domingo, julho 18, 2010

Grotowski

crônica

Grotowski

Fernanda Torres – Veja RIO
Eu devia ter uns 15 anos quando ouvi pela primeira vez o nome do polonês Jerzy Grotowski, da boca de Celso Nunes, diretor responsável pelos mais belos espetáculos produzidos pelos meus pais. Celso abriu minha cabeça para criadores como Bob Wilson e me apresentou sua tese de doutorado a respeito do gênio polonês, que li com avidez antes de completar 16 anos. Criador do teatro pobre, Grotowski reduziu a ribalta à sua essência: ator e público, dispensando toda a parafernália de cenário, luz e figurino, e aprofundou a função ritualística desse ofício. Seus atores se aprimoravam através de laboratórios psicofísicos que visavam a libertá-los de seus limites sociais e psíquicos, fazendo-os atingir o domínio do corpo e o exercício pleno da arte. Nos ensaios, poderia ser exigido de um ator que este subisse e descesse diversas vezes uma escada íngreme de pedreiro para dominar o medo e atingir a ambição desmedida de um Macbeth, por exemplo. Em 1974, quando esteve no Brasil, Grotowski confessou que nem o teatro o interessava mais, e sim o estudo das relações humanas entre pequenos grupos de pessoas através de exercícios não racionais. Fui criança durante os anos 60, um período de profundas transformações comportamentais. Na adolescência, vivi a rebarba desse furacão de costumes. Era tudo muito novo, alternativo e inteiramente contrário ao sistema vigente. Uma época em que o heroico era ser marginal.

Nos anos 80, quando entrei na casa dos 20, o mundo encaretou violentamente e a febre contestadora foi, aos poucos, sendo engolida pela vida gorda do capitalismo triunfante. Até os punks renderam lucros consideráveis. Os cabelos moicanos e os piercings foram transformados em mercadorias de luxo, objetos de consumo tão caros e desejados quanto a velha caneta Mont Blanc. E, quem diria, o teatro especulativo de Grotowski, que visava à liberdade e ao contato com o impalpável, também encontrou um lugar de ouro nas grandes corporações mercantis. Um dos meus lugares preferidos da Terra é o hotel de meu sogro, o Rosa dos Ventos, na Teresópolis-Friburgo. Às vezes, principalmente durante a semana, quando subo a deslumbrante serra de Teresópolis para aproveitar o paraíso de Mata Atlântica preservada, com bosques, lagos e céu inacreditável, cruzo com convenções de empresas usando o espaço para o treinamento de funcionários. Levei um choque na primeira vez em que assisti a uma dessas rotinas.
Uma espécie de teia de aranha havia sido esticada entre as árvores e um grupo de pessoas adultas estava atravessando um colega deitado, pelo ar, através do obstáculo de cordas. O objetivo era evitar que o corpo encostasse nas linhas, fazendo-o chegar do outro lado intacto. Outro grupamento pendurava um companheiro em uma árvore altíssima. O voluntário deveria acertar uma cesta com uma bola de basquete antes de despencar confiante. Havia rodas de participantes empenhados em segurar um parceiro cambaleante posicionado no centro do círculo, zelosos para que esse não caísse no chão. Os exercícios não me eram estranhos, eu os havia feito inúmeras vezes na minha formação de atriz: provas de confiança, colaboração, contato, superação e desinibição... O aparato psicofísico do teatro de vanguarda levado às últimas consequências por Grotowski era agora usado ali, em uma convenção de empresa. Olha as guinadas que esse mundo dá. O que havia de mais resistente ao poder e ao dinheiro agora é o que move o mundo corporativo. Eu fiquei espantada.
O uso de tais modalidades no treinamento de pessoal é relativamente novo, especialmente no Brasil. Uma americana trouxe a técnica para cá há cerca de dez anos. É curioso reler as palavras de Grotowski e pensar em seu significado quando relacionadas ao mundo corporativo: “O que devemos fazer é lutar, para então descobrir, experimentar a verdade sobre nós mesmos; rasgar as máscaras atrás das quais nos escondemos diariamente. A arte não pode ser limitada pelas leis da moralidade comum ou de qualquer catecismo. O ato de criação nada tem a ver com o conforto externo ou com a civilidade humana convencional; quer dizer, as condições de trabalho nas quais as pessoas se sentem seguras e felizes”.
Não existe bom-mocismo na Arte... nem nas finanças.
e-mail: fernanda.torres.vejario@gmail.com

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