quinta-feira, novembro 11, 2010

'Alta ajuda'

'Alta ajuda'
José Miguel Wisnik – O Globo – Segundo Caderno
A poesia do ocidente faz do poema o lugar de uma ausência, e dessa ausência a sua autoridade
Esta semana Francisco Bosco escreveu aqui sobre a canção como “um gênero absurdo”. Ele se referia à situação estranha de escrever um tipo de poema, a letra de canção, que não se basta como tal mas que tem que virar música, que se destina a outra coisa e que, por isso mesmo, deixa a sensação (em quem a escreve?) de não lugar, de incompletude.
No final, ele chega a falar de um “malestar incontornável”, de uma impossibilidade do gozo, de ejaculação precoce, de coito interrompido, do absurdo de um gozo que se consuma como exterior ao corpo, em sua ausência.
Acostumado a acompanhar os argumentos construídos e equilibrados do colega de coluna, sempre voltados ao esclarecimento da experiência compartilhada e ao estabelecimento de princípios de valor geral (Francisco Bosco está criando um gênero próprio que poderíamos chamar de “alta ajuda”, que eu admiro e invejo), estranhei com interesse a sua ênfase meio deslocada no absurdo do gênero canção como um impossível de gozo. O exagero não ficava caracterizado se era teórico ou confessional, embora ficasse claro que estava ligado à sua experiência de letrista, de quem escreve letras para que outro musique, pondo-se necessariamente na condição de uma espécie de poeta incompleto que não chega a ser músico.
Não acho que os cancionistas que fazem música e letra, isto é, não o poema para uma música que ainda não existe mas a letra para uma música que existe enquanto está sendo feita, partilhem o mesmo sentimento de algo que nunca se completa.O momento em que a canção é finalizada é bem comparável, me parece, ao instantâneo lum i n o s o a q u e Bosco se refere a propósito da conc l u s ã o d e u m p o e m a . B o s c o não se estendeu também sobre a experiência de fazer letra para uma música já existente, que é a tendência mais comum na música popular.
Mas o tema da cisão entre poesia e música tem sim a ver com um antigo mal-estar associado à canção, ou suscitado por ela, indissociável do fascínio universal que ela provoca. No conhecido texto sobre “Os compositores e a língua nacional”, Mário de Andrade diz, contrariando o senso comum, que “é coisa bem sabida que em todos os tempos o canto viveu em luta com a poesia”. Tendo como base comum o ritmo e a voz, presentes no canto e na palavra, as duas “artes gêmeas” são repuxadas para direções opostas uma vez que, no canto, o ritmo tende ao “puro dinamismo fisiopsíquico” e, na poesia, aos “processos de pensar por meio de palavras”. Podese dizer o mesmo do silêncio da página e dos volteios da entoação. Mário invoca o arco primitivo, arcaico, da tradição védica, que é arma de combate capaz de atirar setas e ao mesmo tempo instrumento musical capaz de produzir sons afinados.
A voz, diz Mário de Andrade, é arco e lira, instrumento de fala e de canto, que emite tanto significações como puras sonoridades, obedecendo cada polo, segundo ele, a “exigências e destinos diferentes” e irreconciliáveis.
Essa visão conflituada e agônica da relação entre a palavra e a música, em Mário de Andrade, talvez esteja ligada ao fato de ele ter renunciado à música, isto é, ao gozo de “tocar um instrumento”, quando se tornou escritor. Certamente também ao seu desejo de superar programaticamente, na época, a distância entre a empostação do canto lírico e a naturalidade da voz que fala, problema que a canção popular, e João Gilberto, resolveram depois para todo o sempre. Mas liga-se ainda à temática da fratura metafísica da presença no sentimento e no pensamento ocidentais, isto é, da não coincidência da expressão com o conteúdo, do significante com o significado, da palavra com o som que a sustenta e do desejo com o seu objeto, nunca alcançado.
Giorgio Agamben diz que “a única tentativa coerente do pensamento ocidental para superar a fratura metafísica da presença” foi dada pela lírica amorosa do século XIII. Nesta, o destino melancólico do desejo, fadado a nunca encontrar plenamente seu objeto, é revirado pelo “pneuma”, o sopro, a voz que vem do coração, que mobiliza o “fantasma”, isto é, as imagens da fantasia, que desembocam nas palavras que, por sua vez, voltam à voz que vem do coração.
É nesse movimento circular que se produz a “estância”, a estrofe da canção — o abrigo em que se contempla e gratifica a falta do objeto impossível.
No “pneuma” o arco e a lira divergem e convergem, como em Heráclito: ele desfaz a dualidade entre o canto e a palavra. Nesse jogo alegre (“joi d’amor”) o desejo, o fantasma e a palavra (isto é, o real, o imaginário e o simbólico) se entrelaçam na música da língua. “Assim vou entrelaçando as palavras e compondo o som: língua entrelaçada no beijo”, diz o poeta músico medieval, nos lembrando do nosso bem conhecido “deixa eu roçar a língua na língua de Luis de Camões”.
De Petrarca a Mallarmé a poesia do ocidente faz do poema o lugar de uma ausência, e dessa ausência a sua autoridade. Agamben diz que a questão pendula entre o Édipo, que quer superar a barreira entre o som e o sentido, e a esfinge, que porta o enigma da sua intransponibilidade.
Quem hoje poderia, pergunta ele sem esperança de resposta, dar o passo capaz de “voltar a medir-se” com aquela poesia do amor inspirante, do sopro do coração que insufla as palavras e a música, para trás e para além da melancolia? Dorival Caymmi e o vento, eu diria. Muitas das canções que dele se irradiam.
“Doce sereia”, de João Bosco e Francisco Bosco.

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