sexta-feira, junho 04, 2010

Toni Morrison volta a abordar a condição dos negros nos EUA em romance


Lúcia Bettencourt*, Jornal do Brasil
 RIO - Negra e ganhadora do Prêmio Nobel de 1993, de uma Jefferson Lecture bem como de um Pulitzer, Toni Morrison – que já foi professora em Princeton e em Yale e se destacou como editora em Nova York – continua a se aventurar nos domínios da literatura, e a explorar a temática da escravidão e da condição dos negros nos Estados Unidos.
Escrevendo Compaixão no ano em que Barack Obama ganhou as eleições, um ano que anunciou uma revisão da condição dos negros no mundo, Morrison recua até 1690 para examinar a época em que a escravidão não se vinculava apenas à cor da pele, mas significava um tipo de mão de obra sobre a qual o desenvolvimento do novo mundo se amparou.
Para ilustrar sua tese, a servidão está presente, de alguma maneira, em todos os personagens de Compaixão. Mesmo Jacob Vaark, o órfão que acaba proprietário de terras, exemplifica um tipo de sujeição: a que submete o homem aos artifícios da ambição. É ele quem relativiza a escravidão que começa a se estabelecer nas colônias: explorar diretamente o comércio de carne humana é coisa que o repugna, mas ele não vê nada errado em investir no rum produzido em Barbados, por trabalhadores escravos, já que não estaria brandindo o chicote nem teria que enfrentar a presença silenciosa e ameaçadora dos escravos, que lhe faziam lembrar “uma avalanche vista a grande distância”.
Sua decisão de investir em rum é emblemática da hipocrisia americana, que não se envergonha de enriquecer “democraticamente” enquanto explora a mão de obra escrava em países distantes.
Morrison também desvincula a escravidão da cor da pele, ou melhor, revela algo que a sociedade americana parece ignorar: grande parte da sua população é descendente de “escravos” brancos, que eram vendidos e trocados, explorados legal e ilegalmente. Scully e Willard são representantes desses trabalhadores, ignorantes, mas que possuem, graças à cor da pele, a possibilidade de fugir do seu jugo.
Sorrow, cujo nome significa tristeza, é a órfã cuja servidão é a própria loucura de sua condição. Nascida e criada num barco, sua história é truncada, estranha, envolta em imprecisões. Quando seu lar/barco naufraga, ela é empurrada para a praia por “sereias, quer dizer, baleias”. Como as vítimas de trauma, ela possui uma amiga imaginária, Twin (gêmea), que a consola e aconselha, até que sua presença se torna desnecessária com o nascimento da filha, que a faz mudar de nome para Completa.
Lina, a mulher nativa – que antes da chegada de Rebekka, esposa comprada por Vaark, era a única companheira do fazendeiro – viu sua aldeia ser dizimada por algum tipo de peste e, depois de capturada e vendida como escrava, depois de ter aprendido os costumes da religião protestante, é exemplo da servidão que nos submete aos nossos próprios medos e superstições.
Verdades hediondas
No romance de Toni Morrison, a jovem Rebekka, trazida da Inglaterra num infecto porão de navio junto a prostitutas e ladras, parece a mais afortunada de todas as personagens femininas. No entanto, reconhece que, para ela, só existiam três alternativas: ser prostituta, criada ou esposa.
Tendo sido vendida pelos pais, tem a sorte de agradar ao marido, Vaark, porém sua incapacidade de gerar filhos homens que sobrevivam solapa sua autoconfiança. A morte de sua única filha, Patrician, vítima de um coice de animal, deixa-a desorientada.
Toda sua energia se concentra na relação que tem com o marido, e, com a morte deste e sua própria doença, aceita um novo tipo de jugo: o religioso., até que, eventualmente, venha a conseguir um novo casamento, única possibilidade de sobrevivência naquele Éden contaminado.
Com apenas 156 páginas, Compaixão consegue criar uma narrativa épica, que lança mão de um grande número de personagens. O português Ortega, sua mulher faladeira e seus dois filhos, calados como pedras, despertam a inveja de Vaark. Servos fujões escondem-se de fanáticos religiosos que começam a se empenhar em caçar bruxas.
“A minha mãe” e “seu filhinho”, alvo do ciúme de Florens, cujo nome evoca florins, ou seja, um tipo de moeda em uso na Holanda nos idos do século 17 (é bom lembrar que Nova York foi comprada por 60 florins, uma bagatela equivalente a 24 dólares). Com oito anos, ela se vê forçada a deixar sua mãe, sem compreender o gesto de compaixão de que é alvo.
Para essa menina, uma das narradoras do livro, a vida se resume no presente traumático da separação e na fome insaciável da paixão. É dando voz a esses personagens que a história, surgindo como uma espécie de mistério a ser desvendado, vai se revelando em toda a sua complexidade. Não podemos esquecer, porém, que o próprio cenário onde os personagens se debatem é carregado de sentido poético.
Tantos são os aspectos levantados pelos nomes e pelo estilo de Morrison que o livro se torna quase que uma parábola, onde cada palavra deve ser analisada e interpretada. Na história aparentemente simples de uma criança negra, usando sapatos grandes demais, que atrai a compaixão de alguém, inscreve-se todo o drama épico da construção de uma nação onde detalhes se transformam em fatos de importância capital para seu futuro e onde a hipocrisia mascara as verdades hediondas da servidão humana.
* Escritora, autora de Linha de sombra e A secretária de Borges, ambos editados pela Record
13:21 - 11/09/2009

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