quarta-feira, junho 16, 2010

Padre Vieira, um diplomata desastrado

Padre Vieira, um diplomata desastrado

Escolhido para negociar com os holandeses, que ocupavam o Nordeste brasileiro na década de 1640, o sacerdote quase levou Portugal a perder suas colônias na América

por Vasco Mariz - É historiador e diplomata aposentado. Ex-embaixador do Brasil no Equador, Israel, Chipre, Peru e Alemanha, é autor de Villegagnon e a França Antártica (Nova Fronteira, 2000), entre outros livros     - Revista História Viva


O jesuíta (ao centro) se esforçou para convencer seus compatriotas da importância de fazer as paz com os Países Baixos em virtude da fraqueza de Lisboa.

Em fevereiro de 1647, um misterioso personagem começou a circular pelas ruas de Haia, na Holanda, ao lado do embaixador português, Francisco de Sousa Coutinho. Vestido de escarlate e ostentando um belo bigode, essa intrigante figura se movia sob a proteção de uma capa e uma espada. Naquele momento ninguém sabia, mas a eminência parda havia chegado aos Países Baixos em missão secreta, como emissário direto do rei D. João IV de Portugal. Seu objetivo: negociar a devolução das áreas então controladas pelos holandeses no Nordeste do Brasil. Sua identidade verdadeira: padre Antônio Vieira.
Célebre por sua atuação em defesa dos indígenas na América e pelo seu talento como orador, o sacerdote jesuíta teve uma meteórica, desastrada e pouco conhecida carreira diplomática durante os dez anos que passou na Europa, na década de 1640. Tudo começou em 1641, quando ele foi convidado a integrar a comissão baiana encarregada de levar as congratulações do Brasil ao rei D. João IV, que havia acabado de assumir o trono português depois de mais de 60 anos de domínio espanhol.
Então com 33 anos, ele logo fascinou o monarca com seu talento de orador e passou a ser convidado para debater os problemas nacionais com o soberano. Um dos temas que mais preocupava os dois era a delicada situação do reino diante da dupla ameaça representada pela Holanda e pela Espanha. Em 1640, Portugal havia proclamado sua independência em relação ao vizinho ibérico, mas Madri não estava nem um pouco disposta a aceitar essa situação, e D. João IV precisava de cada homem e de cada navio para defender sua autonomia política. Nessa situação, como poderia se dar ao luxo de dispersar recursos militares para defender o Brasil e tentar recuperar o Nordeste, ocupado, desde 1630, pelos holandeses? Diante do impasse, o sacerdote e o monarca chegaram à mesma conclusão: como Portugal não tinha meios para combater os dois inimigos ao mesmo tempo, era preciso negociar a paz a qualquer preço com a Holanda para se concentrar nos combates pela independência com a Espanha.
Sermão traduzido para o holandês publicado em Antuérpia em 1646


Uma vez definido o objetivo, os dois bolaram um plano para alcançá-lo: o projeto inicial consistia em tentar comprar dos holandeses a metade do Brasil já ocupada. Caso os estrangeiros se recusassem e insistissem em ficar com Pernambuco, o que era mais provável, então o rei estaria disposto até mesmo a reconhecer os direitos dos holandeses sobre aquela riquíssima região em troca de um tratado de paz firme e duradouro, além da promessa de apoio a Portugal em disputas com a Espanha, também inimiga dos batavos. Em 1646, o monarca enviou Antônio Vieira em uma primeira missão diplomática para avaliar a verdadeira situação política da Holanda. Ele deveria confirmar as informações que a corte de Lisboa recebia do embaixador português em Haia, Francisco de Sousa Coutinho.
Após essa primeira viagem, Vieira deu dois conselhos ao monarca. O primeiro: acrescentar aos 2 milhões de cruzados previstos para a compra das terras no Brasil uma soma adicional para a “compra da compra”, ou seja, o suborno dos delegados holandeses com voto nos Estados Gerais, a assembleia das Províncias Unidas dos Países Baixos. A segunda recomendação foi criar duas companhias comerciais, no estilo das grandes empresas mercantes holandesas, que se ocupariam uma do comércio com o Brasil e Angola, e outra com o Extremo Oriente. Para isso era indispensável obter apoio financeiro dos ricos judeus portugueses que haviam fugido para a França e a Holanda para escapar da Inquisição. Na defesa de sua tese, Vieira chegou até o extremo de combater qualquer tipo de auxílio da metrópole aos patriotas luso-brasileiros, que haviam se organizado bem e se propunham expulsar os holandeses de Pernambuco.                                 
O soberano confiou então ao padre uma missão secreta junto ao embaixador português em Haia para tentar negociar com os holandeses. Foi assim que, em fevereiro de 1647, Vieira desembarcou nos Países Baixos com status de embaixador adjunto, onde ficaria até julho daquele ano, circulando disfarçado sob trajes escarlate, capa e espada.

