sábado, abril 30, 2011

Oração ao frio

Oração ao frio
Arnaldo Bloch – O Globo
Demorou. Mas senti, hoje, pela primeira vez no ano, aquele frio etéreo (com notas brancas de trompas geladas, implícitas, a anunciá-lo) entrar pela janela do banheiro em obras.
A janela fica linda assim crua, sem basculante, provisória como a de uma ruína, ou estilizada como as janelas das casas dos homens livres que não têm que respeitar fachadas. Acho que não vou pôr basculante. Talvez não ponha, tampouco, o revestimento. A carcaça do banheiro será definitiva.
O frio, dizem, está em falta por obra do homem que furou camadas protetoras de ozônio e de clorofila. Ali em cima, a floresta ainda fascina e assombra, alheia aos bois, à soja, às motosserras e às usinas. E beeeeem adiante, o urso a equilibrar-se sobre a calotinha derretida procurando uma rota de fuga e cercado de água dá tristes avisos através do ecomarketing e se transforma em emblema do que nos aguarda, uma das imagens mais dramáticas que povoaram a primeira década de um século árido de ideias e ideais.
Se nos polos o frio está acabando, no Rio, então, já deveria ter acabado, deixando felizes aqueles que morrem congelados quando os termômetros cariocas se aproximam perigosamente da linha abaixo dos 20 graus. “Que friaca, hem?”, assustam-se, nos elevadores, senhorinhas e marmanjos, à espera de que um bafo de Bangu lhes assopre as narinas.
Mesmo assim, ele acaba por vir, cada vez mais raro, e as moças mais desprendidas desse apego ao calor imediatamente põem suas botinhas, seus jeans, seus cintos, seus casacos que compraram da última vez que foram ao Sul ou ao outro hemisfério.
Dizia um tio meu que a única coisa em que não se dá jeito nesta vida é no frio. Que ele penetra nos ossos e paralisa o espírito. Por fim, mata. Entendo-o, pois passou frio de guerra e quase pereceu com a família.
Mas, essencialmente, discordo: do frio, contemporaneamente, ainda se pode fugir com roupas, agasalhos, fogo, calefação, gorro, goró. Só em total abandono se sucumbe a ele. Mas, em total abandono, se sucumbe a tudo, à fome, à sede, ao medo, ao desespero, à selvageria, à falta de amor e de empatia.
Para o calor, sim, não há solução: quando se está na rua, não há um “casaco frio” para amenizá-lo. Leques são patéticos e ilusórios. Sombrinhas são decorativas. E brisas do mar durante o verão só existem, ainda, na Bahia. No Rio não me lembro mais da última que senti. E, sem brisa, a vida não vale a pena.
Por isso dou essa importância tamanha ao primeiro friozinho do ano. Penso que pode ser o último. E, quando ele vem, fecho os olhos e gozo de sua calma, de seu modo de trazer notícias silenciosas de outras terras, noção de que existem vários mundos a trocar ares nos movimentos planetários. O primeiro friozinho do ano é como um sopro de equilíbrio a preencher o corpo.
Ele enseja uma oração: que seja assim o ano inteiro, com o sol outonal que pinta de um azul profundo o céu do Rio e faz com que os poentes ganhem uma variedade maior de cores, como as florestas da Europa antes de perderem as folhas, quando ficam mais coloridas que as florações primaveris.
Que o verão dure só duas semanas, para que se dê ao calor o devido valor, e ao frio sob o sol o devido lugar: sua serena majestade. Como diz o Ed Motta naquele seu lindo fox carioca:
“Há um lugar para ser feliz/ além de abril em Paris:/ Outono, outono/ no Rio.” Eu prefiro até o inverno, quando, ainda que por alguns dias, o frio se aprofunda e encontra, num certo enclave do espaço-tempo, sua expressão mais radical, rasgando os mitos e os ritos tropicalmente corretos.
Quando ouvi, já se vão uns 15 anos, aqueles versos na canção de Adriana & Cícero dizendo que o inverno no Leblon é “quase glacial”, eram princípios de agosto e estava mesmo o chamado frio da porra quando se caminhava, ainda citando Calcanhotto, à beira do canal (o da Visconde de Albuquerque), e o frio se misturava com uma bruma e com pepitas de maresia fazendo as linhas da cidade desaparecerem e aquele espanto e silêncio fellinianos calarem os passantes na contemplação da raridade do momento. Onde estamos?
Nestes dias em que o Botafogo desapareceu na bruma de si mesmo e até o gol de Messi me entedia, esforço-me para me manter afastado dos ares que vêm da Casa de Windsor, que pouco me interessam, ou do bafo cínico de Requião se dizendo vítima de bullying, nova desculpa para toda fraqueza e violência. Dedico o tempo que resta a buscar alguma elevação nas asas do frio sem esquecer que essa promoção é por tempo limitado.

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