sábado, abril 30, 2011

Desejo e amor


Desejo e amor
JOSÉ MIGUEL WISNIK – O GLOBO
“O homem deseja sem amor, a mulher deseja sem amar.” Tive a ocasião de dizer publicamente essa frase, muitas vezes, no contexto de uma aula-show com Arthur Nestrovski, em muitas das capitais brasileiras situadas entre Porto Alegre e Fortaleza. Ela faz parte da última peça de Nelson Rodrigues, chamada “A serpente”, para a qual eu tinha composto uma canção. Antes de cantar a canção, que era baseada na citada frase, e para chegar a elas, à frase e à canção, eu resumia o enredo da peça, não sem explorar certa expectativa que o anúncio de uma história, desembocando numa declaração final, costuma produzir.
Duas irmãs, muito unidas, não fazem nada sem a participação uma da outra. Têm aquilo que podemos chamar, tecnicamente, de uma relação “simbiótica”. Mais do que a intimidade que as une, é como se a presença da outra garantisse a cada uma delas a reciprocidade de um espelho (se é possível retomar aqui, à maneira de uma aula, temas das colunas passadas). É claro que, com isso, elas se dão força, mutuamente, em todas as circunstâncias da vida. Mas fica insinuada também, capciosamente, a pergunta pelo preço a pagar por essa dependência figadal, que faz com que uma não possa existir sem a outra.
As duas, que se chamam Guida e Lígia, se casam no mesmo dia, numa cerimônia única, e vão morar juntas, com seus respectivos maridos, no mesmo apartamento. A realidade dos casamentos abre entre elas, no entanto, e no seu desenrolar, o abismo ameaçador de uma diferença: a primeira encontra satisfação no casamento e no sexo, enquanto a segunda só encontra, no casamento e no sexo, insatisfação . Podemos imaginar o perigo íntimo contido nessa ameaçadora não coincidência, não só para Lígia, a irmã infeliz que convive com a felicidade da outra, mas para Guida, a irmã que não encontra, na infelicidade da outra, o espelho da sua própria satisfação, no qual aprendeu a se reconhecer.
É então que Guida tem a ideia de oferecer a Lígia, como reparação dessa falha do destino, e da fenda que se abre entre elas, o seu próprio marido por uma noite, para que a irmã possa conhecer ela também os benefícios do amor e do sexo. É um gesto, pode-se dizer, de caridade extrema, embora a trama especular que o engendra nos faça vê-lo ao mesmo tempo como a surda procura de uma reparação narcísica, graças à qual uma irmã pudesse continuar a se ver na imagem da outra, mantido o pacto simbiótico entre elas.
Chega a hora da frase. Guida faz a oferta, e Lígia se mostra surpreendida, entre desconcertada, atraída e estranhada por aquela brusca perspectiva de intimidade sexual com a figura familiar do cunhado, que se chama Paulo. “Mas como”, pergunta tateando, hesitante, como se pensasse alto, “eu e ele, Paulo, meu cunhado?” Guida parece estar imbuída da certeza trágica e da sabedoria enigmática dos oráculos, quando responde: “O homem deseja sem amor, a mulher deseja sem amar.”
O efeito universal da frase, sobre quase todos os públicos, é de um momento de silêncio mais profundo do que qualquer outro antes ou depois, ali naquele lugar. Há poucos dias pudemos confirmá-lo, eu e Arthur, na Sala São Paulo, quando o efeito atingiu o seu quilate acústico mais puro, sempre como sinal, acho eu, de que a frase, pendulando entre o entendimento e o desentendimento de cada ouvinte, fica ressoando em camadas não verbais da quase-revelação. O que é, aliás, para Jorge Luís Borges, uma definição da arte: “A iminência de uma revelação, que não se dá.”
Uma vez, no Theatro São Pedro, em Porto Alegre, a plateia, em vez de cair no silêncio, explodiu numa surpreendente e inexplicável aclamação. Caso único de um paradoxal efeito rodriguiano ao sul: o enigma foi ovacionado. Em Pernambucano, ouviu-se a voz de uma senhora dizendo, firme: “Protesto!” Mas as reinvindicações em nome do amor, o silêncio ou o ruído, estão dizendo a seu modo, acho eu, o que eu confessava para o público: eu também não entendo a frase, isto é, não entendo pelos canais comuns da consciência, entendo pelo impacto não inteiramente explicável que ela me produz.
“O homem deseja sem amor” é uma obviedade masculina (o homem é óbvio), enquanto “a mulher deseja sem amar” é um convite ao enigma (a mulher é “enigmática”). É famosa a declaração de Freud, em carta a uma amiga, de que os anos de estudo do assunto não o levaram a saber dizer o que quer uma mulher. A falsa simetria da frase de Guida, contendo um desequilíbrio no seu aparente equilíbrio, acaba sendo a melhor figura da própria simetria desequilibrada da relação de desejo e amor entre homem e mulher. Na canção eu tentava retomá-la numa outra formulação, como se ela seguisse seu caminho através dos elos de uma serpente: “Se o homem ama por amar/ e a mulher ama por amor/ Quem vai poder nos abraçar/ compreender nossa dor?/ Somente a serpente/ e a canção da vida/ em que o homem é o verbo/ e a mulher é substantiva”.
Da Bahia, recebi e-mails preciosos de uma certa Myrna, aliás misterioso pseudônimo feminino de Nelson Rodrigues. Ela dizia que na frase “O homem deseja sem amor” o verbo desejar indica o ato de sentir desejo por alguém; na frase “a mulher deseja sem amar” o mesmo verbo indica o desejo de chegar à impossível ação de amar, que Nelson considera inatingível pela imperfeita dimensão humana. Se o homem, quando deseja, o faz sem amor (já que ele “ama por amar”, o que não é pouco para quem é o verbo), a mulher, que é substantiva, quando deseja, deseja o impossível do amor, “ama por amor”. “Esse desejo de sentir um sentimento inacessível seria o cerne de tudo o que quer uma mulher”, pontua Myrna.

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