O Tratado de Münster selou a paz entre a Espanha e a Holanda, complicando a situação de D. João IV: agora, os dois países poderiam atacar Portugal juntos.


Aos 39 anos, ele estava no auge de sua forma como orador. O magnetismo pessoal e a extraordinária lábia do sacerdote convenceram facilmente os judeus portugueses expatriados nos Países Baixos a ajudar com sua influência regional e suas riquezas, antevendo polpudos negócios a curto prazo. O desafio de convencer as autoridades holandesas da proposta de D. João IV, no entanto, era muito grande, e as negociações conduzidas pelo embaixador residente, Sousa Coutinho, e por seu misterioso ajudante, foram um grande fracasso.
O revés não desanimou o monarca português e D. João IV lançou uma nova investida, dessa vez atuando em duas frentes: agora os portugueses pretendiam negociar ao mesmo tempo com a França, inimiga dos holandeses e espanhóis, e com os Países Baixos.
A estratégia em relação à Holanda permanecia a mesma, com um ponto adicional: a fim de ganhar tempo para os revoltosos no Brasil, Sousa Coutinho chegou a propor que Portugal e Holanda criassem uma espécie de protetorado conjunto no Nordeste brasileiro. Essa “republicazinha”, como escreveu ele, seria gerida por funcionários dos dois países, sob a direção administrativa da Companhia das Índias Ocidentais.
A novidade dessa segunda rodada de negociações foi a inusitada proposta que D. João IV apresentou à França: casar o herdeiro do trono português, o jovem D. Teodósio, com a filha do duque de Orléans, irmão do rei de França. De acordo com o projeto, elaborado pelo padre Vieira, o soberano lusitano abdicaria em favor do duque de Orléans, que assumiria a regência até a maioridade de D. Teodósio. O plano previa, portanto, entregar Portugal a um príncipe francês por cinco anos e propunha, muito antes de 1808, a transferência de parte da família real para o Brasil. A ideia era que D. João IV se estabelecesse em Salvador ou no Maranhão e passasse a reinar somente na colônia. Vieira acreditava que, com essa manobra, Portugal e Brasil estariam a salvo, pois os franceses os protegeriam dos holandeses e dos espanhóis.
O primeiro-ministro francês, cardeal Jules Mazarin, que Vieira tentou converter em aliado.

