condenados” para “os que forem condenados”, o que produziu interpretações de que só seriam inelegíveis aqueles que passassem à condição de réus depois da sanção da lei pelo presidente da República. Ao sancionar ontem a lei, o presidente tinha um parecer da Advocacia Geral da União que afirma que a mudança verbal não alterou o espírito da lei. Mas não é nem a AGU nem o Senado que definirão essa questão e, sim, o TSE, que certamente será chamado a se pronunciar. Não foi outra, aliás, a intenção da mudança dos tempos verbais, para criar a celeuma e atrasar a entrada em vigor da lei.
Caberá ao TSE fazer com que o previsível julgamento do caso não facilite a vida dos que têm ficha suja. O interesse do cidadão sobre o tema continua grande, refletindo o fato de que a lei foi originada de uma ação popular com mais de quatro milhões de assinaturas.
O leitor Rafael Augusto Valente Carvalho de Mendonça enviou análise que define bem o sentimento generalizado. Lembrando que “a Carta Magna visa acima de tudo ao bem comum”, o que está registrado em seu preâmbulo e no artigo 3º que menciona “promover o bem de todos...”, sendo tal cláusula pétrea, ele diz que a dúvida em favor da sociedade deveria ser usada na Justiça Eleitoral. “Na hora de o juiz aceitar uma denúncia e abrir o processo, ou de o Ministério Público denunciar ou não, há o princípio da dúvida pró sociedade, isto é, na dúvida denuncia, pois a sociedade merece que o crime seja esclarecido, ou verificar se o réu é um sujeito que prejudica a sociedade cometendo crimes”. O mesmo deveria ser feito em relação aos candidatos, diz ele: “Se há dúvidas pairando sobre a idoneidade do indivíduo, o mesmo deve ser rejeitado como candidato, pois seria muito ruim para sociedade no futuro descobrir que o candidato na verdade era um bandido”.
Ecoando esse sentimento dos eleitores, o ex-deputado Marcelo Cerqueira, candidato ao Senado pelo PPS, levou para suas aparições nos programas eleitorais de seu partido uma proposta mais arrojada do que a que foi aprovada no Congresso e sancionada pelo presidente Lula ontem. Para ele, a lei que foi sancionada “é um insignificante avanço”, embora considere que qualquer ato que modifique a questão eleitoral “como norma penal estrito senso é um avanço”. Cerqueira lembra que a presunção de inocência entrou no Direito Constitucional na Constituição Federal de 1988, o que implica dizer que as diversas constituições anteriores não a contemplaram. Mesmo concordando com a tese de que a “vontade do legislador” é para ser interpretada por psicólogos e não por juristas, comparando-a com “um pássaro que voa e se liberta do seu cativeiro”, Marcelo Cerqueira diz que tudo indica que “tal norma foi criada para proteger os inocentes do arbítrio judicial tão comum nos anos de chumbo”. Como a Constituição é um conjunto harmônico de normas, não pode ser interpretada em tiras, ressalta Cerqueira. “Assim, aquela norma deve corresponder, para ter eficácia plena, a outras da mesma Constituição e com o mesmo valor normativo”. Ele destaca o disposto no artigo 37 da Constituição Federal, que cuida da legalidade, da impessoalidade e da moralidade. “A Constituição, fácil de ver-se, não se quer refúgio de delinquentes. Para se habilitar a qualquer função pública, o candidato tem de apresentar folha corrida ‘limpa’. Por que na habilitação a cargo político de representação deveria ser diferente?”, questiona Cerqueira
A proposta que ele vem fazendo na sua propaganda eleitoral é que, condenado na 1ª instância, o eventual eleito teria sua posse sobrestada. Se absolvido no órgão colegiado (exclusive o Tribunal do Júri que é de 1ª instância, mas é colegiado), tomaria posse regularmente.
Marcelo Cerqueira diz que para tal medida entrar em vigor bastaria que se introduzisse tal norma na lei de inelegibilidades. Com a vantagem, diz ele, de que a defesa do condenado funcionaria ao contrário do que é hoje: em vez de alargar os prazos com recursos meramente protelatórios, diligenciaria para abreviar o processo e satisfazer o “eleito” com uma solução rápida, abrindo mão de “agravos”. Além da força punitiva da norma-conceito, diz Marcelo Cerqueira, sua simples enunciação bastaria para inibir aqueles que buscam um mandato como refúgio. “O custo-benefício afastaria os aventureiros do voto”.
O presidente Lula recebeu sua quinta multa por propaganda eleitoral antecipada ontem à noite. Demonstrando que a paciência do Tribunal Superior Eleitoral está esgotada, o ministro Henrique Neves aplicou multa pela atuação presidencial em solenidade da Central Única dos Trabalhadores (CUT), no Dia do Trabalho. Ao analisar o discurso de Lula, Neves considerou como propaganda antecipada o trecho em que o presidente diz: “é preciso mais tempo, é preciso que tenha sequenciamento. Ô Dilma, você viu o que eu falei? Sequenciamento”.
O que espanta é a sequência de multas ao presidente da República, que evidencia seu comportamento ilegal na campanha até o momento. Dizem que Lula está se contendo nos dias recentes depois que o ministro Marco Aurélio Mello assumiu seu posto no TSE e se pronunciou contra o atropelo da lei, alertando o presidente para as consequências dessas atitudes.
A conferir, como diz o Ancelmo.
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