Se a proposta fosse aceita, o Brasil se separaria de Portugal como um reino independente e os dois provavelmente não voltariam a reunir-se. Mas como conceber o modestíssimo Brasil de então, uma estreita faixa de terra com pouco mais de 100 quilômetros de largura, como um país independente? Se o Nordeste era rico, o sul era ainda muito pobre em meados do século XVII.
Apesar de absurdo, o projeto foi levado adiante e o sacerdote tomou o caminho de Paris, em 1647, para negociar com o todo-poderoso cardeal Jules Mazarin, primeiro-ministro que governou a França durante a regência da rainha Ana da Áustria. O embaixador português em Paris, o marquês de Niza, ficou boquiaberto com a missão de Vieira. Mostrou-se tão horrorizado com esse projeto secreto que, terminadas as negociações, mandou queimar todos os documentos que mencionavam aquelas conversações com os franceses. Por isso temos poucos pormenores das negociações em Paris.
Mais uma vez, no entanto, os planos do padre Vieira e de D. João IV foram por água abaixo. Mazarin e a regente Ana da Áustria recusaram prontamente a oferta do modesto rei de Portugal. “Que pretensão!”, teriam dito os arrogantes franceses. Esqueciam-se os lusos de que a rainha da França era espanhola e não gostava nada de Portugal. Além disso, a Coroa lusa valia pouco sem o Brasil. O que teria a França a ganhar com essa complicada barganha? Como ponderou o historiador português Hernâni Cidade: “A entronização de um rei no Brasil seria fechar para a França as perspectivas que ela de há muito visionava nesta colônia. Na emergência, defendeu melhor os nossos interesses o cardeal francês do que o jesuíta lusitano”.
D. João IV, o rei que restaurou a independência de Portugal se encantou com os talentos de orador de Antônio Vieira e quase perdeu o Brasil
Após o novo fracasso diplomático, a situação de D. João IV começou a se complicar. As grandes potências europeias haviam iniciado as negociações da paz de Vestfália, que encerrariam a Guerra dos Trinta Anos e reorganizariam as políticas de alianças no continente em 1648, e a Espanha ameaçava retirar-se das conversas se Portugal, que ela continuava a não reconhecer como país independente, fosse admitido nas reuniões. Segundo o historiador pernambucano Evaldo Cabral de Mello, diante desse impasse o cardeal Mazarin teria aconselhado o marquês de Niza, embaixador português na França, a “agir rapidamente cedendo Pernambuco a fim de evitar que os holandeses continuassem a fazer todo o mal que já haviam feito em Münster às pretensões portuguesas. Embora não houvesse garantia de que aceitassem a restituição em troca da inclusão de Portugal na paz de Vestfália, era provável que o fizessem, dado o empenho que tinham na reaquisição dos territórios perdidos no Brasil e as enormes despesas em que teriam de incorrer para reconquistá-los pelas armas”.
Por um triz, todo o Nordeste, do Maranhão ao rio São Francisco, quase foi cedido aos holandeses em troca de um duvidoso tratado de paz. Com essa jogada, aparentemente de mestre, D. João IV deixaria de lutar em duas frentes e poderia reforçar a fronteira com a Espanha, sempre desejosa de reconquistar Portugal. Mazarin chegou a mencionar nas conversações com Vieira e com o marquês de Niza a possibilidade de o Rio de Janeiro ser cedido à França, como parte de eventual acordo.
A situação de Portugal piorou ainda mais quando a Holanda assinou um acordo de paz com a Espanha que reconhecia sua independência, em 1648. O fim das hostilidades entre os dois países abriu a possibilidade de ambos se juntarem para atacar Portugal, na Europa e em suas colônias. D. João IV chamou, então, o padre Vieira de volta a Lisboa. Nessa época, o sacerdote começou a cair em desgraça, pois era unânime em Portugal e no Brasil a reprovação das negociações em Paris e Amsterdã. Nessa altura ele e Sousa Coutinho já eram chamados de “Os Judas do Brasil”.
Quando tudo parecia perdido, chegou a Lisboa a notícia da vitória luso-brasileira sobre os holandeses na Batalha de Guarapes (retratada na imagem), saudada por Vieira como um milagre

Acuado, Vieira redigiu a pedido do rei um notável memorando, que ficou conhecido como o “Papel Forte”, para defender o tratado junto aos Conselhos de Estado de D. João IV. Sua argumentação era bastante convincente. Ele comparou a penosa situação de Portugal com a da próspera Holanda, comentando: “Damos-lhes por vontade o que nos hão de tomar pela força. Mas Pernambuco não é doado, senão vendido pelas conveniências da paz, e não vendido para sempre, para o tornarmos a tomar com a mesma facilidade, quando nos virmos com melhor fortuna. (...) Restituída a região à Companhia [das Índias Ocidentais holandesa], ela passará a ter todo interesse em cultivar a amizade com Portugal, em vez de incorrer nos riscos e gastos de nova conquista do Brasil”.
O curioso é que, quando as coisas estavam realmente mal paradas e a perda do Brasil parecia inevitável, chegou a Portugal a surpreendente notícia da vitória dos luso-brasileiros na primeira Batalha dos Guararapes, em abril de 1648, que obrigou os invasores a passar para a defensiva. O padre Vieira viu naquilo uma intervenção dos céus: “A Providência divina determinara fazer em Pernambuco um milagre, que ninguém imaginou e todos reconheceram como tal”.
No entanto, se os brasileiros haviam conseguido encurralar os holandeses na Paraíba e no Recife, o comércio marítimo com a metrópole continuava um completo desastre. Nada menos que 220 naus portuguesas haviam sido capturadas pelos holandeses, e os luso-brasileiros não podiam mais enviar o seu açúcar para vendê-lo em Lisboa, nem receber armamentos ou ajuda militar de Portugal.
No fim de 1648 o rei D. João tinha realmente de tomar alguma medida drástica ou abandonar de vez Pernambuco, afirmou o historiador britânico Charles R. Boxer. O monarca aceitou o conselho de Vieira e mandou organizar a Companhia de Comércio do Brasil utilizando o capital judaico português no exílio, que passava a ficar isento de confisco pelas autoridades eclesiásticas da Inquisição, mesmo se o investidor fosse culpado de heresia. Segundo Boxer, a estratégia foi acertada, pois “graças à cooperação da armada da Companhia do Brasil, os patriotas de Pernambuco foram finalmente capazes de expulsar os holandeses do Nordeste em janeiro de 1654”.

O religioso retratado no final de sua vida: nesse período Vieira escreveu a maior parte dos sermões que se tornariam patrimônio da língua portuguesa
Com a vitória dos luso-brasileiros na segunda Batalha dos Guararapes, em fevereiro de 1649, o domínio holandês no Nordeste brasileiro foi ferido de morte e os invasores ficaram apenas com Recife. Ainda sem condições de tomar a cidade, os luso-brasileiros tiveram de esperar pela guerra naval anglo-holandesa, que eclodiu em 1652, para que D. João IV ousasse autorizar a captura do último bastião holandês. O apoio do monarca à resistência contra a ocupação, aliás, sempre foi um tema controverso entre os historiadores. O britânico Charles R. Boxer e o português João Lúcio de Azevedo sugerem que o rei nunca teria dado o seu consentimento expresso à insurreição pernambucana e apenas acompanhara a trama de revolta para talvez desautorizá-la depois, em caso de fracasso. Evaldo Cabral de Mello, por outro lado, afirma que o soberano sempre teria apoiado os revoltosos, mas muito discretamente. Seja como for, os holandeses deixaram o Nordeste em 1654, ano da capitulação do Recife.
Com a retomada de Pernambuco, os acordos que o padre Vieira tentou negociar perderam completamente o sentido. O sacerdote ainda seria enviado a Roma em uma última missão diplomática, em janeiro de 1650. Mais uma vez, porém, a coisa terminaria mal. Depois de se envolver indevidamente na política local, foi obrigado a fugir da Itália em julho do mesmo ano.
De volta ao Brasil, em 1652, o sacerdote se estabeleceu em São Luís do Maranhão, onde se destacou pela defesa dos indígenas contra a ganância dos colonos portugueses. A partir desse período, Antônio Vieira começou a ganhar fama por seus sermões, que se tornariam um dos maiores patrimônios da língua portuguesa. Foi assim que o Brasil ganhou um dos oradores e escritores mais brilhantes de sua história e perdeu um dos diplomatas mais desastrados do Império Português.

PARA SABER MAIS
O negócio do Brasil. Evaldo Cabral de Mello. Topbooks, 2003
O império marítimo português (1415-1825). Charles R. Boxer. Companhia das Letras, 2002
História de Antônio Vieira. João Lúcio de Azevedo. Alameda, 2008
Padre Antônio Vieira. Hernâni Cidade. Editorial Presença, 1997
A great Luso-Brazilian figure – Padre Antônio Vieira, S.J. (1608-1697). Charles R. Boxer. Hispanic & Luso Brazilian Councils, 1957

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